Os reis de Espanha, tanto os da Casa de Áustria como os da de Bourbon mostraram sempre um grande apreço pelos relógios e em geral por todo o tipo de engenhos mecânicos.
As actuais colecções da Coroa espanhola dispõem de um magnífico acervo relojoeiro, que só não é única no mundo porque os incêndios afligiram os palácios reais (o Pardo em 1604, o Escorial em 1671 e o Alcazár de Madrid em 1734).
O relógio mais antigo dos que se conservam na colecção é o chamado “Candil de Filipe II”, datado de 1583, e da autoria do Relojoeiro Real Hans de Evalo. De origem flamenga, começou a trabalhar em Madrid em 1558 e foi nomeado para o cargo em 1580 (data da unificação das duas coroas ibéricas). Foi Relojoeiro Real até à sua morte, em 1598, e seria interessante investigar se alguma vez se teria deslocado, durante esse tempo, a Lisboa.
Seria igualmente curioso saber se uma figura anterior, o lombardo Juanelo Turriano, relojoeiro, matemático e engenheiro, chamado a Espanha a instâncias de Carlos I, se relacionou de algum modo com Portugal ou se a sua obra escrita (sobre engenhos e máquinas) circulou por cá. De qualquer modo, o monarca seguinte, Filipe II, nomeia-o Relojoeiro Real em 1562, obrigando-o a residir na Corte e com o compromisso de não fazer obra a não ser para o rei. O historiador Morpurgo diria dele ser “o relojoeiro mais popular que se conhece. A sua figura esteve sempre rodeada de uma áurea de mistério”. Morreu em 1585.
Filipe III (Filipe II de Portugal) é o primeiro monarca europeu a lançar publicamente o desafio a quem resolvesse o maior problema da época: a determinação da longitude no mar. O monarca oferecia um prémio de 6 mil ducados, 2 mil mais de renda vitalícia e outros mil de ajudas de custo para quem fosse capaz de fabricar o relógio suficientemente exacto e resistente que “congelasse” o tempo em terra, à partida e, embarcado num navio, o conservasse para os cálculos a bordo.
Em 1604 é nomeado “conservador” dos relógios das Casas Reais, com aposento na Corte, um tal Claudio Gribelin. No reinado de Filipe IV (Filipe III de Portugal) o Conde-Duque de Olivares nomeia, em 1631, um tal Guillermo Reynaldo, de Rouan, relojoeiro da Câmara. Segue-se-lhe no cargo um tal Juan Duque.
Em 1640, liderados pelo duque de Bragança (D. João IV), os portugueses lançam o movimento da Restauração, readquirindo a independência como Estado. Durante o reinado de Fernando VI de Espanha, e devido à sua preocupação e interesse pelo fomento da Relojoaria em Espanha, assim como pela manutenção da colecção Real, o país vizinho envia à Suíça, França e Inglaterra vários artífices espanhóis para que estudem com os melhores mestres.
No rescaldo da guerra da Restauração, Lisboa e Madrid procuram, à boa maneira da época, cimentar a paz com alianças casamenteiras. O caso de Maria Bárbara, princesa, filha de D. João V e de sua mulher, a rainha Maria Ana de Áustria, é paradigmático.
Nascida em Lisboa em 1711 e falecida em Madrid em 1757, Bárbara de Bragança foi rainha de Espanha, pelo seu casamento em 1729 com Fernando VI. Figura interessante, era extraordinariamente culta (falava francês, alemão e italiano, fora discípula de Domenico Scarlatti e era ela própria compositora).
O casamento de Bárbara com Fernando foi contratado quase ao mesmo tempo em que se tratou o do príncipe herdeiro português, D. José, com a princesa D. Maria Vitória, filha, tal como Fernando, de Filipe V de Espanha. Deliberou-se que se trocariam as duas noivas e, efectivamente, D. João V e a mulher acompanharam a filha até à fronteira alentejana, enquanto os monarcas espanhóis acompanharam até à Estremadura a futura mulher de D. José.
Segundo os relatos da época, a cerimónia da troca de princesas, casadas com os herdeiros das duas coroas, efectuou-se com grande pompa. D. João V mandou mesmo construir o palácio de Vendas Novas, que ainda hoje existe, com o único fim de dar pousada durante duas noites, uma à ida e outra à volta, às comitivas portuguesa e espanhola. Magnificências à custa do outro do Brasil...
O enxoval de Bárbara foi “grandioso e deslumbrante”. Talvez por se saber do gosto particular do futuro Fernando VI em relação à relojoaria, entre os presentes da Corte portuguesa à Corte espanhola estava um precioso relógio, encomendado a um dos mais famosos mestres do seu tempo, o britânico John Ellicott.
Trata-se de um relógio de caixa alta, em ébano, com decoração de bronzes cinzelados e dourados. O mostrador, metálico, com aplicações de bronze, com ponteiro dos segundos na parte superior, tem funções de equação do tempo, indicação de dias, noites e calendário lunar, abóbada celeste, além de calendário mensal, tempo solar, nascer e pôr-do-sol e fases do Zodíaco. Com todas estas indicações em português, este “regulador” tem corda para oito dias, escape de âncora e pêndulo compensado, o que faz dele uma das mais preciosas peças que ainda hoje se podem ver entre as Colecções Reais da Coroa espanhola.
Para terminar estas breves informações sobre a relojoaria nas ligações entre as casas reais ibéricas, de salientar que, em 1818, um tal Blas Munoz era nomeado Relojoeiro de Câmara da rainha Isabel de Bragança. Filha de D. João VI e de D. Carlota Joaquina, casou em 1816 com Fernando VII e morreu ao dar à luz, no El Pardo, dois anos depois. A confusão casamenteira persiste: escassos anos depois dá-se a instalação no Palácio Real de Madrid de D. Maria Teresa de Bragança, irmã de Isabel e que casou com o herdeiro espanhol, Carlos de Bourbon e, por morte deste, com o herdeiro seguinte, Carlos Maria Isidoro. Jerónimo Woolls é nomeado relojoeiro da Câmara, ao seu serviço.
Tudo isto indicia a importância que as cortes de Lisboa e Madrid davam aos relógios.
A pista desta semana é, pois, a colecção de relógios da Coroa espanhola, especialmente os que estão no Palácio Real de El Pardo, em Madrid.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
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