"Os Memoráveis" é talvez a melhor e mais reveladora ficção, com muita da sua realidade fielmente narrada/reinventada, sobre, ou a partir, do 25 de Abril e seus protagonistas – como aliás é natural, sendo a sua autora quem é. E nesse belo romance a figura de Salgueiro Maia está inteira em Charlie 8 e a descrição da sua ação pela viúva é exemplar. A evocação agora aqui feita pela romancista, e as páginas em que fala Natércia
Lídia Jorge
Jornal de letras
08.04.2022 às 19h22
Entre o homem real que se sentava à mesa , ria com os
amigos, evitava falar do que lhe doía, falava do que lhe doía ironizando,
atendia e telefone e projetava escrever um diário para o qual pedia conselhos,
entre esse e a figura que os monumentos e a História elevam agora acima do
solo, lamento dizer, mas não há grande diferença.
Se Salgueiro Maia se transformou em mito, foi porque em pessoa ele mesmo transportava essa aura de figura à parte. Foi assim que o vi nos poucos encontros que tivemos, e foi assim que o imaginei quando o transformei em personagem. Não custou nada. A sua figura estava ali, intacta, à espera das páginas brancas. Ele, Charlie 8, encheu as páginas, e a sua figura escreveu-as por si mesmo. Fui ajudada pela sua mulher, Natércia, que me permitiu olhar para os seus lugares, quando ele já cá não estava. Mas ela falou de tal maneira que a parte dele que eu desconhecia veio pela voz da Natércia, e foi tão simples. Natércia cuidava da imagem do seu marido como se fosse sua filha e sua mãe.
Não sei se a paixão que coloquei na reconstrução da sua figura tocada por roupas angélicas vai contra alguma narrativa real. Na minha ideia, e do que sobejou das palavras e atos a que diretamente assisti, fui fiel a uma imagem grandiosa própria daqueles que algumas vezes na vida souberam oferecer o seu corpo pela mudança da História.
Do meu ponto de vista, não precisam de lhe chamar herói, tão só o memorável entres os outros memoráveis. Passaram 48 anos. Eles continuam tão jovens como os jovens que nasceram há pouco. A proeza que cometeram ainda não terminou. Ninguém, nem o tempo, foi capaz de a destronar. Escrever sobre tudo isso, foi fácil, não custou nada.
Boliqueime, 31 de Março de 2022
De Os Memoráveis
“ (…) O meu marido era assim. Desde África que o meu marido considerava que a amizade era a melhor ração de combate que se podia levar para o campo de batalha. Aquele embate com o tenente aconteceu às dez da manhã, e o meu marido sempre disse que essa tinha sido a primeira página de uma folha decisiva de que ele mesmo, às dez e quarenta e cinco, iria interpretar a segunda, quando ficou em frente do carro blindado, a olhar para o visor, olhos nos olhos com o alferes que se encontrava no habitáculo do M47, e o meu marido não se desviou um milímetro que fosse. Mas, o seu a seu dono, a primeira cena do lenço não foi interpretada pelo meu marido…’
A viúva olhava para a janela onde a água batia.
‘Uma folha com duas páginas.’ Disse Margarida Lota, incitando a viúva.
‘Exacto. O meu marido nunca quis que os dois actos se confundissem, nunca quis usurpar fosse o que fosse, nem uma mensagem escrita, nem uma palavra que ele mesmo não tivesse dito. É verdade que o meu marido levava consigo vários lenços brancos, que eu bem lhos tinha preparado, mas nem sei se usou algum deles, só sei que avançou para os carros da Cavalaria 7, levando num dos bolsos uma granada de mão, disposto a imolar-se. Depois aconteceu o que já disse. Essa cena inesquecível, passada com o meu marido, foi o segundo capítulo de uma sequência definitiva. Mas ele sempre afirmou que o ponto de viragem tinha acontecido antes. E ainda hoje pode ser confirmado, por quem se der ao trabalho de procurar, porque ficou registado, um rapaz de braços abertos, a avançar com um lenço nas mãos, dispondo -se ao fogo contrário. Ele sempre o disse…’ Continuou a viúva, e percebia-se que já deveria ter contado o episódio cem vezes, para fazer semelhante invocação sem qualquer intervalo nem hesitação entre as frases. E concluiu – ‘Foi aí que o meu marido compreendeu que a boa sorte vinha a caminho.’
Continuávamos em frente da lareira, sentadas lado a lado. Margarida Lota não deixou que a viúva se levantasse. A Betacam estava em frente do seu rosto. A viúva não podia escapar. Encarou-a – ‘Mas qual foi, para o seu marido, o momento mais relevante, aquele que lhe terá deixado uma impressão mais profunda? O mais emblemático de todos?’
A viúva queria resistir – ‘O momento mais emblemático? Essa agora, pois se tantos o foram, como posso dizer qual foi o mais emblemático de todos? Arrisco-me a ter de escolher de entre aqueles que outrora ele já escolheu. Assim, um dia, se alguém vier a escolher entre o que eu estou a escolher, a escolha nunca mais vai parar, e escolha após escolha, começaremos a afastar-nos cada vez mais da verdade. Caso apliquemos esse método a todos os passos, em poucas décadas, já ninguém saberá onde começa e termina aquilo que na realidade aconteceu.’
A viúva suspirou, acabou por condescender – ‘Mas já que vos interessa tanto, tenho a dizer que, para ele, o momento mais emblemático parece-me ter sido aquele em que a sua coluna avançou pela Rua Augusta adiante, depois da capitulação da Cavalaria 7. Ele dizia que a uma certa distância, iriam pela zona da Rua da Conceição, se virara para trás e lhe parecera que o relógio do Arco estava parado. Dizia que tinha tido a impressão de que a cidade estava parada à espera, dizia que tinha tido a ideia de que não poderia pensar muito no que estava a acontecer para não pensar em nada que não fosse no passo seguinte, disse que viu o relógio parado e pensou que estava a dar corda a um relógio, que as pessoas vinham aclamar à passagem da coluna, mas que ele não ouvia ninguém, só se ouvia a dar corda ao relógio do Arco. Contou o meu marido que ao dar a volta ao Rossio, quando as tropas de Infantaria 1 se renderam em frente do Teatro Nacional, ele dava corda ao relógio e começava a ouvi-lo trabalhar. Tanque tanque, tanque tanque. Dizia que as horas do relógio tinham começado a bater dentro da sua cabeça. Ele próprio o escreveu. Disse que foi assim que teve a capacidade de espera, de aguarda e de silêncio, que teve nervos para acalmar as multidões, para desencadear o fogo contra o Quartel do Carmo e para mandar parar o fogo, nervos para aproveitar os intermediários, e nervos para ir falar com o chefe do governo que estava a ser deposto, nervos para continuar a oferecer a sua vida, por um relógio a que ele dava corda sem cessar, devagar, rodando o mostrador, dizia ele, ele e os outros a darem corda àquele relógio parado que acabava de arrancar. Dizia ele que sabia que cinco mil homens, naquele momento, estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador da história. Que o mostrador surgiu iluminado quando a primeira hora de liberdade chegou. Contou o meu marido, já depois, quando passados dois dias pôde voltar para casa para fumar o seu cigarro. Foi muito lindo, dizia ele. E eu concordo. Tão lindo que se tornou difícil sobreviver àquele momento. Agora sou eu quem o está a dizer. Sou testemunha. Quem uma vez faz rodar as agulhas sobre um tal mostrador, em seguida, passa a conviver mal com a batida regular das horas. Difícil sobreviver aos dias, meses, anos, que vêm depois, quando o bater das horas já se transformou em rotina. Por isso mesmo, ele dizia que não se deve repetir por demais que foi lindo, porque se pode tornar ridículo de morte junto de quem já nasceu a ouvir bater as horas do relógio com regularidade. Ele dizia que tinha sido lindo para nós, que tínhamos o relógio parado, mas os vindouros, esses, dizia o meu marido, não precisavam de saber que uns tantos se dispuseram a dar a vida para fazer andar o relógio do Arco. O meu marido cos tumava dizer que não devemos encher a cabeça daqueles que vie ram depois com a invocação daquele dia. Que feliz mesmo seria o dia em que todos pudessem esquecer que eles foram necessá rios, e até que existiram. O meu marido era assim, desprendido. Um herói da retirada, o meu marido.’ Disse a viúva, tentando desprender o micro da orla do decote. ‘Ainda não.’ Disse Margarida.
Tirado daqui
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