Este oficial tinha vindo a Portugal para observar, em Aveiro, o eclipse total do Sol que iria ocorrer a 26 de Outubro de 1753, a fim de determinar a longitude desta cidade. Estas observações permitiram reconhecer erros nos cálculos anteriormente feitos.
Em 1754 Magalhães pediu ao papa Bento XIV autorização para abandonar o mosteiro, a fim de fazer uma “viagem filosófica” e a Cúria Romana emitiu nesse sentido um breve de secularização.
Magalhães saiu de Portugal em 1755, não sem antes ter testemunhado o terramoto que atingiu Lisboa em 1 de Novembro desse ano, escrevendo mesmo sobre o fenómeno. Desde essa data e até 1764, Magalhães (mais conhecido no mundo de língua inglesa pelo nome com que publicava a maioria dos seus trabalhos, Jean-Hyacinthe Magellan) viajou pela Europa, servindo de tutor a vários jovens, até se estabelecer em Inglaterra. Em Paris, o seu nome tornou-se conhecido pela colaboração prestada a jornais de ciências e letras. Data de então a amizade que o ligou ao marquês de Condorcet e a outras figuras do pensamento científico. Em 1766, já radicado em Inglaterra (onde morreria, em 1790), mantinha-se em comunicação com vários membros da Royal Society of England. Trocava também correspondência com os membros da Academia Real das Ciências de Lisboa, de que foi nomeado membro correspondente.
Embora Magalhães tenha publicado poucos trabalhos com ideias verdadeiramente originais, a sua importância para os historiadores da ciência moderna reside na sua volumosa correspondência com cientistas dos mais qualificados do seu tempo. Diz-nos Joaquim Veríssimo Serrão, na sua História de Portugal: “Não tendo exercido na cultura nacional um papel tão relevante como o de [Luís António] Verney ou Ribeiro Sanches, o padre Jacinto de Magalhães foi, todavia, uma das figuras mais definidas do pensamento luso no estrangeiro”. E acrescenta: “Cientista de formação, promoveu estudos de filosofia empírica, defendendo o valor da observação e da experimentação como base renovadora do ensino no nosso país”.
As cortes portuguesa, espanhola, francesa ou prussiana encomendavam-lhe a aquisição de instrumentos, como lentes, telescópios, máquinas paralácticas, relógios astronómicos, micrómetros. Instituições nacionais como a Universidade de Coimbra, a Companhia de Guardas-Marinha, a Casa Pia ou o Colégio Real de Mafra também lhe faziam encomendas de instrumentos científicos. Ele próprio supervisionava a concepção e construção desses instrumentos. Enquanto instrumentista, propôs alterações e melhoramentos em instrumentos de observação astronómica e náutica ou no relógio de pêndula.
Em 1778, João Jacinto de Magalhães é também encarregado de estudar a hipótese de compra, em Londres, de uma máquina de vapor, mas só em 1804 ocorre a primeira tentativa de introdução dessa invenção em Portugal, com fins industriais (nas minas de carvão de Buarcos). E, sintomaticamente, apenas em 1821 a introdução da máquina a vapor no país, aplicada à indústria, se concretiza...
Para uma História do Tempo e da Relojoaria em Portugal, o nome de João Jacinto de Magalhães terá que ser sempre incluído, tanto no plano teórico como no prático. Ele escreveu, por exemplo, no Journal de Physique, do abade Rozier, uma “Description d’une pendule et d’un baromètre portatif (invenção do autor)”
Em 1777, Magalhães dirige-se ao célebre relojoeiro francês Le Roy, falando de pára-raios. Comunica-lhe o envio de uma caixa com os Nautical Almanach (em que colaborava), da parte de Maskelyne, para Jeurat, Laland, Boscovich, Bailly e Messier. Pede que comunique a Lemonnier que as observações astronómicas, sobre a bússola e os relógios marítimos, feitas nas últimas viagens de Cook e Fourneaux acabam de ser impressas e estarão à venda em breve.
Na sua memória Notice dês Instruments d'Astronomie, de Géodesir, de Physique, [...] Faites par ordre de la Cour d'Espagne..., publicada em 1780, Magalhães refere-se a relógios astronómicos de pêndulo que envia, descrevendo-os e indicando quais os melhoramentos que considera de sua autoria.
Todos os relógios deste tipo, constituintes destas colecções, foram feitos segundo os planos de Graham, tendo o primeiro sido feito por Grignion, com adaptações, propostas por Magalhães. A solução do cientista português é fazer um mecanismo com ponteiros de segundos, minutos e horas descentrados, dizendo ele que isso diminuiria o atrito.
Outro melhoramento proposto e posto em prática diz respeito à regulação do pêndulo. Coloca também safiras nas palhetas da âncora de escape, reduzindo atrito e desgaste (o papel que os rubis, antes naturais, hoje artificiais, continuam a ter nos mecanismos relojoeiros). Quanto ao material em que a barra de pêndulo é feita, trata-se de pinho, com as fibras direitas e uma secção transversal, submetida a uma secagem durante 24 horas, em forno, e em seguida envernizada. Depois deste tratamento, e tendo efectuado mais de “mil ensaios rigorosos”, Magalhães conclui que não havia qualquer alteração no seu comprimento, tanto face a oscilações térmicas como da humidade do ar.
Em 1781, Magalhães recebe uma carta de B. Vulliamy, de Londres, que lhe envia preços de relógios. No ano seguinte, Magalhães escreve ao ministro português Martinho de Melo e Castro sobre os instrumentos encomendados para o bispo de Beijing. (Os religiosos ocidentais na China sempre se impuseram na corte imperial através da superioridade técnica das suas máquinas, especialmente os relógios, como referimos anteriormente). Aliás, em 1768, Magalhães diria numa carta a Ribeiro Sanches (nessa altura a viver na corte russa) que fora ver umas “máquinas prodigiosas e preciosas”, que de Inglaterra iam ser remetidas aos Imperadores da China e do Mogol (Índia), constituídas por figuras de animais, que eram movimentadas por um sistema de relojoaria.
Vários instrumentos científicos comprados e ou modificados por Magalhães, como um relógio de pêndulo semelhante ao acima descrito, resistiram até aos nossos dias e podem ser admirados, por exemplo, no Museu de Física da Universidade de Coimbra ou no Observatório Astronómico daquela cidade. Em Lisboa, haverá exemplares assinados por Magalhães em dois Institutos Geográficos e num Observatório Meteorológico.
Na pista de instrumentos criados ou adaptados pelo português, chegámos ao inglês Journal for the History of Astronomy, que editava em 1986 um pequeno livro intitulado The Greenwich List of Observatories, (foi publicado primeiro no Journal for the History of Astronomy, Volume 17, parte 4, Novembro de 1986). A ideia fora lançada dez anos antes, numa reunião da União Astronómica Internacional, em Grenoble, França: o histórico observatório de Greenwich ficaria encarregado de fazer um levantamento detalhado dos principais instrumentos astronómicos e relógios, observatório por observatório, desde que fabricados entre 1670 e 1850.
Desconhecemos se a lista voltou a ser actualizada. Os contribuintes portugueses foram E. Cabrita, de Lisboa e J. M. Reis Abreu, de Coimbra.
Como já referimos, há um relógio no Gabinete de Física da Universidade de Coimbra, assinado por Magalhães, assinalado nesta obra. Mas não há sinal de outros instrumentos do mesmo autor no Observatório do Paço (no Terreiro do Paço, destruído no terramoto de 1755), no Observatório Jesuíta (Colégio de Santo Antão), no Observatório da Congregação dos Oratórios (Real Colégio de Nossa Senhora das Necessidades), no Observatório da Real Academia das Ciências (entre 1787 e 1798 situado na torre oriental do Castelo de São Jorge), no Real Observatório Naval (na actual rua do Arsenal), todos em Lisboa, ou no Observatório de Mafra.
No entanto, a lista inclui relógios de Magalhães existentes nos Observatório de Helsínquia (um), Florença (um), Gdansk (Polónia, um) e Madrid (dois).
Estranhamente, não se conhece um único retrato de João Jacinto de Magalhães. Mas os trabalhos e a notoriedade valeram-lhe, como já dissemos, o ser eleito para as mais prestigiadas academias científicas do seu tempo. Em 1784 era feito membro da American Philosofical Society (APS). No ano seguinte, o instrumentista e relojoeiro português escrevia à APS inquirindo se a Sociedade estava na disposição de aceitar 200 guinéus seus para que se criasse um prémio científico anual. A forma do prémio encaixava nos pontos de vista do fundador da APS e então seu presidente, Benjamin Franklin, que via a concessão de medalhas e de prémios como um hábito apropriado à nova República democrática.
Magalhães dizia na sua carta que apenas lhe bastava a resposta da Sociedade, pois ele enviaria os 200 guinéus por intermédio de um amigo que era também membro da APS. Benjamin Franklin escreveu pessoalmente a Magalhães, aceitando a generosa oferta. Nos 210 anos que se passaram desde que o cientista português ofereceu o prémio (o primeiro de carácter científico a existir nos Estados Unidos), a APS apenas atribuiu 32: doze para navegação, doze para filosofia natural, e oito para astronomia.
A American Philosophical Society (estabelecida desde a sua fundação em Filadélfia) exibe hoje orgulhosamente, no seu espólio, um importante conjunto epistolar de Magalhães, não só com Benjamin Franklin como com outros cientistas franceses, ingleses, italianos ou americanos.
Mas a sua obra mais célebre terá sido um relógio de pêndula muito especial. O mecanismo foi mandado construir sob as indicações de Magalhães e destinou-se a um filho do duque de Arenberg (então com residência Bruxelas) que cegara num acidente de caça. Este instrumento teve uma construção morosa, porque o cientista português foi rejeitando várias peças que considerou não servirem para o que idealizara: um relógio que desse a um cego a indicação de horas, minutos, segundos, mas também os dias e os meses.
Segundo excerto de uma carta de Magalhães publicada em 1781 no Journal de Physique, do abade Rozier, este relógio não possuía “nem carrilhão nem figuras em movimento”, nem outros adereços considerados por ele supérfluos. O movimento, em si, era constituído por 65 rodas dentadas com os respectivos pinhões.
Além de calendário anual, o relógio em questão tinha “sonneries”: dava horas e quartos. Mas, mais do que isso, era provido de um inédito sistema de “repetição minutos”: os três minutos tinham um toque, os seis minutos dois, os nove minutos três e assim sucessivamente.
A caixa do relógio tinha, em cada uma das faces exteriores, quatro florões de metal dourado. No meio de cada florão estavam em suspensão uma ou duas letras grandes, facilmente reconhecíveis pelo tacto. Um fio ligava cada letra a uma roda dentada, que accionava o mecanismo respectivo:
O “R”(répétition, repetição) accionava a função de “repetição de hora, quarto e minutos”.
O “J” (jour, dia) fazia soar um tom para indicar o domingo, dois tons para a segunda-feira, até aos sete tons, para o sábado.
O “Q” (quantiéme, calendário) accionava toques para dar o número dos dias do mês. E para não se chegar aos 31, Magalhães inventou um sistema de apenas nove. Além disso, o relógio estava regulado para os anos bissextos.
O “L” (lune, lua) accionava a função “fases de lua” e o cientista português afiançava que o mecanismo estava regulado para trabalhar sem acertos nos 124 anos seguintes.
O relógio para o filho cego do duque tinham ainda despertador e podia funcionar em “modo silencioso”, bastando para isso puxar-se a letra “T” (tranquille, tranquilo).
Com reserva de marcha para oito dias (extensível para um mês, caso se abrisse o fundo da caixa e o solo onde o relógio assentasse, para que os pesos pudessem ter uma maior amplitude) este relógio de Magalhães terá feito as delícias dos Arenberg.
A pista da semana é pois "a caça ao tesouro": ver os relógios e outros instrumentos científicos adaptados por João Jacinto de Magalhães que há no Museu de Ciência, em Lisboa; ou no Gabinete de Física da Universidade de Coimbra. E tentar achar mais. Bem como descobrir onde poderá estar um retrato deste "estrangeirado".
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003).
Sem comentários:
Enviar um comentário