Tomás Pereira (1645 — 1708), Um Jesuíta na China de Kangxi foi uma exposição promovida recentemente pelo Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, em honra deste homem multifacetado, que teve um papel importante nas relações entre o Império do Meio e Portugal. Entre muitas outras coisas, Tomás Pereira foi também relojoeiro do Imperador. Para ilustrar o tipo de relojoaria grossa que se fazia ao tempo dele, foi-se buscar um exemplar recentemente restaurado.
O relógio que esteve patente na exposição é um exemplar do século XVIII, possivelmente de fabrico nacional, provavelmente anterior ao Terramoto, proveniente do Convento de Jesus, em Lisboa, e intervencionado no final do século XIX.
Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, o espólio dos vários conventos, incluindo relógios, passa para terceiras mãos, sejam elas o Estado ou os particulares. O Convento de Jesus passou a albergar a Academia das Ciências, local onde ainda hoje a instituição se encontra, e o relógio saiu de lá em 1883. Foi parar ao Arco Triunfal da Rua Augusta, que era finalmente construído, mais de um século após o terramoto de 1755.
O relógio do Convento de Jesus é um exemplar da chamada relojoaria grossa ou férrea e as suas peças estão arrumadas numa gaiola cavilhada, característica da técnica dos séculos XVII e XVIII. Como relata a imprensa da época, o relógio “não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua”. Ou seja, era, como muitos exemplares do seu tempo, para “bater” e não para “mostrar” o tempo, não tinha mostrador. Assinalava sonoramente as horas e os quartos através de sinos que estavam a ele ligados. Quem o adaptou para ter mostrador e ponteiros e lhe deu um novo escape (substituindo o de folliot por um de âncora) foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, ainda hoje a única que se dedica ao ensino da relojoaria em Portugal. O relógio acaba de ser restaurado, numa acção de mecenato que incluiu também a recuperação do relógio que se encontra actualmente no Arco da Rua Augusta e que o foi substituir nos anos 40 do século passado.
Escolhemos este exemplar de relojoaria grossa para ilustrar o tipo de relógios que os padres jesuítas fabricavam no século XVII na China. Foram os portugueses que introduziram a relojoaria mecânica, primeiro na Índia, depois na China, no Vietname, na Coreia e no Japão, quase sempre pela mão pioneira dos Jesuítas.
Quanto à China, essa entrada do relógio terá ocorrido em 1582, através de Macau, e como forma de impressionar o vice-rei de Cantão. Segundo relatos coevos de Francisco de Sousa, perante tão estranho e fascinante objecto, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.
A primeira embaixada jesuíta a Beijing, em 1601, dirigida por Michele Ruggieri e Matteo Ricci, inclui relógios entre os presentes. Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem. Na visão de alguns historiadores chineses, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, desiludida, como veio a acontecer). Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”. Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau, destinados a “abrir portas” entre eunucos e mandarinato.
Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira. Este último, músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.
O relógio que esteve patente na exposição é um exemplar do século XVIII, possivelmente de fabrico nacional, provavelmente anterior ao Terramoto, proveniente do Convento de Jesus, em Lisboa, e intervencionado no final do século XIX.
Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, o espólio dos vários conventos, incluindo relógios, passa para terceiras mãos, sejam elas o Estado ou os particulares. O Convento de Jesus passou a albergar a Academia das Ciências, local onde ainda hoje a instituição se encontra, e o relógio saiu de lá em 1883. Foi parar ao Arco Triunfal da Rua Augusta, que era finalmente construído, mais de um século após o terramoto de 1755.
O relógio do Convento de Jesus é um exemplar da chamada relojoaria grossa ou férrea e as suas peças estão arrumadas numa gaiola cavilhada, característica da técnica dos séculos XVII e XVIII. Como relata a imprensa da época, o relógio “não estava preparado para indicar as horas para o lado da rua”. Ou seja, era, como muitos exemplares do seu tempo, para “bater” e não para “mostrar” o tempo, não tinha mostrador. Assinalava sonoramente as horas e os quartos através de sinos que estavam a ele ligados. Quem o adaptou para ter mostrador e ponteiros e lhe deu um novo escape (substituindo o de folliot por um de âncora) foi Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, ainda hoje a única que se dedica ao ensino da relojoaria em Portugal. O relógio acaba de ser restaurado, numa acção de mecenato que incluiu também a recuperação do relógio que se encontra actualmente no Arco da Rua Augusta e que o foi substituir nos anos 40 do século passado.
Escolhemos este exemplar de relojoaria grossa para ilustrar o tipo de relógios que os padres jesuítas fabricavam no século XVII na China. Foram os portugueses que introduziram a relojoaria mecânica, primeiro na Índia, depois na China, no Vietname, na Coreia e no Japão, quase sempre pela mão pioneira dos Jesuítas.
Quanto à China, essa entrada do relógio terá ocorrido em 1582, através de Macau, e como forma de impressionar o vice-rei de Cantão. Segundo relatos coevos de Francisco de Sousa, perante tão estranho e fascinante objecto, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.
A primeira embaixada jesuíta a Beijing, em 1601, dirigida por Michele Ruggieri e Matteo Ricci, inclui relógios entre os presentes. Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem. Na visão de alguns historiadores chineses, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, desiludida, como veio a acontecer). Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”. Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau, destinados a “abrir portas” entre eunucos e mandarinato.
Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira. Este último, músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.
É esse relógio com carrilhão que aparece na célebre gravura incluída na Mursurgia Universalis, de Atanásio Kircher, de 1650. O mecanismo de relojoaria accionava um tambor com espigões, semelhante aos das caixas de música, que por sua vez accionavam arames ligados a sinos, assinalando todas as horas com melodias tradicionais chinesas. Na figura, onde se assinala com “x” está o escape do relógio, do tipo folliot.
Quanto a Gabriel de Magalhães (Pedrógão Grande, 1609 – Beijing 1677), sabe-se que produziu pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir (e até escreveu um poema dedicado ao Relógio, essa máquina que “roda sem descanso e dá horas sempre certas”). Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões.
Quanto a Gabriel de Magalhães (Pedrógão Grande, 1609 – Beijing 1677), sabe-se que produziu pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir (e até escreveu um poema dedicado ao Relógio, essa máquina que “roda sem descanso e dá horas sempre certas”). Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões.
Versão do artigo escrito para o Catálogo da exposição
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