A Rua Augusta, vista do Arco
O vespertino A Capital dedicava a 29 de Junho de 1916, em pleno conflito mundial, e quando Portugal se preparava para nele entrar com tropas, um artigo de página inteira, não assinado, ao comércio da Baixa alfacinha.
"A Rua do Ouro – Os seus principais estabelecimentos – Um pouco de história e de tradição" seria o que hoje poderíamos classicar de publi-reportagem, pois pensamos que "quem não pagou, não apareceu". Mas, mesmo assim, vale como documento para quem, como nós, se interessa pela evolução do retalho nacional, especialmente nos ramos da relojoaria, ourivesaria ou joalharia.
Tem causado algum debate o post que aqui deixámos ontem, onde se fala da decadência do comércio na Baixa pombalina. Vamos continuar a acompanhar o processo, e os excertos de hoje, do artigo supracitado são apenas mais um contributo para o tema. São poucas as lojas referidas no artigo que ainda hoje sobrevivem.
“Antes do terramoto de 1755, a baixa de Lisboa, e principalmente aquela rua que ia da Betesga à Sé, era um dos bairros mais notáveis da Europa". É assim que começa, sem falsas modéstias, o artigo de A Capital. "Nenhuma rua, como aquela, possuía mais opulência. Nenhuma outra tinha maior número de palácios. Todos os vice-reis das Índias, que de lá vinham carregados de riquezas, ali construíam os seus palácios góticos, d’uma maravilhosa beleza arquitectónica, como ainda hoje pode verificar-se pelas gravuras do tempo. Minaretes formosíssimos, arcarias sumptuosas, armazéns de especiarias, de brocados, de preciosidades orientais, tudo isso se acumulava na Rua Nova, onde os mercadores judeus faziam o seu negócio opulento, enriquecendo com os produtos das Índias e do Brasil e semeando, ao mesmo tempo, em volta de si, a actividade comercial mais intensa".
Quanto ao sector de ourivesaria, joalharia e relojoaria, o artigo refere:
[…] "Pombal, reconstruindo a Baixa, quis meter ordem: o método na distribuição dos estabelecimentos comerciais, agrupando-os pelas diversas ruas, conforme o género do comércio por eles explorado". […] "Foi ali (na rua Áurea, ou do Ouro) que se estabeleceram os ourives".
Na esquina da Rua do Ouro para o Rossio, nºs 292 a 294, refere-se a Relojoaria Botelho. “É das mais afreguesadas de Lisboa. Nessa casa, que é das mais antigas, só se vendem relógios das marcas mais afamadas. A relojoaria Botelho, pelas suas étalages artísticas e pelo cuidado com que realiza todas as suas transacções, bem merece ser também colocada ao lado das casas modernas que, na Rua do Ouro, se esforçam por manter a tradição que distingue essa artéria da Baixa, seguramente a mais importante”.
Anúncios à Relojoaria Botelho, n'A Capital de Julho de 1916. No de cima, parece ler-se Berthoud no mostrador do relógio maior (arquivo Fernando Correia de Oliveira)
Anúncio de Abril de 1905, no Diário de Notícias, à Longines e à Relojoaria Botelho (arquivo Fernando Correia de Oliveira)
[…] "Os ourives, ainda há cinquenta anos coravam, em fogareiros apropriados, à porta dos seus estabelecimentos, o oiro de que se serviam para os seus trabalhos".
Fala-se da ourivesaria de José Inácio de Araújo, “poeta popular” a quem pediam versos para casamentos, baptizados e brindes. “O poeta corava também o seu ouro, como qualquer colega. Era um homem atraente, que tinha sempre para quem o abordava um dito cheio de espírito, à moda antiga. A sua sobrecasaca fazia parte integrante da sua toilete. O grande e vermelho lenço tabaqueiro era seu apêndice ornamental característico e preferido. Gozava na rua de grandes simpatias, por ser homem probo e serviçal. Com o irmão, ourives como ele e estabelecido nas suas vizinhanças, acontecia outro tanto".
[...] E o Plantier relojoeiro? Quem não conhece nesse atleta de cabeleira hirsuta e cabeça leonina, relojoeiro afamado e exímio cultor de rosas?". Era uma das más-línguas mais temidas da cidade.
Exemplar de mesa, assinado Paul Plantier et Fils, Lisbonne (arquivo Fernando Correia de Oliveira)
Fala-se ainda da Ourivesaria Tavares Ferreira, nos nºs 171 a 173 da rua do Ouro ou da loja de ourives “de um irmão do grande jornalista Mariano de Carvalho”.
Do ponto de vista mais geral, […] "Fazer a história da Rua do Ouro nos últimos 50 anos, é fazer um pouco a história do comércio alfacinha durante esse mesmo espaço de tempo. Há casas que se tornaram célebres e há outras que souberam cercar-se de uma tal dose de interesse que não é possível apaga-las da memória dos que as conheceram e dos que, pelos anos além, têm assistido à suas transformações".
Referem-se depois vários estabelecimentos, como a Tabacaria Costa, os cambistas Pão Quente e Silva; a Casa Lopes de Sequeira (confecções); o vidraceiro Torre; a fábrica de chapéus de senhora de Jaime Pinto; o Mercado dos Inocentes (loja de quinquilharia, de José Maria da Silva); a florista e plumista Fanny; os armazéns Chitas (de têxteis de fancaria, com três andares e os seus “atentados ao bom gosto e à tradição portuguesa”); a Rouparia Moderna (de Marques e Guimarães); a casa de máquinas de costura de Thomaz Appleton, “um inglês de barbicha loura, alto e magro”; uma retrosaria, onde foi “durante muitos anos a estação central da Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte e Leste”, a tabacaria Tasso; a florista francesa Louise, com “cravos vindos directamente de Nice”; a Salsicharia Internacional; a Maison Parisiense, de Eile Lagarde, que passou de pastelaria a restaurante de luxo; a livraria Afra; o “faz-tudo”, homem que “concerta os mais variados objectos e deita remendos em tudo o que para isso lhe apresentam”; a Casa dos Candeeiros ou casa Gomes Ferreira; o café Áurea; o Salão Sport, agente de “La Révue de Monte-Carlo, jornal científico que contém as permanências autênticas da roleta e se publica em Nice” e fornecedor de todos os artigos necessários nos diversos géneros de “sports”, como “lawn-tennis”, “foot-ball”, “croquet”, ciclismo, ginástica, etc. “A sua colecção de cartas de jogar tanto nacionais como estrangeiras é notável”; a Casa Chineza, de cafés, chás e artigos orientais; a farmácia Matos Miranda, de um monárquico, e que o Instituto Pasteur adquiriu, tornando-a na Farmácia Pasteur; a Casa da Madame Arrigotti, francesa que introduziu em Portugal a indústria do espartilho; os fabricantes de espartilhos nacionais Santos Matos e Cª; a Papelaria Vieira; a casa de brinquedos de António Cândido de Menezes, onde o palhaço Wythoine teve a sua tabacaria; os escritórios da Companhia de Seguros Portugal; a casa de modas de Vieira dos Reis, que foi “um distinto amador dramático”; a Loja das Utilidades, com novidades úteis no uso doméstico; um engraxador, que tomou o lugar de outro, um galego alto, de grande barba preta até quase à cinta, e que tinha tabuleta onde se intitulava “Professor na sua arte de engraxador”; o alfaiata Hauteville, vizinho do relojoeiro Plantier. “Ele e Plantier eram conhecidos como os piores más-línguasda rua do Oiro”; a Livraria Ferreira, instalada onde foi a antiga Livraria do Carmo; o Freire gravador; a Loja da América, com artigos de rouparia; o escritório de transportes terrestres e marítimos entre a França e Portugal, de Apolinário Pereira; a casa de bordados de Silva Roda; a Lisboa à moda, camisaria; a casa de tecidos de Manuel Bernardino Valente, “dos poucos que iam a Paris fazer os seus sortimentos”; a Camisaria Santos, cujo dono “viaja constantemente para Paris e Londres”; a Loja das Novidades, que vendia flores artificiais e cujo dono se arruinou com a política; a alfaiataria Pinto e Guerra; os armazéns Barros & Santos, de roupa e artigos de viagem; a Papelaria Viúva de Manuel da Costa Mrques & Cª; a Agência Havas. O Banco do Povo; a casa Nunes Correia, de pronto-a-vestir masculino; a casa de câmbios de Eduardo A. Fernandes; a papelaria Estevão Nunes; a chapelaria High-Life, onde antes era a ourivesaria Mergulhão; o Banco Comercial; o Banco Lisboa e Açores; a casa Valle Flor & Cª, de produtos comerciais; a Sociedade Portuguesa de Seguros; a Papelaria Progresso; a papelaria Paulo Guedes & Saraiva; a casa de câmbios Godinho & Falcão; o banco Pinto & Sotto-Maior; a casa de brinquedos Bazar do Povo; a perfumaria Rosa de Oiro; a Papelaria Palhares, que editava um almanaque.
1 comentário:
No Pronto-a-vestir masculino Nunes Correia comprei eu umas calças à boca-de-sino em meados da década de 70 do século passado.
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