domingo, 4 de julho de 2021

Coisas do Ephemera - A Estrela Horologial e o Lunário Perpétuo

Sabia que há uma Estrela Horologial? E que ela lhe permite saber as horas, de noite? Quer saber como achar as horas, de dia, através da mão? Ou como construir um relógio de sol? A tudo isto dá resposta o Lunário ou Prognóstico Perpétuo de Jerónimo Cortez. Em cima, uma edição de 1870 desta obra, de que existe um exemplar no Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera.

A primeira edição do Lunário apareceu em Valença, em 1582. A sua presença nos índices de 1632, 1640 e 1707 da Inquisição em Portugal mostra que a obra circulou no país na sua língua original, antes e mesmo depois de ser traduzida e adaptada, em 1703, por António da Silva de Brito, cujo nome passa a figurar na capa. O editor foi então Miguel Menescal, que também imprimia as obras do Santo Ofício. 

Este lunário foi das obras do seu género mais divulgadas na Península Ibérica, tendo conhecido mais de uma dezena de reedições, só em Português. Enquanto os almanaques têm uma vigência anual, os lunários servem para todos os anos. Além das indicações astronómicas e de calendário, incluem muitas vezes conselhos sobre agricultura, receitas caseiras, indicações úteis para um quotidiano sobretudo rural. Em baixo, edição espanhola do lunário, de 1672, "corrigido segundo o expurgatório da Santa Inquisição".








Em História do Tempo em Portugal (2003), escrevemos sobre este vasto, variado e rico mundo dos almanaques e lunários:

Do Almanach Perpetuum de Zacuto ao Almanaque Bertrand, passando pelo Borda d’Água. Um certo tipo de cultura, para públicos diversos, variegados gostos.

E, contudo, esse livro, que se encontra em todas as casas, que se vende por todas as ruas e em todas as praças, que todos compram para o seu governo, é por muitos ridicularizado e até desprezado, servindo-se dele a cada momento; esperando este, no fim do ano, a mesma sorte que esperam quase todos os jornais políticos.

Augusto Luso da Silva

Segundo se julga, Abraão Zacuto (1452-1515), astrónomo e historiador judeu, foi o responsável pela introdução em Portugal do primeiro almanaque. Inventor de tabelas astronómicas usadas pelos navegadores, escreveu também em hebraico um tratado de astronomia, Em 1496, como já tínhamos referido, era publicado em Leiria a primeira edição do famoso Almanach Perpetuum. Nascido em Espanha, Zacuto foi um dos muitos judeus que se viram obrigados a fugir, depois da expulsão decretada em 1492 pelos Reis Católicos, e que conseguiram asilo temporário em Portugal. Poucos anos depois, também a corte de Lisboa decretaria a expulsão maciça dos judeus.

“Calendário”, “diário”, “borda de água”, “repertório”, “prognóstico”, “lunário”, “sarrabal”, “efemérides”, “agenda”, “folhinha”, “guia”, “tesouro”, “perfeito lavrador”, “tratado” ou “dissertação” são alguns dos nomes usados para identificar aquilo que usualmente classificamos de almanaques.

O Almanaque de Zacuto apresenta um quadro do tempo e tabelas, onde se coligem conhecimentos de variadas áreas. Inclui tábuas quadrienais e os especialistas discutem ainda hoje se elas seriam ou não utilizadas nas navegações. Mas, defende o Comandante Estácio dos Reis, “sem o almanaque não era possível resolver, pelo Sol, o problema do cálculo da latitude, que exige o conhecimento da declinação solar no dia da observação”. Não falta, obviamente, um calendário com os santos de cada dia ou uma tábua com a maneira de calcular as festas móveis.

A Biblioteca Nacional realizou em 2003 uma exposição dedicada ao tema dos almanaques, “Os Sucessores de Zacuto”, fazendo um levantamento deste tipo de obras existentes no seu espólio.

João Luís Lisboa, que escreve uma introdução ao tema no catálogo da exposição, refere: “Um almanaque é um guia, um instrumento onde se encontram elementos para a organização do quotidiano. Em primeiro lugar, organiza o tempo, tendo por base um calendário anual. Organiza as actividades, arrumando saberes e indicações úteis para essas actividades. Organiza a colectividade registando uma moral e uma cultura proverbiais. Organiza o espaço fornecendo uma imagem clara do universo, tradicionalmente assente na astrologia. Sem perder um sentido original de contagem, a noção de almanaque tenderá a reflectir a ideia de compilação de saberes, em particular destinados a públicos com pouco acesso a outras leituras”.

Geralmente, o almanaque tem na sua base um calendário anual, onde estão registadas as posições dos astros, as fases da lua, as festividades religiosas, os dias de jejum, onde se aventam previsões meteorológicas ou se referem os trabalhos agrícolas adequados a cada momento. Cronologias universais ou da história de Portugal, listas de provérbios ou pequenos conselhos de higiene e saúde estão também igualmente incluídas neste tipo de obras.

No século XVI dá-se a tradução, por Valentim Fernandes, do Reportório dos Tempos, de André de Li, “cidadão de Saragoça”. Publicado pela primeira vez em 1518, foi republicado por Germão Galhardo sucessivamente em 1521, 1528, 1543, 1552 e 1557. Também com o título de Reportório dos Tempos sairá o almanaque de André de Avelar, professor de Coimbra. “Inicia-se então o permanente papel de iniciativa desempenhado por livreiros neste domínio, papel que veio até ao século XX”, faz notar o especialista. “Custeados por mercadores de livros, quatro edições do Reportório foram conhecendo alterações e acrescentos ao longo de 20 anos, saindo dos prelos de quatro impressores”.

Outros almanaques quinhentistas foram saindo, com ou sem indicação de autor, em português e em castelhano, como o de Jerónimo de Chaves, Cronografia ou Reportório dos Tempos, de 1576.

Quanto ao século XVII, os nomes de autores associados nesse período aos almanaques são muitos, quase todos apresentando-se como matemáticos e astrólogos.

Num levantamento o mais exaustivo possível sobre autores de almanaques desse período, usando a busca na Porbase, os trabalhos de Barbosa Machado e Inocêncio ou o levantamento da Biblioteca Nacional para a exposição atrás referida, eis o resultado possível:

Um tal Jerónimo Arnault publica um almanaque em 1601, Manuel de Figueiredo faz sair o seu em 1603, Leandro Fajardo publica outro em 1604.

Depois, há um Prognóstico e lunário mui copioso, do ano da nossa redenção de 1608 e da criação do mundo 5570, ao meridiano da cidade de Lisboa. Composto pelo licenciado Paulo da Mota. Leva no cabo uma relação muito curiosa. Contém no fim uma “Relação mui certa, e verdadeira, de muitas coisas que sucederão no mundo em diversos tempos, recompilado de graves autores”, de José Ferreira, natural do Porto.

Julião Machado (1608), Jácomes da Silveira (1612), Gaspar Cardoso de Sequeira (1612, 1614, 1626, 1651, 1664, 1673, 1675, 1686 e 1700, mas ainda 1701, 1702 e 1712) são outros autores de almanaques do século XVII.

Mas o nome de Manuel Gomes Galhano Lourosa, sobressai. A um Prognóstico e lunário do ano de 1644, com todos os aspectos da lua com o sol, e dos mais planetas com a mesma lua, e que “Leva mais suas notabilidades dignas de ponderar neste mesmo ano de 1644, calculado ao meridiano de Lisboa”, juntam-se outros prognósticos detectados em 1647, 1650, 1651, 1652, 1653, 1654, 1656, 1658, 1660, 1663, 1664, 1665, 1667, 1668, 1669, 1673, 1674 e 1675. Natural de Almada, foi professor de Medicina e Astrologia. Admirado pela sua infalibilidade, D. Francisco Manuel de Melo classificava-o de “acreditado vaticinador de tempos e novidades”. Publicou também uma Cometografia Metereológica do prodigioso Cometa que apareceu em Novembro de 1664.

De um anónimo, há um Prognóstico e lunário do ano de 1644, com todas as conjugações e luas cheias, e quartos minguantes e crescentes, com os aspectos dos planetas mais notáveis, calculado ao meridiano de Lisboa.

Gomes Rodrigues Sequeira, da Covilhã (1645, 1649) completa a lista de nomes detectados até à primeira metade do século XVII.

“A circulação de edições concorrentes começa a ser frequente, protestando uns autores contra outros, reivindicando cada um a maior correcção das observações, cada uma sendo 'a verdadeira', tratando-se mutuamente de charlatães e de mentirosos, denunciando a prática dos pseudónimos que se manterá como imagem de marca durante séculos e que permitirá todo o género de apropriações”, faz notar João Luís Lisboa.

Jerónimo Arnaut (1601), Manuel de Figueiredo (1603), Leandro Fajardo (1604), Paulo Mota (1607), Julião Machado (1608), e Jácome da Silveira (1612) são alguns dos autores de almanaques detectados no Portugal de seiscentos.

Mas, nessa área, um nome que sobressai no século XVII português é indubitavelmente o de Francisco Guilherme Casmak. Nascido em Lisboa, em 1569, de pai normando, ingressou no colégio dos Jesuítas em Portugal e prosseguiu estudos nas Universidades de Paris e Salamanca, onde recebeu o grau de Doutor em Medicina. Cirurgião da Casa Real, publicou uma Relação cirúrgica de um caso grave em que sucedeu mortificar-se um braço, e cortar-se com bom sucesso, um Consultum Médicum, um Exercitationes, sive ennarrationes Cirurgicae et examen Obstretricum, mais Trezentas e vinte narrações Cirúrgicas de casos, que primeiro lhe passaram pelas mãos que pela pena ou ainda as Experiências acompanhadas de muitos segredos dignos de estimação.

Mas a sua actividade literária para além das obras de divulgação médica tornam-no autor obrigatório nos salões da corte. Escreveu um Almanaque protótipo, e exemplar de prognósticos: com particulares efemérides das conjunções e aspectos dos planetas, eclipses do sol, e lua, e prognósticos para o presente ano de 1645: calculado pela nova e genuína teoria do motu celeste, e tesouro das observações astronómicas lansbergienses, argolicas e de Origano ao meridiano desta cidade de Lisboa. Ou uma Braquilogia astrológica e apocatastais, apográfica do Sol, e Lua, e mais Planetas, com todos os seus aspectos, eclipses e prognosticação de seus efeitos, para o presente ano de 1646: calculado pela nova e genuína teoria [...].

Do licenciado Gomes Rodrigues de Sequeira há a registar um Prognóstico e lunário do ano de 1646, com todas as conjugações e luas cheias, e quartos crescentes, e minguantes: e com todos os aspectos mais notáveis dos planetas de todo o ano. Calculado e verificado com o meridiano de Lisboa. Do mesmo autor, Prognóstico e lunário do ano de 1649, primeiro depois do bissexto, com todas as conjugações e luas cheias [...].

O que era um lunário? “A diferença entre um almanaque do ano e um lunário perpétuo, para além da estrutura periódica, é que o lunário perpétuo apresenta dados, seja sobre as posições dos astros, seja sobre as festas móveis, de forma a que possam ser aplicados a um período mais longo que, ciclicamente, se repete. Daí que os livrinhos anuais, que se propagam a partir do século XVII, fossem mais populares e se reproduzissem aos milhares”, explica João Luís Lisboa na Apresentação ao já citado catálogo da Biblioteca Nacional, Os sucessores de Zacuto.

António Pais Ferraz escreveu um Prognóstico e lunário do ano de 1653, com todos os aspectos da Lua com o Sol, e alterações do ar, ou um Prognóstico e lunário do ano de 1656, com as conjugações e mais aspectos da lua com o sol e mudança do tempo. E alguns avisos muito importantes para os lavradores, calculado ao meridiano de Lisboa. Do mesmo autor, há um Discurso astrológico das influências da maior conjugação de Júpiter e Marte, que sucederá neste ano de 1660, a 8 de Agosto: observada e calculada para o meridiano desta corte, cabeça de Portugal: nela se trata da exaltação de Portugal, dos princípios do seu império e de suas felicidades. Produz mais um almanaque em 1662. Natural de Lisboa, Ferraz era licenciado em Filosofia, Teologia e Matemática.

Um Prognóstico e lunário do ano de 1659, com todas as conjugações, oposições e quadrados dos luminares sol e lua, alterações do ar, com eleições muito curiosas e de proveito para os lavradores fazerem suas sementeiras, verificado ao meridiano de Lisboa, de Francisco de Espinosa, insere-se neste tipo de obras. Natural de Leiria, professor de Matemática, Espinosa publicaria ainda um Prognóstico Diário das Marés de um dia sucessivamente em outro dia com o Calendário, mudanças do tempo e aspectos da Lua com o Sol, e seus efeitos para o ano de 1661.

O licenciado, padre Manuel Gonçalves da Costa, natural de Montemor-o-Velho, publica um almanaque em 1660 e um Prognóstico e lunário do ano de 1662, calculado ao meridiano de Lisboa. Vai ilustrado com uma nova e oitava notícia em ordem às do prognóstico de 1660. E uma breve descrição do Reino de Portugal.

Depois, há um Prognóstico e lunário do ano de 1674, calculado ao meridiano de Lisboa, pelo licenciado, padre João Coelho, pregador na Sé de Braga, que apresenta novo almanaque em 1675. Ou o Prognóstico e lunário do ano de 1677, calculado ao meridiano da cidade de Lisboa, de Jerónimo do Avelar e ainda um Prognóstico e lunário do ano de 1677, calculado ao meridiano de Lisboa, do licenciado Manuel Ferreira dos Reis, médico de Cantanhede.

Quanto ao século XVIII, no que respeita a almanaques, “a competição editorial será intensa e até conflituosa”, afirma João Luís Lisboa. As guerras de preços entre os vários autores e editores já vinham do século anterior, bem como os ataques pessoais por plágio, utilização de nomes falsos ou pretensa introdução de dados menos exactos.

A febre de consumo dos almanaques esteve no auge durante os 150 anos seguintes e, apesar da guerra que lhes foi sendo movida pelos meios académicos e políticos, “folhetos e livros contendo os saberes de almanaque circulam com sucesso em Portugal, quer sejam impressos no país, quer sejam trazidos de Itália ou de Espanha”, diz o especialista. E até a Real Mesa Censória se curva perante a necessidade de proteger o nacional e combater o que vem de contrabando, já que os almanaques eram “do género daqueles, cuja publicação em todo o Estado cultivado só é tolerável, enquanto servem de impedimento à importação furtiva e prejudicial de outros semelhantes impressos em outros Estados vizinhos”, (parecer de 1795).

Até meados do século XVIII, os almanaques tinham-se destinado, predominantemente, a um público rural, marcando os tempos agrícolas. Mas é a própria Igreja, através da Congregação do Oratório de Lisboa, que publica desde 1760 e até 1849 o Diário Eclesiástico, com o objectivo confesso de chegar a um público urbano, especialmente feminino. A alfabetização de franjas da sociedade cada vez mais alargadas ia contribuindo para o sucesso deste tipo de publicação, onde ganha cada vez mais importância a ilustração ou, depois, a fotografia.

Outros géneros vão aparecendo no final do século XVIII. O Almanaque das Musas, de Domingos Caldas Barbosa (1793), que nem calendário tem, explora o interesse estético de novas camadas de leitores, enquanto o Almanaque de Lisboa, publicado pela Academia das Ciências entre 1782 e 1823 inclui, para além das observações astronómicas, dos calendários e das cronologias, registo dos dias de audiência, os assuntos a discutir nas sessões da Academia e listas de membros de várias instituições e profissões, “com centenas de nomes da melhor sociedade portuguesa”, faz notar João Luís Lisboa. Na sua primeira edição, o Almanaque da Academia reconhece o atraso e os erros face ao resto da Europa do início de uma publicação que, com esta orientação científica pura, nunca tinha existido no país.

Apenas em 1917 o Observatório Astronómico da Ajuda inicia a publicação, até hoje ininterrupta, de Dados Astronómicos para Almanaques, mas este título merecerá, por si só, atenção especial quando chegarmos ao século XX.

Durante todo o século XVIII a competição editorial será intensa e mesmo conflituosa em Portugal em relação aos vários tipos de almanaques. Jorge Freire Galhano (1714), Manuel Fernandes Alarcão (1719), Pedro Alcoforado Pimenta (1722), Rodrigo de Sousa Alcoforado (1715, 1729, 1732), Inocêncio Fernandes de Coura (1729, 1731), Crispim Reimão “sarrabal ratinho” (1736, 1737, 1742), Francisco Carlos da Silva (1739, 1743, 1744), João António de Oliveira (1769), Melchior Estácio do Amaral (1777), Bento de Mesquita (1791) ou João Amorim (1794) são nomes verdadeiros ou pseudónimos de autores desse género de publicações, a que se juntam dois beneditinos, António de São José Guedes e Victorino José da Costa (entre 1730 e 1750).

Mas é sobretudo na segunda metade do século XIX que se verifica a explosão dos almanaques, em género e em número, correspondendo a um aumento significativo dos públicos que os procuram – sublinha João Luís Lisboa. Públicos novos levarão a modelos novos, ora centrando-se os calendários em actividades particulares de uma corporação ou de uma profissão (como o dos cozinheiros, com receitas várias), de um programa (tauromáquico, teatral, turístico, dos caminhos de ferros, com os seus horários), com uma agenda social e política (difundindo, por exemplo, propaganda republicana e socialista, em títulos como o Almanaque dos Amigos do Povo, o Almanaque do Verdadeiro Republicano, o Almanaque Democrático, o Almanaque do Trabalhador Emancipado, o Almanaque do Socialismo, o Almanaque da Ideia Comunista, etc.), ou especializando-se em curiosidades, divertimentos, jogos e anedotas.

E as colaborações incluem nomes tão prestigiados como Filipe Folque, Henrique Nogueira, Júlio César Machado, Elias Garcia, Manuel de Arriaga ou Gomes Leal.

Um caso interessante é o Eça de Queirós. O editor António Maria Pereira encarrega-o de organizar o Almanaque Enciclopédico para os anos de 1896 e 1897. Uma colaboração recentemente lembrada pela Biblioteca Nacional, com a reedição do texto “Almanaques”, que Eça terá escrito em 1895, para servir de prefácio à obra que apareceu no ano seguinte. Neste “negócio” entre o editor e o escritor não há nada de excepcional, pois Eça teve que aceder frequentemente a tarefas um tanto ou quanto afastadas do seu “métier” de escritor literário, devido a razões económicas. “Escrever para almanaques não correspondia, para Eça, a um puro impulso cultural, era antes o resultado da necessidade de arredondar um orçamento sempre escasso”, afirma Carlos Reis na Introdução ao livrinho. Em “Almanaques”, Eça recorda as origens históricas do género: “O Livro de Todo-o-Saber, gravado para a Humanidade vindoura, sobre o tijolo e o granito, nas vésperas do Dilúvio, por dois sábios filhos de Seth, era na realidade e simplesmente um Almanaque”.

O escritor fala ainda das suas funções sociais e culturais: “E se os livros todos desaparecessem, bruscamente, e com eles todas as noções, e só restasse, da vasta aniquilação, um Almanaque isolado, a Civilização guiada pela indicações genéricas, sobre a Religião, o Estado, a Lavoura, poderia continuar, sem esplendor, sem requinte, mas com fartura e com ordem. Por isso os homens se apressaram a arquivar essas verdades de Almanaque, - antes mesmo de fixar em livros duráveis as suas Leis, os seus Ritos, os seus Anais. Antes de ter um Código, uma Cartilha, uma História, a cidade antiga teve um Almanaque”.

O escritor diz também que um almanaque deve ser “o livro disciplinar que coloca os marcos, traça as linhas, dentro das quais circula, com ordem, toda a nossa vida social”.

E o que é o Tempo, nas palavras de Eça? “O Tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos Tempo, é para o homem como uma planície, sem forma, sem fim, sem luz, onde ele caminha guiado pelo Almanaque, que o segura pela mão, o vai puxando, e a cada passo murmurando: - ‘Aqui estás em Setembro... Além fim da semana... Em breve alcanças o 28... Hoje é Sábado...’ Se o Almanaque subitamente, lhe soltasse a mão, o abandonasse, e para sempre se sumisse aquela Voz reguladora, que anuncia as Datas, o homem vaguearia estonteado, irremissivelmente confuso, dentro da vacuidade do Tempo”.

No final do século XIX, para a mentalidade que se iniciava cosmopolita, numa Europa cada vez mais ligada pelos transportes e pelo telégrafo, até Eça ainda defendia que “só com o Almanaque, sempre presente e sempre ensinante, pode existir regularidade e periodicidade na vida de uma Sociedade: - e sem ele, como numa feira, quando se abatem as barreiras e se recolhem as cordas divisórias, o que era uma Sociedade seria apenas uma horda em tumulto.” Por isso, “cada povo que se organiza, e se prepara para a História, imediatamente redige o seu Almanaque, com o cuidado e a previsão com que traça as ruas da sua Cidade”.

“O século XX verá continuar, durante muitos anos, o interesse pelo almanaque”, refere-se, entretanto, no estudo de Os Sucessores de Zacuto. A dimensão comercial torna-se dominante e em muitas edições os anunciantes passam a ter um lugar de destaque. Surgem os vários Borda d'Água (O Almanaque Borda d'Água, O Velho Borda d'Água, da livraria Barateira, O Verdadeiro Almanaque Borda d'Água, O Verdadeiro Borda d'Água), concebidos como pequenos jornais, assentes nos seus calendários e observações dos astros. Vendendo-se sempre pelas ruas, à porta das igrejas ou das estações de comboios, captam as camadas mais populares das populações. Uma dessas publicações conseguiu sobreviver até hoje.

Para públicos mais exigentes, há o Almanaque Bertrand, concebido como um livro, cartonado, com cerca de 400 páginas. Além de umas 30 páginas dedicadas ao calendário, inclui uma longa “secção literária, científica, artística e recreativa”, com passatempos, enigmas, anedotas, contos, curiosidades e provérbios. Profusamente ilustrado, os dados astronómicos ali inseridos eram feitos a partir do fornecido pelo Observatório Astronómico de Lisboa. O Almanaque Bertrand publicou-se entre 1899 e 1971. Depois de um interregno de 40 anos, voltou a ser publicado a partir de 2011.

Os almanaques “foram acrescentando funções e componentes, até ao momento em que elas se separaram numa multiplicidade de publicações, de meios, de informações e de agendas que já não se reconhecem hoje nos seus eventuais antepassados”, diz João Luís Lisboa.

Longe vão os tempos em que, nas palavras de Eça, era possível “pôr todo o Saber em volumes portáteis, fáceis, que um erudito anémico possa manejar, que não tirem o lugar aos Poetas, mesmo os mais inúteis, os poetas de amor, que possam dormir connosco na alcova, como os livros de rezas, e que nos ofereçam as noções facilmente, e tão fáceis de colher, como flores num canteiro baixo”.

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