Agosto
Cumprindo o prometido, esta manhã
O Sol atravessou o aposento,
Numa faixa de raios de açafrão,
Desde a cortina à orla do divã.
De almagre aldeia e bosque recobriu,
E em casa o próprio leito em que me deito,
Até o humedecido travesseiro,
E as paredes com estantes atingiu.
Recordo agora que chorei, sonhando
(Tão húmido ficou o travesseiro!)
Que vós todos seguíeis meu enterro,
Ao longo da floresta caminhando...
E devagar, nessa cadência triste,
Um recordou-se que era o dia de hoje,
No antigo calendário, seis de Agosto,
Da Transfiguração de Jesus Cristo.
Há uma luz sem chama neste dia
A soltar-se do cume do Tabor
E um presságio funesto do Outono
Em todos os olhares se denuncia.
E vós seguíeis, e havia em torno
Amieiros transidos no caminho
Do cemitério. Rubra gengibre,
Luz a floresta como um pão no forno.
Dos seus cimos ficava muito perto
O grande céu, gravíssimo, imponente.
Longe os galos cantavam longamente
Como quem comunica num deserto.
Entre árvores e túmulos erguida,
Estava a Morte, banal agrimensora,
Com os olhos na pedra do meu rosto,
Para talhar-me a cova por medida.
E cada um nitidamente ouvia
A seu lado um rumor de voz tranquila,
A minha voz profética e antiga
Que à sombra das ruínas retinia:
"Ó Transfiguração do azul de outrora,
Adeus, dourado e novo Salvador,
Destila tu um derradeiro amor
No amargor da derradeira hora!
Adeus, dias de luto e de aflição.
Do teu combate sou eu mesmo o campo,
Mulher que em desafio a luva lanças
Sobre os abismos da degradação.
Adeus, ó voo de asa desdobrada,
Ó livre voo sem limitação,
Adeus, dom dos milagres, criação,
Adeus, Terra no verbo revelada!"
Boris Pasternak, in O Doutor Jivago, tradução de David Mourão-Ferreira
domingo, 25 de agosto de 2013
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1 comentário:
Em cada dia que passa
tenho uma vaga impressão
de ser o tempo da graça
da minha transmutação
em criatura sem jaça
ou sombra de imperfeição!
JCN
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