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domingo, 20 de outubro de 2013

O luxo à beira da overdose - análise no Fora de Série Especial Relógios




Artigo de análise no Fora de Série Especial Relógios 2013, do Diário Económico:

O futuro do luxo ou a busca da simplicidade distintiva

À beira da overdose

Fernando Correia de Oliveira

Os chineses estão a caminho de comprar 30 por cento dos produtos de luxo produzidos no mundo, quando em 1995 compravam apenas 1 por cento. O interesse chinês num determinado item provoca imediato aumento do preço. Carros e relógios vintage estão agora na berra. Mas a bolha pode rebentar.

Tomemos a parte pelo todo. À elite aristocrática e burguesa, clientela histórica da Place Vendôme, em Paris, sucederam, nos últimos 40 anos, classes sociais novas: tudo começou com os oligarcas do Médio Oriente e os seus petrodólares, nos anos 1970; seguiram-se os “golden boys” do início dos anos 1980, com o dinheiro ganho na especulação financeira; depois, vieram os japoneses e as grandes corporações nipónicas, a que se seguiram os que enriqueceram com o boom informático e imobiliário; finalmente, chegaram os chineses.

A progressão espectacular, inesperada no início, do luxo ocorre de 1975 a 1990. Todo o mercado do luxo foi abalado, o consumo de produtos de luxo ultrapassa pela primeira vez as fronteiras do universo de referência original. O perfil do consumidor, antes desta explosão, era fácil de desenhar – raro, rico, exigente e caprichoso. Com o alargamento do número de consumidores de luxo, chegam os elementos da classe média. A imagem de luxo enraizado numa tradição de séculos, reservado a uma elite de privilegiados, desapareceu.

Por outro lado, o produto de luxo começou a aparecer nas grandes e médias superfícies. Nasce assim uma nova categoria de consumidores de luxo. A grande distribuição propõe essencialmente produtos de luxo alimentares como sejam o caviar, o salmão fumado, o paté, os vinhos grands crus…

O aparecimento de jóias e de relógios de ouro nas grandes superfícies contribui igualmente para atrair ao luxo uma nova clientela – “o apetite vem com o comer”.

Um estudo europeu, realizado há exactamente 20 anos mostrava que 46 por cento dos europeus tinham adquirido um produto de luxo considerado “excepcional” no decurso dos três anos anteriores. Por nacionalidades, os italianos comandavam, seguidos dos franceses, ingleses, espanhóis e alemães. Hoje, com a crise a atingir a maior parte destes países, o consumo de luxo só não baixa porque o factor turismo consegue anular o seu efeito negativo. Paris, Londres, Roma ou Madrid são gigantescos centros comerciais onde chineses, brasileiros e outros chegam todos os dias, em multidões mais ou menos organizadas, para comprar.

A massificação do luxo, a sua banalização, implicam um deslocamento correspondente da expressão de diferenciação para uma sofisticação muito mais elevada ou – parece contraditório, mas não é – para um carácter de simplicidade distintiva, em oposição ao comportamento da maioria.

Por outras palavras, os muito ricos e sofisticados procuram desesperadamente fugir daquilo que as novas massas de consumidores (sobretudo chinesas) compram. Neste jogo do gato e do rato, há nichos que esses muito ricos e sofisticados frequentam, na esperança de não serem descobertos pelo dinheiro novo.

Desde logo, a arte e os seus leilões. Recorda-se a fase, nos anos 80, em que quadro de pintor ocidental cotado que fosse à praça era arrematado invariavelmente, por preços recorde, pelas grandes corporações japonesas. Começa a assistir-se a esse fenómeno em relação à China. Para já, as grandes empresas chinesas estão preocupadas, compreensivelmente, em conseguir recuperar tesouros nacionais roubados ou vendidos nos últimos séculos – pintura, caligrafia, porcelanas… Mas já começam a dominar leilões de outros artigos de luxo, como sejam champanhes e outros vinhos ou relógios.

E, sabe-se, quando os chineses chegam, a bolha começa a encher. Veja-se o fenómeno recente – acentuado nos últimos 5 anos – do mercado dos carros clássicos. Modelos europeus dos anos 1920 e 1930 são agora procurados avidamente pelos novos-ricos chineses, que encontram aqui uma forma de se diferenciarem, e de que maneira, do seus conterrâneos. Resultado – a valorização de marcas e modelos vintage está sobreaquecida. Colecções privadas europeias e norte-americanas seguem, por inteiro, para a Ásia. Fundos de investimento entram na bolha, ajudando-a a encher.

Os maiores leilões de carros, relógios, vinhos, pintura, começam a ser realizados cada vez mais em Hong Kong, entram já pelas grandes cidades chinesas, como Shanghai ou Beijing. Para além do luxo massificado, a China faz agora inclinar a balança a seu favor no luxo mais exclusivo.

Os chineses, eles próprios estão a braços com uma bolha imobiliária que, quando rebentar, poderá ter consequências imprevisíveis para toda a economia mundial. Os ricos chineses, depois de terem especulado no imobiliário, fogem agora dele, refugiando-se em tudo o que é vintage e ocidental. Como o factor multiplicativo chinês é sempre, no mínimo, da ordem dos milhões de potenciais consumidores, essas peças vintage, sejam carros, jóias, mobiliáro, relógios ou quaisquer outras, vão desaparecendo dos mercados europeu e norte-americano. Os preços dos Porsche, Jaguar, Ferrari, Aston Martin ou Mercedes vintage nunca estiveram tão elevados. Peças sobressalentes começam a envolver todo um mercado negro, para abastecer o restauro e reparação, agora já não na Europa, mas na China.

Repressão à corrupção

Mas as autoridades chinesas estão também atentas a isto tudo. Começou recentemente no país uma das cíclicas campanhas contra a corrupção. Aparentemente, isso irá afectar em muito a indústria do luxo.

O serviço de banquetes foi seriamente afectado quando as autoridades começaram a controlar e a reprimir os gastos das empresas com despesas de representação. A partir deste ano, os banquetes oficiais deixaram de ter 10 pratos – passam a ter 3 e uma sopa. Para a tradição chinesa da milenar arte de estar à mesa, isso é um duro golpe.

Em Junho passado, o Secretário-Geral do Partido Comunista e Presidente chinês, Xi Jinping, falou aos órgãos de comunicação social de Beijing sobre a sua preocupação em “limpar completamente” a sociedade “de quatro formas de decadência: formalismo, burocracia, hedonismo e extravagância”.

Num país onde os eventos das empresas, a oferta de presentes e a ostentação de riqueza são práticas quotidianas no acelerado mundo de negócios, esta campanha começa a fazer-se sentir nas marcas de luxo ocidentais ali instaladas. A nova campanha proíbe taxativamente o uso de presentes de luxo. Desde Fevereiro, há uma proibição de publicidade na radio e na televisão a artigos de luxo, com a justificação de que isso promove valores incorrectos e encoraja as “luvas” e a corrupção.

Um estudo recente do The Economist Intelligence Unit mostra que as prendas empresariais representam 25 por cento do consumo de artigos de luxo na China.

Uma tendência curiosa começa, no entanto, a surgir entre os jovens consumidores chineses, que são cada vez menos entusiastas em relação a produtos com marca, procurando antes artigos que não se imponham tanto à vista nem digam de forma tão “blin-bling” que tiveram sucesso na vida.

Os últimos números das exportações relojoeiras suíças mostram claramente uma desaceleração, da ordem dos dois dígitos, para Hong Kong ou China continental, os seus dois principais mercados.

Aparentemente, os cidadãos privados chineses continuam a comprar, mas fora do país. E os funcionários da administração ou das empresas públicas começam a ter mais cuidado, para não chamarem a atenção para si e para o relógio que possam levar no pulso.

Sinal sintomático de novos ventos que sopram desde Beijing é o facto de o filme “Um Toque de Pecado”, do realizador Jia Zhanke, vencedor do Festival de Cinema de Cannes deste ano, ter sido aprovado para exibição em todo o país, sem cortes. O argumento gira à volta de quatro personagens cujas vidas foram negativamente afectadas pela corrupção do sistema chinês.

A sociedade chinesa regista todos os anos dezenas de milhares de protestos espontâneos, contra actos de corrupção. O equivalente chinês do Facebook, a rede social Weibo, tem entretanto colocado fotografias do Presidente Xi Jinping a encontrar-se com dirigentes locais. Estes não exibem relógios nos pulsos. Mas são claras as manchas menos bronzeadas, do feitio de relógios… que por agora ficaram “na clandestinidade”.

Os muito, muito ricos

Em termos globais, houve nos últimos anos uma mudança demográfica acentuada no segmento social dos ricos. “Cerca de 92 por cento dos indivíduos mais ricos do mundo ganharam as suas fortunas por si, não as herdaram”, diz a especialista norte-americana Lorre White. “E cerca de 80 por cento deles fizeram as suas fortunas apenas nos últimos dez anos ou menos. Isso quer dizer que a maioria dos ricos de hoje não sabe muito de marcas de luxo e da sua história”. Ora, a grande maioria dos novos-ricos são chineses.

Como é que as marcas conseguem fugir à banalização do luxo, e ao mesmo tempo, continuar a fazer o seu negócio junto de quem tem dinheiro para comprar o que produzem?

Surge, então, o conceito de consumidores Ultra High Net Worth, aqueles que representam 2 por cento da população mundial (menos de 200 mil pessoas) e que controlam metade da riqueza global. E que estão dispostos a pagar 100 milhões de euros por um iate, 150 milhões por um jacto privado ou 2 milhões por uma grande complicação relojoeira, exemplar único.

As marcas de luxo que costumavam viver, do ponto de vista comunicacional, apenas da sua reputação, “têm agora que educar mais agressivamente este tipo de super-ricos sobre a história, filosofia e produto que disponibilizam”, faz notar Lorre White.

“A maneira como o luxo é encarado mudou radicalmente nos últimos anos”, diz. “Ser snob, hoje, é não ser claramente visto como um consumidor de marcas de luxo”.

“Os media digitais redefiniram como os consumidores e as marcas de luxo comunicam entre si. E o modelo de marca de luxo como um templo, que se considera a derradeira alta autoridade está rapidamente a desaparecer”, conclui aquela que se autointitula como Guru do Luxo.

O investimento chinês na relojoaria

No final de Abril, o sector relojoeiro suíço ficou surpreendido com a notícia de que capitais chineses tinham adquirido uma das marcas independentes mais fortes – a Corum.

Isso fez soar os alarmes entre comentadores e agentes do mercado, que receiam o investimento chinês – por o considerarem especulativo (de curto prazo); por considerarem isso um perigo para o Swiss Made e para segredos tecnológicos que a indústria detém.

Antes da Corum, já tinham sido adquiridas marcas como a Milus, a Technotime, a Universal, a Codex ou a Eterna. Algumas delas, possuindo na fileira industrial o sector estratégico dos calibres. Assim, indirectamente, a Porsche Design, cujos calibres têm sido até agora fornecidos pela Eterna, passou também na prática para controlo chinês.

Temos contactado, nos últimos meses, vários CEOs da indústria relojoeira suíça. A todos colocamos a questão da ofensiva de investimento chinês no sector. Como termos referido, os mais pessimistas vêm nesta ofensiva chinesa no sector do luxo ocidental uma perda de identidade, uma transferência de savoir-faire, uma perda do contacto com uma rede de clientes, que passa a estar à disposição dos chineses.

Fazem notar muitos observadores que o proprietário chinês – na generalidade, o asiático – tem normalmente a tendência de querer focalizar a sua estratégia de marketing segundo o contexto do seu próprio mercado. Mesmo que ele represente uma parte importante do seu volume de negócios, uma nova estratégia de comunicação assim dirigida irá “achinezar” a imagem de uma marca, penalizando-a em outras regiões do mundo.

Mas um histórico como o CEO da Tissot, François Thiébaud, dizia-nos há dias: “Este tipo de reacções soa sempre um pouco a xenofobia. Se o investimento chinês ajudar ao desenvolvimento de uma marca, se criar postos de trabalho na Suíça, se respeitar as regras de trabalho vigentes, se cumprir o Swiss Made, qual é a importância de ser chinês ou de qualquer outra nacionalidade?”

Do ponto de vista sociológico, as coisas não são assim tão simples. Também como temos referido, a médio e longo prazo, poderá estar-se perante um ciclo vicioso – os chineses deixam de comprar, porque a marca já não lhes dá o estatuto aspiracional de luxo ocidental; os ocidentais deixam de comprar, porque a marca se “achinesou”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns amigo Fernando por mais este artigo/reflexão e acima de tudo com uma resenha histórica e antevisão do que este tema tão atual e importante no setor relojoeiro.

Um abraço deste seu amigo.

Paulo Anastácio

Fernando Correia de Oliveira disse...

obrigado, Paulo. Abraço