Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Memória - Utopia Mecânica V

Piotr Kropotkin, o “Príncipe Anarquista” II (continuação)

Na sua obra, é recorrente Kropotkin socorrer-se do que viu em Sonvillier e outras comunas de relojoeiros do Jura para daí tirar exemplo para um governo mundial sem Estado.

“O trabalho de relojoeiro organiza-se de maneira independente, sem horário nem constrangimentos, que não sejam o de produzir quanto baste para viver”, diz o anarquista russo nas suas Memórias. “Pago à tarefa, de forma muito desigual segundo a sua especialização, o salário depende cruelmente da conjuntura. Mas, mesmo assim, neste sector, as condições de vida são muito melhores do que na generalidade dos outros, e os viajantes admiram estas famílias de relojoeiros bem alojados e bem vestidos”.

Sobre a actividade em Saint-Imier, outro pólo relojoeiro tradicional helvético, onde existe uma escola profissional de relojoaria desde 1866 e onde está localizada uma das mais antigas marcas do sector, a Longines, Kropotkin faz notar que “apesar das confusões provocadas pela Revolução Francesa, o sector continua a desenvolver-se bem”
Isso mesmo, “sabendo-se que os entraves aduaneiros impostos pela França desde 1797 provocaram o encerramento de muitas oficinas de relojoaria e que apenas o contrabando permite manter as relações com a Suíça e as montanhas de Nêuchatel”, escreve Kropotkin, para quem “o novo sistema de patentes, imposto a que os relojoeiros estão sujeitos, os obriga frequentemente ao regresso à agricultura”.

“O trabalho relojoeiro efectua-se em casa, exigindo mais habilidade manual do que esforço físico, e é melhor remunerado do que o trabalho nas fábricas, atraindo de imediato as mulheres”, faz notar o anarquista. E dá como exemplo o caso do mestre relojoeiro Adam Jaquet, que “ensina o ofício tanto aos irmãos como às irmãs Madalena e Suzana”.

No século XIX, o desenvolvimento industrial funda-se no liberalismo económico mais puro. Os operários não são protegidos e recebem tradicionalmente dois salários por ano – por São Jorge (a 23 de Abril), e por São Martinho (a 11 de Novembro). Entretanto, vivem “do rol”, ou seja, do crédito. Muitas vezes, o dinheiro recebido não chega para pagar as dívidas acumuladas. Mas, desde o aparecimento das manufacturas, nomeadamente relojoeiras, os salários são pagos à semana, à quinzena ou ao mês.

Não é por acaso que o sector relojoeiro atrai Kropotkin e outros pensadores – foi nele que a divisão do trabalho e a produção em linha começou, inspirando depois outras indústrias (poucos sabem, mas Henry Ford foi relojoeiro antes de fundar a empresa com o seu nome, e levou para a indústria automóvel os métodos que viu na relojoaria).

Embora as manufacturas relojoeiras suíças oferecessem melhores condições que a generalidade da indústria, também aí havia especializações apenas entregues a mulheres – as de menor exigência em formação, as mais mal pagas (polimento, feitura de ponteiros, etc.); e outras interditas a elas, pois os homens (e os próprios sindicatos) temiam a concorrência com salários mais baixos. Essa situação prolonga-se até mesmo ao início do século XX.

Só nessas pequenas comunidades de relojoeiros do Jura Kropotkin viu solidariedade, coesão social, liberdade, igualdade entre sexos, dignidade nas condições de vida. Um exemplo que ele queria transportar para o modo de vida nas cidades.

Resume Kropotkin nas suas Memórias: “Os princípios igualitários que encontrei nas montanhas do Jura, a independência de pensamento e de linguagem que vi desenvolverem-se entre os operários, tudo isso exerceu sobre os meus sentimentos uma influência cada vez mais forte; e quando deixei essas montanhas, as minhas ideias sobre o socialismo estavam fixadas. Era anarquista”.

Depois de uma primeira visita à Suíça, em 1872, Kropotkin volta ao país cinco anos depois, trabalhando para a Federação Anarquista do Jura e escrevendo no seu Boletim. Expulso do país por ter defendido o assassinato do czar Alexandre II (uma explosão social é mais efectiva que o voto para encorajar os trabalhadores à revolução, disse ele), vai para França, onde é preso e libertado sob condição de não voltar. Vai para Inglaterra, em 1886, e visita o Canadá e os Estados Unidos no ano seguinte. Regressa à Suíça em 1909, sob condição de limitar as suas actividades políticas. Quando se inicia a I Guerra Mundial, muda-se de novo para Inglaterra, apoiando publicamente o combate à Alemanha, posição que o isolou de muitos anarquistas.

Passando pela Suécia, Kropotkin voltou à Rússia natal depois da Revolução de 1917, tendo colaborado com o Governo de Kerensky. Mas afastou-se quando os Bolcheviques tomaram o poder. Crítico do autoritarismo comunista, escreveu a Lenine em Março de 1920, denunciando o desvio totalitário que estava a ocorrer. Em Junho, publica uma Carta Aberta aos Trabalhadores do Ocidente, alertando para o rumo que estava a levar a Revolução Soviética. Em Dezembro, escreve nova carta a Lenine, criticando mais uma vez a situação. Morre a 8 de Fevereiro de 1921 e o seu funeral, com a aprovação de Lenine, constitui a última grande manifestação anarquista na Rússia.

Pormenor esquecido no tempo, mas o príncipe Kropotkin esteve para acabar os seus dias em Portugal ou, pelo menos, achar refúgio temporário num país que, em 1911, tinha forte tradição anarquista entre os operários e acabava de derrubar a Monarquia.

Publicado na Espiral do Tempo

Sem comentários: