sexta-feira, 19 de maio de 2023

Meditações - sem relógio, tudo é mais afastado e misterioso

O MARINHEIRO

DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO

A Carlos Franco

Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.

Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela.

É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA — Não: o horizonte é negro.

PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso. ..

SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?

PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...

(uma pausa)

A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...

SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.

TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido…

PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...

TERCEIRA — Onde?

PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

TERCEIRA — De quê?

PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber?

(uma pausa)

SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...

PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...

(uma pausa)

PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?

SEGUNDA — Não, não dizíamos.

TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto?

SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

[...]

 

1913

Poemas Dramáticos . Fernando Pessoa. (Notas explicativas e notas de Eduardo Freitas da Costa). Lisboa: Ática, 1952  - 153.

1ª publ. in Orpheu , nº1. Lisboa: Jan-Mar. 1915

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