Por aquisição recente do seu fundador, o Ephemera -Associação Cultural, biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira, tem um dossier, sem data ou autor, “Aulas de Relojoaria – 13 a 24”, dactilografado e com ilustrações coladas nas folhas.
O Núcleo do Tempo do Ephemera, de que somos responsáveis, procurou contextualizar este documento.
Num país que conta apenas com uma Escola de Relojoaria – a da Casa Pia, a fonte
alternativa possível do curso seria o que foi realizado durante décadas, por correspondência, em
Portugal, Brasil e então colónias portuguesas de Angola e Moçambique, por
iniciativa de Dimas de Melo Pimenta, um português emigrado, e responsável
pela introdução da relojoaria moderna no Brasil, na segunda metade do século XX,
tendo hoje em São Paulo um museu com o seu nome, o mais importante do seu
género, com centenas de relógios.
Tal não parece provável, porém, dado o carácter quase
artesanal destas 12 lições, de um curso que seria provavelmente composto por um total de 24.
Falando com o engenheiro Jaime Ferreira Ribeiro, antigo casapiano, e que, a dada altura, dirigiu o Curso de Relojoaria da instituição, propusemos três nomes – os mestres relojoeiros suíços Walter Sutter, Jean-Pierre Delay e Aldo Bernasconi – que nas décadas de 1940 a 1970 foram ali responsáveis pelo ensino de relojoaria.
“Não creio que seja o Sutter” – recorda Jaime Ribeiro. “Ele
ditava os apontamentos (num português difícil…), fazia os desenhos no quadro,
por vezes dava cópias dos desenhos e os alunos reproduziam tudo, à mão, em dois
livros de folhas em branco. Um livro para a teoria e outro para os trabalhos
práticos. É provável que o autor seja o Delay, já que o Bernasconi é do meu
tempo e não me recordo desses papéis”.
Deixamos aqui as primeiras páginas dos 12 capítulos na posse do Núcleo do Tempo do Ephemera e excerto da entrada sobre a Casa Pia que escrevemos para o livro “Relógios & Relojoeiros – Quem é Quem no Tempo em Portugal” (Âncora, 2006):
ESCOLA DE RELOJOARIA DA CASA PIA DE LISBOA
Já em
meados do século XIX a Real Casa Pia de Lisboa pagava a grandes mestres
relojoeiros da cidade para que estes recebessem alunos seus como aprendizes, em
regime de externato. Com o incentivo de homens como Augusto Justiniano de
Araújo (ver) ou Veríssimo Alves Pereira (ver), passa mesmo a haver uma
oficina-escola, a partir de 1894, num palacete situado na rua de São João da
Mata, nº 113, alugado pela Casa Pia. O ensino será depois transferido para o
Mosteiro dos Jerónimos, pois em 1895, por iniciativa do Par do Reino e Provedor
da Real Casa Pia de Lisboa, Simões Margiochi, Augusto Justiniano de Araújo
passa oficialmente a director técnico da Escola de Relojoaria daquela
instituição, que ele tanto pressionara para que se criasse. O seu amigo
Veríssimo Alves Pereira é também lá professor. Segundo o plano de estudos
apresentado por Augusto, o curso devia ter a duração de cinco anos, pois, como
defendia, para se ser bom relojoeiro, é necessário “ser bom torneiro, bom
serralheiro e ter conhecimentos gerais de química, física e mecânica”.
“A relojoaria é uma das artes mecânicas que exige maior
número de conhecimentos teóricos e práticos”, refere o mestre Araújo. “O curso
estabelecido para esta arte nas escolas estrangeiras e que igualmente se está
tratando de completar na portuguesa”, explica ele, inclui uma parte prática
(contemplando relojoaria de algibeira, de mesa, parede, torre e artes
congéneres”, e uma parte teórica (onde se incluem noções de aritmética,
geometria, álgebra, trigonometria, mecânica, escrituração comercial, física,
cosmografia, desenho, química, tecnologia e metalurgia).
Para mestre Araújo, havia quatro classes de relojoeiros:
“negociantes, operários ou ajudantes, mestres ou repassadores e professores ou
construtores”. A estes últimos corresponderia o grau de “Engenheiros
Cronometristas”.
Francisco Simões Margiochi emite uma carta circular dirigida
a diversos directores e chefes de repartições de Obras Públicas, solicitando a
sua cooperação em favor da Escola de Relojoaria e o próprio Ministro do Reino,
João Franco Castello Branco, faz o mesmo, enviando uma carta circular em favor
da escola às Repartições do Estado. Relógios avariados, que os mandassem para a
Escola da Casa Pia... Não se sabe ao certo o que terá levado ao rápido
desentendimento entre mestre Augusto e a escola que ajudou a criar. O que fica
para a História é que ele próprio mandou imprimir e andou a distribuir
pessoalmente uma folha avulsa, intitulada Protesto público por perdas e danos
contra a Real Casa Pia de Lisboa. É que o ministro das Obras Públicas da
altura, Conselheiro Elvino de Brito, tinha ordenado a extinção da Escola de
Relojoaria, escassos anos depois de ter sido fundada (também não se sabe ao
certo porquê). Augusto protestava porque a extinção não dera lugar a
indemnização, assegurada no seu contrato com a provedoria da Casa Pia.
Durante meio século, o ensino da relojoaria na Casa Pia
prossegue, embora com intermitências, devido em grande parte à falta de mestres
relojoeiros dispostos a trocar uma actividade altamente rendosa pela
filantropia do ensino, problema que se repetirá ao longo da história do
estabelecimento, único no seu género no país.
Já no século XX, com a reforma do ensino de 1948 e a criação
dos Cursos de Formação Industrial e Comercial, e dando resposta à preocupação
manifestada na revista Belora (ver), o Governo contrata a vinda da Suíça do
mestre Walter Sutter (ver), para dar início a um ensino profissional que, até
hoje, nunca mais foi interrompido. A Escola começou efectivamente a funcionar
em 1 de Outubro de 1950, com seis alunos, de idades rondando os treze anos.
Durante a década em que mestre Sutter se manteve à frente da
Escola, os seus alunos obtiveram vários primeiros lugares em concursos
internacionais de trabalho, na área da mecânica de precisão. Sutter saiu depois
da Escola e foi director técnico da Fábrica “A Boa Reguladora” (ver), em
Famalicão. A Belora chegou a sugerir, aproveitando a presença do mestre suíço
no único centro fabril relojoeiro do país, a criação de um curso de Relojoaria
na Escola Industrial de Vila Nova de Famalicão, mas a ideia não deu frutos.
Sucederam-lhe no cargo os ex-alunos Urbino Santos, Carlos
Moreira e Jaime Ribeiro, os dois últimos engenheiros, exemplo do elevado número
de alunos que, após o curso de Relojoaria, realizava estudos superiores.
Em 1963, dá-se um salto qualitativo importante, com reflexos que chegaram até hoje: um consórcio designado genericamente por Indústria Relojoeira Suíça, formado pela Federação Relojoeira Suíça e pelo Grupo Ebauches SA, estabelece com a Provedoria da Casa Pia de Lisboa um “Acordo de Cooperação Técnica” com a finalidade de reestruturar, modernizar e alargar o âmbito do ensino da relojoaria em Portugal. Nesse sentido, a parte suíça equipou completamente a antiga Escola, e enviou para Portugal um mestre de elevado gabarito, Jean-Pierre Delay (ver), que tinha a vantagem de ter passado uns anos no Brasil, pelo que dominava o português. Durante dez anos, e a partir deste acordo, a Indústria Relojoeira Suíça assegurou todas as despesas de funcionamento das Escola […].
[…] Em 1969, com o fim do contrato de Delay, passa a dirigir
a Escola o também suíço Aldo Bernasconi (ver), que passara igualmente pelo
Brasil […]. Com cerca de duas dezenas de alunos, segue-se um período de intensa
actividade, devido à revolução tecnológica que a electrónica trouxe à indústria
relojoeira.
Mesmo assim, em 1970, a revista Belora ainda lamenta o facto
de “os proprietários das oficinas de relojoaria – não todos, felizmente, mas a
maioria – não admitirem os jovens relojoeiros-reparadores diplomados,
preferindo os curiosos”. […]
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