Bartolomeu Valadas (Ilustração Portuguesa, 31 de Março de 1913, dando conta do seu falecimento)
Há precisamente 140 anos, a 1 de Agosto de 1881, pelas 20 horas e 15 minutos, partia da Gare do Norte de Lisboa (Santa Apolónia), o Capitão Bartolomeu Valadas. Fazia parte do grupo de expedicionários que ia à Serra da Estrela, numa missão que envolveu algumas das principais instituições do país e alguns dos maiores cientistas nacionais da altura.
Engenheiro formado na Escola
Politécnica, maçon, Bartolomeu Valadas, que em 1871 tinha proposto a
transferência do Arsenal de Marinha para a zona da Margueira, na margem
esquerda do Tejo, trabalhou depois na construção da rede nacional de faróis e
colaborou em projectos de túneis na Mina de São Domingos, Mértola. Terminou a carreira como Chefe de Contabilidade dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste. Faleceu em 1917.
Voltemos à expedição. A dado
passo do relatório final, lê-se: “O cronómetro que serviu para marcar a hora
nas observações da polar, bem como nas observações da componente horizontal magnética,
pertence ao distinto explorador H. Capello, e foi o que ele empregou nas
observações que fez em África”. Hermenegildo Capelo foi o chefe da expedição.
A Universidade de Coimbra, no seu site, na entrada Viagens Filosóficas, refere-se nestes termos à expedição:
Na “viagem filosófica”, conceito
desenvolvido em Coimbra, o exotismo do destino não era o mais importante:
Domingos Vandelli tanto mandava os seus alunos de “Filosofia” (ciências
naturais) para o Brasil ou Cabo Verde, como para Góis ou a Figueira da Foz,
porque o foco nos resultados da observação científica eram o que mais importava
para o sucesso da “viagem”.
Hoje, parece-nos inimaginável que, em 1881, uma enorme “expedição científica” tivesse tido por objetivo a Serra da Estrela. Nesse tempo, o Chiado de Lisboa iluminava-se orgulhosamente com 6 candeeiros elétricos Jablochkoff, o telégrafo tinha chegado à Guarda, o comboio a Celorico da Beira (a linha até Vilar Formoso inauguraria no ano seguinte) e quase todo o país já era percorrido por ocasionais “touristes”.
Mas, para a Sociedade de Geographia de Lisboa, coordenada por Luciano Cordeiro, a Serra da Estrela ainda era longínqua e cheia de mistérios: havia quem acreditasse que a Lagoa Escura estava ligada ao mar, velha lenda da qual Melville nos deixou eco em Moby Dick (Cap. 41: "...there was said to be a lake in which the wrecks of ships floated up to the surface...").
Pelas 8 da noite do dia 1 de agosto de 1881, partiam de Santa Apolónia 42 “expedicionários”, comandados pelo próprio Capitão-tenente Hermenegildo Brito Capelo, a que se juntaram em Coimbra Júlio Henriques e 2 funcionários do Jardim Botânico da Universidade. Do Porto, virá Joaquim de Vasconcelos e de Guimarães Martins Sarmento, para integrar a Secção de Arqueologia.
Mais ou menos trajados de exploradores alpinos, espalharam-se pela Serra, Emygdio Navarro, Rodrigo Afonso Pequito, Jules Daveau, Jaime Batalha Reis e dezenas de homens, incluindo um corneteiro de Infantaria n° 12, para acordar o acampamento. O Diário de Notícias ironizava que era "toda a lã de um rebanho em cima de nós! Por sobre isto, revólver para lobos, toucinho para as víboras". Com os homens, seguiram carruagens de material científico, incluindo fotográfico. Entre todos eles, destacou-se o Dr. Sousa Martins (ainda não “santo”) de barrete verde à campino, a atender doentes e a congeminar a construção de sanatórios na Serra, para curar a “tísica” nacional.
Um dos estrangeiros que fez parte da iniciativa foi o botânico francês Jules Daveau. A sua prima-neta, Suzanne Daveau, que foi casada com o geógrafo e historiador português Orlando Ribeiro, e que ainda é viva, fez um artigo sobre a expedição, que aqui deixamos.
Aspectos da expedição (várias fontes)
A historiadora Helena Gonçalves Pinto, no Diário de Notíciasde 13 de Maio de 2012, também escrevia sobre a expedição:1 de Agosto de 1881. Pelas 20 horas e 15 minutos, partia da
Gare do Norte de Lisboa (Santa Apolónia) um grupo de 42 expedicionários
entusiásticos com a expectativa de uma viagem exploratória à serra da Estrela,
região ainda desconhecida, selvagem e, em grande parte, desabitada, que
encerrava em si mistérios e mitos. Partiram sob a aclamação calorosa de
numerosa assistência, de representantes do Conselho de Ministros, do presidente
e do primeiro secretário-geral da Sociedade de Geografia de Lisboa, do director
e de alguns lentes da Escola Médico-Cirúrgica e de um grande número de membros
da imprensa e das escolas superiores. Partiram enérgicos, sabendo que iriam
defrontar as forças dos elementos naturais e não as feras de África. As vinte e
três carruagens transportavam homens agasalhados com camisolas de flanela,
casacos de Inverno, duas mantas inglesas e, ainda, botas de tamanho descomunal.
Eduardo Coelho, o correspondente e director do Diário de Notícias, ironizava,
escrevendo já a partir da serra, que era "toda a lã de um rebanho em cima
de nós! Pôr sobre isto revólver, para lobos, toucinho para as víboras".
28 de Abril de 2012. Da mesma estação ferroviária, parte pela tarde um grupo de expedicionários, com destino à estação da Covilhã, percurso em que saboreámos, em Abrantes, os doces locais que as gentes desta cidade nos brindaram durante a curta paragem do comboio. De Lisboa, partimos imbuídos de um espírito de aventura e de revisitação dos passos dos inesquecíveis Brito Capello, Sousa Martins, Rodrigo Pequito, Mouzinho de Albuquerque, Jayme Batalha Reis, Martins Sarmento, Joaquim Vasconcellos, Júlio Henriques, Jules Daveau e muitos outros que representaram 12 secções e uma auxiliar pertencentes à recente Sociedade de Geografia de Lisboa (1875), promotora dessa expedição, enquanto a de agora teve a sua mobilização nas comemorações do centenário do turismo em Portugal (1911--2011), a fechar o seu ciclo comemorativo. A pernoita, nestes dias de revisitação, foi na Casa das Penhas Douradas, que serviu de quartel-general, a partir da qual se realizaram visitas a sanatórios e se calcorreou sensivelmente os mesmos trilhos do século XIX.
Presidida por Hermenegildo de Brito Capello, experiente explorador nas terras de África, a ideia da primeira expedição (1881) teve origem no ano anterior, a 5 de Julho, como projecto singular multidisciplinar, com orientação científica (pura e aplicada), com o objectivo de auxiliar o progresso das ciências médicas em território português. A proposta foi apresentada à Sociedade por Luciano Cordeiro, sob iniciativa de Luís Feliciano Marrecas Ferreira, contando com a entusiástica e esclarecida argumentação científica de Sousa Martins, "que pretendia instalar sanatórios na serra para tratar os tísicos portugueses".
A serra da Estrela, na época também designada de Hermínio, era uma região cujo fascínio levou a que, algumas vezes, fosse percorrida por pequenos grupos motivados pela aventura e pelas suas singularidades, levando-os a entrar em territórios desconhecidos para observar "as alagoas ou poços, a célebre montanha dos cântaros, o pomar de Judas, e outras celebradas raridades geológicas", muito sugestionados pela expedição que os especialistas em história natural, botânica e mineralogia, Link e Hoffmansegg, realizaram no século anterior, ou mesmo pelas descrições de J. Rivoli, em Die Serra da Estrela.
Um dos objectivos imediatos da expedição de 1881 foi o de estabelecer o posto meteorológico, um dos primeiros da Europa. O programa para esta instalação foi cuidadosamente preparado por Sousa Martins, já que as ciências médicas trabalhavam, inovadoramente, nas áreas prospectivas das patologias das altitudes, climatologia médica, flora aplicada à farmacopeia e meteorologia, as quais certificariam a instalação mais tarde da Estância Sanatorial.
A Comissão Organizadora conseguira o apoio político do Governo, e os municípios seriam decisivos para a concretização da expedição, sem o qual não teria sido possível a Sociedade de Geografia de Lisboa promover um projecto desta envergadura, que duraria 19 dias, com cerca de 100 homens, os especialistas idos de Lisboa, Coimbra, Porto e Guimarães e os das localidades da serra para trabalho auxiliar. Seguiram para aí laboratórios completos, com os equipamentos e intrumentos científicos de cada secção especializada, alguns deles construídos e adquiridos expressamente para a missão. A Estrela foi objecto de estudo, tornou-se laboratório e teve a maior concentração multidisciplinar de cientistas até à actualidade em Portugal.
Os expedicionários apenas transportariam uma diminuta bagagem de mão, podendo incluir alguns objectos pessoais e géneros selectos para consumir nos quinze dias de estada na montanha e, ainda, um bordão para os caminhos difíceis. No abarracamento da cumeada da serra, cada expedicionário encontraria uma maca de bordo e duas mantas, para cama; uma bacia de barro para lavagem; uma marmita para ração de cozinha; um cantil para ração de vinho.
Havia um regime alimentar rigorosamente militar, e todos à partida foram prevenidos: "Que os gastrónomos, se alguns vão, não criem ilusões. Hão-de contentar-se com um singelo rancho e rações. Às horas determinadas, salvo as indicações e conveniências de estudo: há as clássicas marmitas e cantinas. Um cozinheiro foi contratado em Lisboa e três ajudantes na Guarda. Haverá alvorada e silêncio a toque de corneta." Uma agressão violenta para cientistas citadinos, atenuada pelo espírito de missão.
Todos os dias chegavam notícias a Lisboa. O Diário de Notícias fazia um relato pormenorizado passo a passo, com as informações dos telegramas postais e das crónicas de Eduardo Coelho enviados de Seia. Os telegramas recepcionados na Redacção eram colocados à consulta de outros periódicos nacionais.
Os dias sucedem-se, os expedicionários percorrem a pé vários quilómetros, vencendo desfiladeiros e gargantas serranas. Apenas sossegam quando dormem de noite. Num ambiente de alegre camaradagem, as diferentes secções consomem o tempo, pesquisando, recolhendo, medindo e fotografando os elementos. A secção médica destacava-se, pela concorrência de visitantes, pelos instrumentos científicos e pela singularidade de Sousa Martins que, de barrete verde de campino - nasceu em Alhandra -, fazia clínica, observações, experiências e cirurgias aos aldeões que a ele se acercavam.
As excursões apresentavam-se surpreendentes, sobretudo a das lagoas, com a desmitificação da lagoa Escura, antes imaginada sem fim, a comunicar com o mar. O grupo ficou extasiado pela posição das mesmas, "separadas uma da outra por uma faixa de granito de alguns metros de extensão, contornada por zimbros formosos", num cenário de uma beleza notável, e sem "monstros do abismo e o mouro encantado", figuras que evadiam a imaginação dos cientistas antes desta experiência pioneira. O grupo estava maravilhado: o horizonte parecia infinito.
Houve jantares invulgares e até uma procissão já no final
para se proceder à devolução, entre as secções, dos instrumentos científicos,
que foram elevados ao lugar de Santos. A população local foi, aliás, um
parceiro determinante, aparecendo em massa no acampamento e contribuindo para
avaliações médicas e partilhando lendas e histórias, verdadeiras e ficcionadas.
Algumas destas perduram, tal como a imaginação de quem ainda se aventura, sob o
sonho de querer e saber, acreditando que a serra é, ainda, muito mais que o
manancial de informação que essa experiênca científica nos deixou e que, nestes
dias, recriámos, também com aventura, festa, foguetes, música, jantares,
piquenique, exposições e, sobretudo, com as gentes locais.
Pelas terras de Manteigas, Seia e Guarda, revivemos passos antigos, num palco privilegiado para viver experiências únicas, envoltas da nobreza das paisagens, das encostas vertiginosas, das lagoas e das pedras esculpidas, dos vales glaciares, das águas termais, da pureza do ar e do silêncio cristalino. Discreta, mas contagiante, a serra da Estrela foi uma aventura há mais de um século e, hoje, contém nela o turismo do futuro, onde o científico se revela em toda a extensão do olhar.
Hermenegildo Capelo
Finalmente, a Câmara Municipal de Palmela, de onde a família Capelo era natural, acaba de editar um opúsculo, onde refere a expedição à Serra da Estrela, mas também uma outra, à Serra do Gerês, no ano seguinte, em 1882.
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