cada roca com seu fuso
Iniciamos um ano bissexto, o que dá sempre que pensar. Afinal no velho calendário romano era antes de se chegar aos idos de Março que se fazia o acerto cósmico, considerando que a certeza dos astrónomos obrigava a que, de quatro em quatro anos, houvesse um acerto de vinte e quatro horas, por conta das seis horas de desvio anual. Por muito que se desejasse que tudo fosse perfeito, como os astrólogos desejam, a verdade é que a grande balança do universo tem o seu quê de incerto. E o que é o Borda d’Água? Um ser rotundo, antigo, de cartola, óculos redondos graduados, um guarda-chuva, e uma interrogação permanente nos lábios sobre os astros e as nuvens, o sol e a lua, mas também sobre as culturas, os jardins, as árvores, as aves e o seu voo… Um dia foi visto, tal qual Lineu, de cócoras, com uma grande lupa a investigar o percurso das formigas, e a tentar ver onde estava a formiga mestra, ardilosamente escondida e protegida pelas aias solícitas… Outra vez foi encontrado, com uma tremenda máscara que o fazia tremendo à procura da abelha mestra numa colmeia, sem que nenhum dos inteligentes insetos o atacasse… Sim, o Borda d’Água é isso tudo: alguém que anuncia, prenuncia, justifica, demonstra, interpreta, domina e concede segurança a quem dela duvida. Encontrei-o há dias, falámos fugazmente. Explicou-me que a invernia ainda seria dura, que a primavera seria incerta, que o verão conheceria chuvas tropicais e que o outono não seria mau. Aventurou-se por ritos pagãos e cristãos, e no fim de tudo partiu apressado, pois ainda tinha um encontro marcado com um adivinhador que lia o futuro nas entranhas das galinhas… Mas para que lhe servirá isso? – questionei-o. E, com desfaçatez, ele disse-me: - Para absolutamente nada. O que acontece é que há ainda quem se deixe iludir por esses sinais… - E que diz aos seus leitores e clientes? – Sempre a maior das verdades: Olhe com atenção, nunca se distraia com minudências.
Mas, hoje, com o controlo das barragens e a força dos burocratas, o Borda d’Água perdeu uma parte dos seus poderes. Além da preia-mar e da baixa-mar naturais, há o efeito da abertura e fecho das comportas, e esses gestos não dependem do destino, mas dos inexoráveis cálculos e gestos de mangas de alpaca. O Borda d’Água deixou, assim, de ser um “deus ex machina”. O caos e o cosmos, o cronos e o kairós, o tempo do relógio e o momento oportuno, obrigam a mais trabalho. A ecologia tornou-se complexa, o aquecimento global é cada vez mais misterioso, o buraco do ozono alarga-se assustadoramente, as emissões de dióxido de carbono evoluem perigosamente – e o velho Borda d’Água não tem outro remédio senão palmilhar léguas e léguas à procura dos segredos da incerta natureza…
Agostinho de Morais
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