O MARINHEIRO
DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO
A Carlos Franco
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.
É noite e há como que um resto vago de luar.
PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma.
SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.
TERCEIRA — Não: o horizonte é negro.
PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso. ..
SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?
PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...
(uma pausa)
A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...
SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.
TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido…
PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...
TERCEIRA — Onde?
PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.
TERCEIRA — De quê?
PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber?
(uma pausa)
SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...
PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?
SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...
(uma pausa)
PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?
SEGUNDA — Não, não dizíamos.
TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?
[...]
1913
Poemas Dramáticos . Fernando Pessoa. (Notas explicativas e
notas de Eduardo Freitas da Costa). Lisboa: Ática, 1952 - 153.
1ª publ. in Orpheu , nº1. Lisboa: Jan-Mar. 1915
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