Somos todos horrendamente egoístas. Nunca tive como hoje a sensação do que valem todas essas florescências admiráveis da vida nobre, as belas idéias, os ideais formosos, os sentimentos altos e delicados.
Nem bem Rufina desaparecera de minhas vistas, aquilo de eu a ter comparado mentalmente a uma alma despojada de mundanidades, nua, inteiramente nua, voltou a borboletear-me no espírito como um remorso gostoso. E lembrei-me logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como uma dessas igrejas que levam anos a construir e ficam anos à espera de recursos.
Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem.
Rufina, de passagem por mim tocando-me de leve, pusera-me em movimento a engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente num pé de "mimosa pudica", ou como quem sacode sem o querer um relógio engasgado, fazendo-o trabalhar.
É essa a finalidade dos outros, no sistema especial da nossa vida de cada um: pôr em movimento algum dos relógios engasgados que temos conosco.
Amadeu Amaral, in Memorial de um Passageiro de Bonde, Rufina e o Soneto
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