Sabia que há uma Estrela Horologial? E que ela lhe permite saber as horas, de noite? Quer saber como achar as horas, de dia, através da mão? Ou como construir um relógio de sol? A tudo isto dá resposta o Lunário ou Prognóstico Perpétuo de Jerónimo Cortez. Em cima, uma edição de 1870 desta obra, de que existe um exemplar no Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera.
A primeira edição do Lunário apareceu em Valença, em 1582. A sua presença nos índices de 1632, 1640 e 1707 da Inquisição em Portugal mostra que a obra circulou no país na sua língua original, antes e mesmo depois de ser traduzida e adaptada, em 1703, por António da Silva de Brito, cujo nome passa a figurar na capa. O editor foi então Miguel Menescal, que também imprimia as obras do Santo Ofício.
Este lunário foi das obras do seu género mais divulgadas na Península Ibérica, tendo conhecido mais de uma dezena de reedições, só em Português. Enquanto os almanaques têm uma vigência anual, os lunários servem para todos os anos. Além das indicações astronómicas e de calendário, incluem muitas vezes conselhos sobre agricultura, receitas caseiras, indicações úteis para um quotidiano sobretudo rural. Em baixo, edição espanhola do lunário, de 1672, "corrigido segundo o expurgatório da Santa Inquisição".
Do Almanach Perpetuum de Zacuto ao Almanaque Bertrand,
passando pelo Borda d’Água. Um certo tipo de cultura, para públicos diversos,
variegados gostos.
E, contudo, esse livro, que se encontra em todas as casas, que se vende por todas as ruas e em todas as praças, que todos compram para o seu governo, é por muitos ridicularizado e até desprezado, servindo-se dele a cada momento; esperando este, no fim do ano, a mesma sorte que esperam quase todos os jornais políticos.
Augusto Luso da Silva
Segundo se julga, Abraão Zacuto (1452-1515), astrónomo e
historiador judeu, foi o responsável pela introdução em Portugal do primeiro
almanaque. Inventor de tabelas astronómicas usadas pelos navegadores, escreveu
também em hebraico um tratado de astronomia, Em 1496, como já tínhamos
referido, era publicado em Leiria a primeira edição do famoso Almanach
Perpetuum. Nascido em Espanha, Zacuto foi um dos muitos judeus que se viram
obrigados a fugir, depois da expulsão decretada em 1492 pelos Reis Católicos, e
que conseguiram asilo temporário em Portugal. Poucos anos depois, também a
corte de Lisboa decretaria a expulsão maciça dos judeus.
“Calendário”, “diário”, “borda de água”, “repertório”,
“prognóstico”, “lunário”, “sarrabal”, “efemérides”, “agenda”, “folhinha”,
“guia”, “tesouro”, “perfeito lavrador”, “tratado” ou “dissertação” são alguns
dos nomes usados para identificar aquilo que usualmente classificamos de
almanaques.
O Almanaque de Zacuto apresenta um quadro do tempo e
tabelas, onde se coligem conhecimentos de variadas áreas. Inclui tábuas
quadrienais e os especialistas discutem ainda hoje se elas seriam ou não
utilizadas nas navegações. Mas, defende o Comandante Estácio dos Reis, “sem o
almanaque não era possível resolver, pelo Sol, o problema do cálculo da
latitude, que exige o conhecimento da declinação solar no dia da observação”.
Não falta, obviamente, um calendário com os santos de cada dia ou uma tábua com
a maneira de calcular as festas móveis.
A Biblioteca Nacional realizou em 2003 uma exposição
dedicada ao tema dos almanaques, “Os Sucessores de Zacuto”, fazendo um
levantamento deste tipo de obras existentes no seu espólio.
João Luís Lisboa, que escreve uma introdução ao tema no
catálogo da exposição, refere: “Um almanaque é um guia, um instrumento onde se
encontram elementos para a organização do quotidiano. Em primeiro lugar,
organiza o tempo, tendo por base um calendário anual. Organiza as actividades,
arrumando saberes e indicações úteis para essas actividades. Organiza a colectividade
registando uma moral e uma cultura proverbiais. Organiza o espaço fornecendo
uma imagem clara do universo, tradicionalmente assente na astrologia. Sem
perder um sentido original de contagem, a noção de almanaque tenderá a
reflectir a ideia de compilação de saberes, em particular destinados a públicos
com pouco acesso a outras leituras”.
Geralmente, o almanaque tem na sua base um calendário anual,
onde estão registadas as posições dos astros, as fases da lua, as festividades
religiosas, os dias de jejum, onde se aventam previsões meteorológicas ou se
referem os trabalhos agrícolas adequados a cada momento. Cronologias universais
ou da história de Portugal, listas de provérbios ou pequenos conselhos de
higiene e saúde estão também igualmente incluídas neste tipo de obras.
No século XVI dá-se a tradução, por Valentim Fernandes, do
Reportório dos Tempos, de André de Li, “cidadão de Saragoça”. Publicado pela
primeira vez em 1518, foi republicado por Germão Galhardo sucessivamente em
1521, 1528, 1543, 1552 e 1557. Também com o título de Reportório dos Tempos
sairá o almanaque de André de Avelar, professor de Coimbra. “Inicia-se então o
permanente papel de iniciativa desempenhado por livreiros neste domínio, papel
que veio até ao século XX”, faz notar o especialista. “Custeados por mercadores
de livros, quatro edições do Reportório foram conhecendo alterações e
acrescentos ao longo de 20 anos, saindo dos prelos de quatro impressores”.
Outros almanaques quinhentistas foram saindo, com ou sem
indicação de autor, em português e em castelhano, como o de Jerónimo de Chaves,
Cronografia ou Reportório dos Tempos, de 1576.
Quanto ao século XVII, os nomes de autores associados nesse
período aos almanaques são muitos, quase todos apresentando-se como matemáticos
e astrólogos.
Num levantamento o mais exaustivo possível sobre autores de
almanaques desse período, usando a busca na Porbase, os trabalhos de Barbosa
Machado e Inocêncio ou o levantamento da Biblioteca Nacional para a exposição
atrás referida, eis o resultado possível:
Um tal Jerónimo Arnault publica um almanaque em 1601, Manuel
de Figueiredo faz sair o seu em 1603, Leandro Fajardo publica outro em 1604.
Depois, há um Prognóstico e lunário mui copioso, do ano da
nossa redenção de 1608 e da criação do mundo 5570, ao meridiano da cidade de
Lisboa. Composto pelo licenciado Paulo da Mota. Leva no cabo uma relação muito
curiosa. Contém no fim uma “Relação mui certa, e verdadeira, de muitas coisas
que sucederão no mundo em diversos tempos, recompilado de graves autores”, de
José Ferreira, natural do Porto.
Julião Machado (1608), Jácomes da Silveira (1612), Gaspar
Cardoso de Sequeira (1612, 1614, 1626, 1651, 1664, 1673, 1675, 1686 e 1700, mas
ainda 1701, 1702 e 1712) são outros autores de almanaques do século XVII.
Mas o nome de Manuel Gomes Galhano Lourosa, sobressai. A um
Prognóstico e lunário do ano de 1644, com todos os aspectos da lua com o sol, e
dos mais planetas com a mesma lua, e que “Leva mais suas notabilidades dignas
de ponderar neste mesmo ano de 1644, calculado ao meridiano de Lisboa”,
juntam-se outros prognósticos detectados em 1647, 1650, 1651, 1652, 1653, 1654,
1656, 1658, 1660, 1663, 1664, 1665, 1667, 1668, 1669, 1673, 1674 e 1675.
Natural de Almada, foi professor de Medicina e Astrologia. Admirado pela sua
infalibilidade, D. Francisco Manuel de Melo classificava-o de “acreditado
vaticinador de tempos e novidades”. Publicou também uma Cometografia
Metereológica do prodigioso Cometa que apareceu em Novembro de 1664.
De um anónimo, há um Prognóstico e lunário do ano de 1644,
com todas as conjugações e luas cheias, e quartos minguantes e crescentes, com
os aspectos dos planetas mais notáveis, calculado ao meridiano de Lisboa.
Gomes Rodrigues Sequeira, da Covilhã (1645, 1649) completa a
lista de nomes detectados até à primeira metade do século XVII.
“A circulação de edições concorrentes começa a ser
frequente, protestando uns autores contra outros, reivindicando cada um a maior
correcção das observações, cada uma sendo 'a verdadeira', tratando-se mutuamente
de charlatães e de mentirosos, denunciando a prática dos pseudónimos que se
manterá como imagem de marca durante séculos e que permitirá todo o género de
apropriações”, faz notar João Luís Lisboa.
Jerónimo Arnaut (1601), Manuel de Figueiredo (1603), Leandro
Fajardo (1604), Paulo Mota (1607), Julião Machado (1608), e Jácome da Silveira
(1612) são alguns dos autores de almanaques detectados no Portugal de
seiscentos.
Mas, nessa área, um nome que sobressai no século XVII
português é indubitavelmente o de Francisco Guilherme Casmak. Nascido em
Lisboa, em 1569, de pai normando, ingressou no colégio dos Jesuítas em Portugal
e prosseguiu estudos nas Universidades de Paris e Salamanca, onde recebeu o
grau de Doutor em Medicina. Cirurgião da Casa Real, publicou uma Relação
cirúrgica de um caso grave em que sucedeu mortificar-se um braço, e cortar-se
com bom sucesso, um Consultum Médicum, um Exercitationes, sive ennarrationes
Cirurgicae et examen Obstretricum, mais Trezentas e vinte narrações Cirúrgicas
de casos, que primeiro lhe passaram pelas mãos que pela pena ou ainda as
Experiências acompanhadas de muitos segredos dignos de estimação.
Mas a sua actividade literária para além das obras de
divulgação médica tornam-no autor obrigatório nos salões da corte. Escreveu um
Almanaque protótipo, e exemplar de prognósticos: com particulares efemérides
das conjunções e aspectos dos planetas, eclipses do sol, e lua, e prognósticos
para o presente ano de 1645: calculado pela nova e genuína teoria do motu
celeste, e tesouro das observações astronómicas lansbergienses, argolicas e de
Origano ao meridiano desta cidade de Lisboa. Ou uma Braquilogia astrológica e
apocatastais, apográfica do Sol, e Lua, e mais Planetas, com todos os seus
aspectos, eclipses e prognosticação de seus efeitos, para o presente ano de
1646: calculado pela nova e genuína teoria [...].
Do licenciado Gomes Rodrigues de Sequeira há a registar um
Prognóstico e lunário do ano de 1646, com todas as conjugações e luas cheias, e
quartos crescentes, e minguantes: e com todos os aspectos mais notáveis dos
planetas de todo o ano. Calculado e verificado com o meridiano de Lisboa. Do
mesmo autor, Prognóstico e lunário do ano de 1649, primeiro depois do bissexto,
com todas as conjugações e luas cheias [...].
O que era um lunário? “A diferença entre um almanaque do ano
e um lunário perpétuo, para além da estrutura periódica, é que o lunário
perpétuo apresenta dados, seja sobre as posições dos astros, seja sobre as
festas móveis, de forma a que possam ser aplicados a um período mais longo que,
ciclicamente, se repete. Daí que os livrinhos anuais, que se propagam a partir
do século XVII, fossem mais populares e se reproduzissem aos milhares”, explica
João Luís Lisboa na Apresentação ao já citado catálogo da Biblioteca Nacional,
Os sucessores de Zacuto.
António Pais Ferraz escreveu um Prognóstico e lunário do ano
de 1653, com todos os aspectos da Lua com o Sol, e alterações do ar, ou um
Prognóstico e lunário do ano de 1656, com as conjugações e mais aspectos da lua
com o sol e mudança do tempo. E alguns avisos muito importantes para os
lavradores, calculado ao meridiano de Lisboa. Do mesmo autor, há um Discurso
astrológico das influências da maior conjugação de Júpiter e Marte, que
sucederá neste ano de 1660, a 8 de Agosto: observada e calculada para o
meridiano desta corte, cabeça de Portugal: nela se trata da exaltação de
Portugal, dos princípios do seu império e de suas felicidades. Produz mais um
almanaque em 1662. Natural de Lisboa, Ferraz era licenciado em Filosofia,
Teologia e Matemática.
Um Prognóstico e lunário do ano de 1659, com todas as
conjugações, oposições e quadrados dos luminares sol e lua, alterações do ar,
com eleições muito curiosas e de proveito para os lavradores fazerem suas
sementeiras, verificado ao meridiano de Lisboa, de Francisco de Espinosa,
insere-se neste tipo de obras. Natural de Leiria, professor de Matemática,
Espinosa publicaria ainda um Prognóstico Diário das Marés de um dia
sucessivamente em outro dia com o Calendário, mudanças do tempo e aspectos da
Lua com o Sol, e seus efeitos para o ano de 1661.
O licenciado, padre Manuel Gonçalves da Costa, natural de
Montemor-o-Velho, publica um almanaque em 1660 e um Prognóstico e lunário do
ano de 1662, calculado ao meridiano de Lisboa. Vai ilustrado com uma nova e
oitava notícia em ordem às do prognóstico de 1660. E uma breve descrição do
Reino de Portugal.
Depois, há um Prognóstico e lunário do ano de 1674,
calculado ao meridiano de Lisboa, pelo licenciado, padre João Coelho, pregador
na Sé de Braga, que apresenta novo almanaque em 1675. Ou o Prognóstico e
lunário do ano de 1677, calculado ao meridiano da cidade de Lisboa, de Jerónimo
do Avelar e ainda um Prognóstico e lunário do ano de 1677, calculado ao
meridiano de Lisboa, do licenciado Manuel Ferreira dos Reis, médico de
Cantanhede.
Quanto ao século XVIII, no que respeita a almanaques, “a
competição editorial será intensa e até conflituosa”, afirma João Luís Lisboa.
As guerras de preços entre os vários autores e editores já vinham do século
anterior, bem como os ataques pessoais por plágio, utilização de nomes falsos
ou pretensa introdução de dados menos exactos.
A febre de consumo dos almanaques esteve no auge durante os
150 anos seguintes e, apesar da guerra que lhes foi sendo movida pelos meios
académicos e políticos, “folhetos e livros contendo os saberes de almanaque
circulam com sucesso em Portugal, quer sejam impressos no país, quer sejam
trazidos de Itália ou de Espanha”, diz o especialista. E até a Real Mesa
Censória se curva perante a necessidade de proteger o nacional e combater o que
vem de contrabando, já que os almanaques eram “do género daqueles, cuja
publicação em todo o Estado cultivado só é tolerável, enquanto servem de
impedimento à importação furtiva e prejudicial de outros semelhantes impressos
em outros Estados vizinhos”, (parecer de 1795).
Até meados do século XVIII, os almanaques tinham-se
destinado, predominantemente, a um público rural, marcando os tempos agrícolas.
Mas é a própria Igreja, através da Congregação do Oratório de Lisboa, que
publica desde 1760 e até 1849 o Diário Eclesiástico, com o objectivo confesso
de chegar a um público urbano, especialmente feminino. A alfabetização de
franjas da sociedade cada vez mais alargadas ia contribuindo para o sucesso
deste tipo de publicação, onde ganha cada vez mais importância a ilustração ou,
depois, a fotografia.
Outros géneros vão aparecendo no final do século XVIII. O
Almanaque das Musas, de Domingos Caldas Barbosa (1793), que nem calendário tem,
explora o interesse estético de novas camadas de leitores, enquanto o Almanaque
de Lisboa, publicado pela Academia das Ciências entre 1782 e 1823 inclui, para
além das observações astronómicas, dos calendários e das cronologias, registo
dos dias de audiência, os assuntos a discutir nas sessões da Academia e listas
de membros de várias instituições e profissões, “com centenas de nomes da
melhor sociedade portuguesa”, faz notar João Luís Lisboa. Na sua primeira
edição, o Almanaque da Academia reconhece o atraso e os erros face ao resto da
Europa do início de uma publicação que, com esta orientação científica pura,
nunca tinha existido no país.
Apenas em 1917 o Observatório Astronómico da Ajuda inicia a
publicação, até hoje ininterrupta, de Dados Astronómicos para Almanaques, mas
este título merecerá, por si só, atenção especial quando chegarmos ao século
XX.
Durante todo o século XVIII a competição editorial será
intensa e mesmo conflituosa em Portugal em relação aos vários tipos de
almanaques. Jorge Freire Galhano (1714), Manuel Fernandes Alarcão (1719), Pedro
Alcoforado Pimenta (1722), Rodrigo de Sousa Alcoforado (1715, 1729, 1732),
Inocêncio Fernandes de Coura (1729, 1731), Crispim Reimão “sarrabal ratinho”
(1736, 1737, 1742), Francisco Carlos da Silva (1739, 1743, 1744), João António
de Oliveira (1769), Melchior Estácio do Amaral (1777), Bento de Mesquita (1791)
ou João Amorim (1794) são nomes verdadeiros ou pseudónimos de autores desse
género de publicações, a que se juntam dois beneditinos, António de São José
Guedes e Victorino José da Costa (entre 1730 e 1750).
Mas é sobretudo na segunda metade do século XIX que se
verifica a explosão dos almanaques, em género e em número, correspondendo a um
aumento significativo dos públicos que os procuram – sublinha João Luís Lisboa.
Públicos novos levarão a modelos novos, ora centrando-se os calendários em
actividades particulares de uma corporação ou de uma profissão (como o dos
cozinheiros, com receitas várias), de um programa (tauromáquico, teatral,
turístico, dos caminhos de ferros, com os seus horários), com uma agenda social
e política (difundindo, por exemplo, propaganda republicana e socialista, em
títulos como o Almanaque dos Amigos do Povo, o Almanaque do Verdadeiro
Republicano, o Almanaque Democrático, o Almanaque do Trabalhador Emancipado, o Almanaque
do Socialismo, o Almanaque da Ideia Comunista, etc.), ou especializando-se em
curiosidades, divertimentos, jogos e anedotas.
E as colaborações incluem nomes tão prestigiados como Filipe
Folque, Henrique Nogueira, Júlio César Machado, Elias Garcia, Manuel de Arriaga
ou Gomes Leal.
Um caso interessante é o Eça de Queirós. O editor António
Maria Pereira encarrega-o de organizar o Almanaque Enciclopédico para os anos
de 1896 e 1897. Uma colaboração recentemente lembrada pela Biblioteca Nacional,
com a reedição do texto “Almanaques”, que Eça terá escrito em 1895, para servir
de prefácio à obra que apareceu no ano seguinte. Neste “negócio” entre o editor
e o escritor não há nada de excepcional, pois Eça teve que aceder
frequentemente a tarefas um tanto ou quanto afastadas do seu “métier” de
escritor literário, devido a razões económicas. “Escrever para almanaques não
correspondia, para Eça, a um puro impulso cultural, era antes o resultado da
necessidade de arredondar um orçamento sempre escasso”, afirma Carlos Reis na
Introdução ao livrinho. Em “Almanaques”, Eça recorda as origens históricas do
género: “O Livro de Todo-o-Saber, gravado para a Humanidade vindoura, sobre o
tijolo e o granito, nas vésperas do Dilúvio, por dois sábios filhos de Seth,
era na realidade e simplesmente um Almanaque”.
O escritor fala ainda das suas funções sociais e culturais:
“E se os livros todos desaparecessem, bruscamente, e com eles todas as noções,
e só restasse, da vasta aniquilação, um Almanaque isolado, a Civilização guiada
pela indicações genéricas, sobre a Religião, o Estado, a Lavoura, poderia
continuar, sem esplendor, sem requinte, mas com fartura e com ordem. Por isso
os homens se apressaram a arquivar essas verdades de Almanaque, - antes mesmo
de fixar em livros duráveis as suas Leis, os seus Ritos, os seus Anais. Antes
de ter um Código, uma Cartilha, uma História, a cidade antiga teve um
Almanaque”.
O escritor diz também que um almanaque deve ser “o livro
disciplinar que coloca os marcos, traça as linhas, dentro das quais circula,
com ordem, toda a nossa vida social”.
E o que é o Tempo, nas palavras de Eça? “O Tempo, essa
impressão misteriosa a que chamamos Tempo, é para o homem como uma planície,
sem forma, sem fim, sem luz, onde ele caminha guiado pelo Almanaque, que o
segura pela mão, o vai puxando, e a cada passo murmurando: - ‘Aqui estás em
Setembro... Além fim da semana... Em breve alcanças o 28... Hoje é Sábado...’
Se o Almanaque subitamente, lhe soltasse a mão, o abandonasse, e para sempre se
sumisse aquela Voz reguladora, que anuncia as Datas, o homem vaguearia
estonteado, irremissivelmente confuso, dentro da vacuidade do Tempo”.
No final do século XIX, para a mentalidade que se iniciava
cosmopolita, numa Europa cada vez mais ligada pelos transportes e pelo telégrafo,
até Eça ainda defendia que “só com o Almanaque, sempre presente e sempre
ensinante, pode existir regularidade e periodicidade na vida de uma Sociedade:
- e sem ele, como numa feira, quando se abatem as barreiras e se recolhem as
cordas divisórias, o que era uma Sociedade seria apenas uma horda em tumulto.”
Por isso, “cada povo que se organiza, e se prepara para a História,
imediatamente redige o seu Almanaque, com o cuidado e a previsão com que traça
as ruas da sua Cidade”.
“O século XX verá continuar, durante muitos anos, o
interesse pelo almanaque”, refere-se, entretanto, no estudo de Os Sucessores de
Zacuto. A dimensão comercial torna-se dominante e em muitas edições os
anunciantes passam a ter um lugar de destaque. Surgem os vários Borda d'Água (O
Almanaque Borda d'Água, O Velho Borda d'Água, da livraria Barateira, O
Verdadeiro Almanaque Borda d'Água, O Verdadeiro Borda d'Água), concebidos como
pequenos jornais, assentes nos seus calendários e observações dos astros.
Vendendo-se sempre pelas ruas, à porta das igrejas ou das estações de comboios,
captam as camadas mais populares das populações. Uma dessas publicações
conseguiu sobreviver até hoje.
Para públicos mais exigentes, há o Almanaque Bertrand,
concebido como um livro, cartonado, com cerca de 400 páginas. Além de umas 30
páginas dedicadas ao calendário, inclui uma longa “secção literária,
científica, artística e recreativa”, com passatempos, enigmas, anedotas,
contos, curiosidades e provérbios. Profusamente ilustrado, os dados
astronómicos ali inseridos eram feitos a partir do fornecido pelo Observatório
Astronómico de Lisboa. O Almanaque Bertrand publicou-se entre 1899 e 1971. Depois de um interregno de 40 anos, voltou a ser publicado a partir de 2011.
Os almanaques “foram acrescentando funções e
componentes, até ao momento em que elas se separaram numa multiplicidade de
publicações, de meios, de informações e de agendas que já não se reconhecem
hoje nos seus eventuais antepassados”, diz João Luís Lisboa.
Longe vão os tempos em que, nas palavras de Eça, era possível “pôr todo o Saber em volumes portáteis, fáceis, que um erudito anémico possa manejar, que não tirem o lugar aos Poetas, mesmo os mais inúteis, os poetas de amor, que possam dormir connosco na alcova, como os livros de rezas, e que nos ofereçam as noções facilmente, e tão fáceis de colher, como flores num canteiro baixo”.
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