Ricardo Augusto Pereira Guimarães, Visconde de Benalcanfor
Bruxelas é uma Paris de algibeira. Paris tem a alegria estrepitosa
de uma garrafa de champanhe, que não pode desrolhar-se sem que a rolha salte ao
tecto das casas e a espuma transborde dos copos. Bruxelas é límpida e sossegada
como uma garrafa de vinho velho de Macon, esgotada pacatamente entre dois compadres
de bom humor. Em Paris, as aventuras escandalosas são um passaporte de
celebridade, o pudor um pleonasmo, a sinceridade uma velharia provinciana, a
inconstância uma galanteria… Já as mulheres de Bruxelas transmitem concentração
da alma, fé profunda, sem os artifícios da hipocrisia.
Esta é, pelo menos, a opinião do autor de “Impressões de
viagem: Cádis, Gibraltar, Paris e Londres”, de 1869, tinha a Bélgica escassos 40
anos. Um excerto dessa obra é publicado no Almanaque das Senhoras para 1874, de
que há um exemplar no Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera.
O artigo é assinado “Visconde de Benalcanfor”. Trata-se de um
título nobiliárquico criado em 1870 por D. Luís, em favor de Ricardo Augusto Pereira Guimarães (1830 – 1889), aliás seu único titular. Hoje personagem quase
totalmente esquecida, Ricardo Guimarães foi o mais importante precursor da
literatura de viagens no século XIX de língua portuguesa. Natural do Porto, de
família burguesa abastada, fez parte do Batalhão Académico aquando da Revolução
da Maria da Fonte. Liberal, participou na Guerra da Patuleia ou na Revolta do
Entrudo. Fez-se bacharel em Direito, por Coimbra.
Jornalista, escritor, político, foi amigo de Camilo Castelo
Branco. Mudou-se para Lisboa, colaborou com vários jornais. Filiado no Partido
Histórico, foi deputado e Par do Reino.
Fez várias viagens, que relatou em obras como “No Cairo”, “De Lisboa ao Cairo (Scenas de Viagem)”, “Na Itália”, “Viena e a Exposição” ou as referidas “Impressões de Viagem: Cadiz, Gibraltar, Pariz e Londres”. Traduziu o Quixote, de Cervantes. Foi o encarregado do Elogio Fúnebre de D. Fernando II. Da obra “O Cozinheiro dos Cozinheiros”, coordenada pelo seu amigo gastrónomo e com estabelecimento de relojoaria na baixa de Lisboa, Paul Plantier, o Visconde de Benalcanfor deixou-nos uma receita de Bolo Real.
É do amigo Camilo que respigamos, daqui (https://wordincontext.com/pt/benalcanfor) excertos de prosa de “Noites de Insónia oferecidas a quem não pode dormir”, onde se refere a figura de Ricardo Augusto Pereira Guimarães, Visconde de Benalcanfor:
Fez-se um silencio de annos na sua voga de escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com elle a espora de cana em algaras litterarias, trajaram luto quando se convenceram que o visconde de Benalcanfôr era o epitaphio de Ricardo Guimarães. [...]
O visconde de Benalcanfor, Ricardo Guimarães, aquelle florido talento que disputou a Lopes de Mendonça as galanterias do folhetim; Ramalho Ortigão, o prosador elegantissimo, o fidalgo da graça senhoril, a revelação mais assignalada que ainda tivemos do espirito francez; Alberto Pimentel, a quem se estão desentranhando em fino ouro os minerios mais copiosos da vernaculidade; Sousa Viterbo, dulcissimo poeta e prosador correcto, estes, que seriam para o Porto bastantes padrões de sua litteratura, passaram para Lisboa; e Silva Pinto, a escoria da cainçada litterateira de Lisboa, baldeou-se no Porto.[...]
D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas resplandecentes do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no boleio da phrase ligação que é uma formosura, quando o escriptor tem a consciencia d'essa difficultosa amalgama. Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de viagens.[...]
Na altura da sua morte, em Novembro de 1889, o periódico de Rafael Bordallo Pinheiro, “Pontos nos ii". homenageia o Visconde com uma nota necrológica, assinada Irkan, nome literário de Fialho de Almeida:
O visconde de Benalcanfor, que a morte acaba de tragar em plena seiva da vida madura, era um dos mais puros representantes da geração litteraria de ha trinta annos, e um dos mais desempenados folhetinistas d'essa plêiade de phraseurs que veio com Lopes de Mendonça, popularisar em artigos soltos, as ligeirezas d'estylo papilotant que Garrett inaugurara em Portugal, com as Viagens. (...) Fino e voluptuoso, com a sensibilidade delicada mas instável, a sua litteratura era assim uma coisa incorpórea como a renda, de que se admira o trabalho inconsistente, mas com que se não pôde agazalhar afinal um corpo nú. A cada passo, no vestir do assumpto, a imaginação da phrase engolphava-lhe os períodos de locuções similares e cambiantes, tumultuosas às vezes, a ponto de lhe comprometerem a nitidez da ideação. E como acontece aos folhetinistas que não teem por traz da forma descuidosa, o arcabouço d'uma poderosa cultura litteraria, renovada sem tréguas, dia a dia, sempre que na factura dum artigo não intervinha a imaginação do signatário, apoderava-se do leitor uma espécie d'enfado, e nasciam as duvidas quanto á sinceridade artística da obra, e quanto ao valor dos seus meios de execução.
Sem comentários:
Enviar um comentário