Piotr Kropotkin, o “Príncipe Anarquista” III (conclusão)
Relatámos anteriormente como o nobre russo Kropotkine se tornou anarquista ao conviver com as comunidades relojoeiras do Jura suíço. Rematamos estes escritos dedicados ao autor de A Conquista do Pão com um episódio pouco conhecido: a sua frustrada viagem a Portugal.
Na primeira página de A Capital, de 26 de Dezembro de 1912, publicava-se com grande destaque uma notícia: o príncipe dos anarquistas, Kropotkine, “um apóstolo dos oprimidos”, preparava-se para, a convite dos seus camaradas portugueses, vir “aquecer a sua velhice ao sol da nossa terra”.
A notícia, assinada por “Ego”, informava: “Que vem aí Kropotkine, a passar uns meses na doce temperatura da nossa terra. Os seus 70 anos mal podem já suportar as invernias de Londres, as neblinas daquela atmosfera baça e enregelada. Precisa aquecer um pouco a sua velhice ao calor deste claro sol – deste sol que é o amigo de todos os deserdados que ele defende, ensinando os seus direitos e encorajando-os para a grande luta que lhes há-de trazer a vitória definitiva. Na intransigência firme dos princípios, no desprendimento que o arremessou há mais de 30 anos para as lutas de propaganda, ele adivinha esse dia redentor em que no mundo deixará de haver famintos, oprimidos, escravos de todos os preconceitos e vítimas de todas as superstições. Que vem aí Kropotkine….”
Depois, dava-se conta da biografia do pensador revolucionário e rematava-se: “[…] Até hoje, o esforço da sua propaganda não afrouxou um momento, inteiramente entregue o seu espírito ao trabalho da emancipação dos oprimidos. No dia em que completou 70 anos, de todo o mundo lhe chegaram cartas e bilhetes de cumprimentos, a traduzir a solidariedade fraternal de algumas centenas de milhares de camaradas. Precisa abandonar alguns meses a sua residência de Londres para fugir aos rigores do Inverno, que a sua velhice, doente e cansada, já não pode suportar. Estamos certos que ninguém deixará de ver com simpatia a iniciativa dos anarquistas portugueses: trazer o velho Kropotkine para o sol da nossa terra…”.
A viagem não chegou a realizar-se, mas as ideias de Kropotkine já há muito que eram conhecidas em Portugal. Principalmente por influência do geógrafo francês Elisée Reclus (1830-1905), membro da Comuna de Paris, refugiado na Suíça a partir de 1871, e onde virá a fazer amizade com o príncipe russo. Reclus, autor da monumental Nouvelle Géographie Universelle, em 19 volumes, pai do moderno regionalismo ecológico, foi também uma espécie de pai do anarquismo português. Influenciou históricos do movimento anarquista luso como Silva Mendes, Emílio Costa, João António Cardoso ou António José de Ávila.
Reclus, esse sim, visitou Portugal em 1886, em viagem de estudo para os seus trabalhos geográficos, aproveitando também para contactar o incipiente movimento anarquista português em Lisboa e no Porto, incentivando-o a organizar-se. As primeiras obras de Kropotkine traduzidas em Portugal foram-no por sugestão de Reclus, que prefaciou algumas delas, como A Conquista do Pão.
Das suas impressões sobre Portugal, Reclus haveria de escrever: "A ignorância em que vivem os portugueses em meados do século XIX assemelha-se à de seus vizinhos marroquinos, ao sul do Algarve. Nos distritos do Norte, Viana do Castelo, Braga e Bragança, uma rapariga que saiba ler constituí um verdadeiro fenómeno."
De qualquer modo, e no espírito da “reserva índia” com que ainda hoje muitos intelectuais continuam a olhar para Portugal, Reclus maravilha-se com o facto de "os analfabetos portugueses serem tão diferentes desses camponeses quase instruídos mas grosseiros da Europa do Norte, pois sabem discutir com moderação, falar com elegância e improvisar em versos onde não faltam a métrica, o ritmo, nem a verdadeira poesia".
Publicado na Espiral do Tempo
Relatámos anteriormente como o nobre russo Kropotkine se tornou anarquista ao conviver com as comunidades relojoeiras do Jura suíço. Rematamos estes escritos dedicados ao autor de A Conquista do Pão com um episódio pouco conhecido: a sua frustrada viagem a Portugal.
Na primeira página de A Capital, de 26 de Dezembro de 1912, publicava-se com grande destaque uma notícia: o príncipe dos anarquistas, Kropotkine, “um apóstolo dos oprimidos”, preparava-se para, a convite dos seus camaradas portugueses, vir “aquecer a sua velhice ao sol da nossa terra”.
A notícia, assinada por “Ego”, informava: “Que vem aí Kropotkine, a passar uns meses na doce temperatura da nossa terra. Os seus 70 anos mal podem já suportar as invernias de Londres, as neblinas daquela atmosfera baça e enregelada. Precisa aquecer um pouco a sua velhice ao calor deste claro sol – deste sol que é o amigo de todos os deserdados que ele defende, ensinando os seus direitos e encorajando-os para a grande luta que lhes há-de trazer a vitória definitiva. Na intransigência firme dos princípios, no desprendimento que o arremessou há mais de 30 anos para as lutas de propaganda, ele adivinha esse dia redentor em que no mundo deixará de haver famintos, oprimidos, escravos de todos os preconceitos e vítimas de todas as superstições. Que vem aí Kropotkine….”
Depois, dava-se conta da biografia do pensador revolucionário e rematava-se: “[…] Até hoje, o esforço da sua propaganda não afrouxou um momento, inteiramente entregue o seu espírito ao trabalho da emancipação dos oprimidos. No dia em que completou 70 anos, de todo o mundo lhe chegaram cartas e bilhetes de cumprimentos, a traduzir a solidariedade fraternal de algumas centenas de milhares de camaradas. Precisa abandonar alguns meses a sua residência de Londres para fugir aos rigores do Inverno, que a sua velhice, doente e cansada, já não pode suportar. Estamos certos que ninguém deixará de ver com simpatia a iniciativa dos anarquistas portugueses: trazer o velho Kropotkine para o sol da nossa terra…”.
A viagem não chegou a realizar-se, mas as ideias de Kropotkine já há muito que eram conhecidas em Portugal. Principalmente por influência do geógrafo francês Elisée Reclus (1830-1905), membro da Comuna de Paris, refugiado na Suíça a partir de 1871, e onde virá a fazer amizade com o príncipe russo. Reclus, autor da monumental Nouvelle Géographie Universelle, em 19 volumes, pai do moderno regionalismo ecológico, foi também uma espécie de pai do anarquismo português. Influenciou históricos do movimento anarquista luso como Silva Mendes, Emílio Costa, João António Cardoso ou António José de Ávila.
Reclus, esse sim, visitou Portugal em 1886, em viagem de estudo para os seus trabalhos geográficos, aproveitando também para contactar o incipiente movimento anarquista português em Lisboa e no Porto, incentivando-o a organizar-se. As primeiras obras de Kropotkine traduzidas em Portugal foram-no por sugestão de Reclus, que prefaciou algumas delas, como A Conquista do Pão.
Das suas impressões sobre Portugal, Reclus haveria de escrever: "A ignorância em que vivem os portugueses em meados do século XIX assemelha-se à de seus vizinhos marroquinos, ao sul do Algarve. Nos distritos do Norte, Viana do Castelo, Braga e Bragança, uma rapariga que saiba ler constituí um verdadeiro fenómeno."
De qualquer modo, e no espírito da “reserva índia” com que ainda hoje muitos intelectuais continuam a olhar para Portugal, Reclus maravilha-se com o facto de "os analfabetos portugueses serem tão diferentes desses camponeses quase instruídos mas grosseiros da Europa do Norte, pois sabem discutir com moderação, falar com elegância e improvisar em versos onde não faltam a métrica, o ritmo, nem a verdadeira poesia".
Publicado na Espiral do Tempo
Sem comentários:
Enviar um comentário