Do cimo da torre sineira do Convento do Carmo
O relógio do Convento do Carmo
Desde já saliento que não trato aqui da torre sineira do Convento do Carmo, ela também digna de um trabalho de investigação autónomo. Falo apenas do mecanismo que a ela está adstrito, fazendo mover ponteiros num mostrador que é visível a partir do Rossio – poucos darão por ele, se não estiverem avisados – e fazendo bater martelos sobre os dois sinos que estão colocados na torre. O som, esse sim, identifica mais este relógio – as suas horas sempre foram mais para ouvir do que para ver.
Desde já saliento que não trato aqui da torre sineira do Convento do Carmo, ela também digna de um trabalho de investigação autónomo. Falo apenas do mecanismo que a ela está adstrito, fazendo mover ponteiros num mostrador que é visível a partir do Rossio – poucos darão por ele, se não estiverem avisados – e fazendo bater martelos sobre os dois sinos que estão colocados na torre. O som, esse sim, identifica mais este relógio – as suas horas sempre foram mais para ouvir do que para ver.
A primeira notícia que temos registada do relógio do Convento do Carmo data de 1872, mas ela revela-nos que se estava perante um relógio muito mais antigo.
Termo que assina Veríssimo Alves Pereira, e pelo qual se obriga a concertar ou aproveitar algumas das peças do maquinismo do antigo relógio da Torre do Carmo. (15/07/1872)
Aos quinze dias do mês de Julho de mil oitocentos setenta e dois, nesta cidade de Lisboa e segunda repartição da secretaria geral da excelentíssima Câmara municipal compareceram o senhor Veríssimo Alves Pereira, relojoeiro, morador na rua da Boa Vista, número cento sessenta e quatro, freguesia de São Paulo, que conheço pelo próprio de que dou minha fé, e por ele foi dito na presença de testemunhas adiante nomeadas no fim assinadas, que recebe da excelentíssima Câmara desta cidade o maquinismo do antigo relógio do Carmo e que se obriga – concertando ou aproveitando algumas das peças do referido maquinismo a pôr na torre do Carmo, no prazo de sessenta dias contados da data deste termo, um relógio a trabalhar nas seguintes condições: 1ª Depois de bem regulado não poderá fazer de diferença mais de dois minutos em cada trinta dias; 2ª Baterá horas e meias horas no mesmo sino com martelo de peso superior a dez quilogramas; 3ª terá corda, pelo menos, para quatro dias; 4ª O cilindro em que se enrolar a corda da sonneria será de ferro e o do movimento de latão; 5ª Todas as peças do relógio serão destacáveis e independentes, todos os eixos serão de aço e a haste do Pêndulo de madeira; 6ª O suporte ou caixa que existe na torre será concertado por conta da Câmara; 7ª O fabricante garante por seis anos o andamento do relógio e obriga-se a todos os concertos de que ele precisar durante este período. 8ª Obriga-se mais a fazer esta obra pela quantia de duzentos mil reis, recebendo 50 mil no acto da assinatura deste termo, cinquenta mil reis um mês depois e os cem restantes três meses depois do relógio andar bem. O exacto cumprimento do presente termo deu por seu fiador o senhor Francisco José Rodrigues, proprietário, morador na rua do Ferragial de Baixo número vinte e dois, freguesia dos Mártires […]
Nuno de Sá Pamplona
PEREIRA, Veríssimo Alves
Relojoeiro construtor, activo na segunda metade do séc. XIX. Construtor e inventor de meridianas, com maquinismos especiais que, ao meio-dia solar, faziam tocar sinos e davam tiros de canhão, para que as pessoas pudessem acertar os relógios. A mais célebre das meridianas esteve montada na Torre dos Clérigos, no Porto. Fez uma meridiana mais sofisticada para Lisboa, que esteve primeiro no Castelo de São Jorge, depois, no Observatório Astronómico à Escola Politécnica e, finalmente, no jardim de S. Pedro de Alcântara. O Almanaque Bertrand, de 1900, dedica à meridiana de Lisboa um artigo, onde se conta que os lisboetas se aglomeravam à sua volta, por volta do meio-dia, para acertarem os seus relógios pela “hora verdadeira, a hora do Sol”. Para além das meridianas, Alves Pereira patenteou outras invenções de carácter técnico e construiu relógios de hora universal, dois dos quais se encontram no Museu da Fundação Portuguesa das Comunicações, em Lisboa, onde se lê: “Alves Pereira / inventou e construiu / Lisboa”. Foi professor de relojoaria na Casa Pia de Lisboa, juntamente com o amigo Augusto Justiniano de Araújo , de quem foi sócio na Fábrica de Relógios de Torre, fundada em 1870, na Rua da Boavista, em Lisboa. Júlio Castilho, na sua “Lisboa Antiga” diz que esta curiosa personagem “andava sempre com algum projecto, algum invento útil, alguma facilitação industrial, alguma aplicação novíssima da mecânica” na cabeça. E, como todos os inventores, “explicava em termos prolixos, a quem quer que encontrasse, as vantagens de tal ou tal aparelho, os pormenores de tal ou tal engrenagem, sem querer saber se o seu interlocutor se achava no ponto de vista dele, e comungava das mesmas ideias”.
A Relíquia
Eça de Queirós estava familiarizado com o Relógio do Convento do Carmo e com o seu bater de horas, que se ouvia claramente no Rossio. Em 1887, surge a primeira edição de A Relíquia.
- Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? - perguntou-me o Doutor Margaride ao desembocarmos no Rossio. - Não sei se você conhece a torrada do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.
[…] O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, ia abafado no seu paletó, ainda me disse baixinho:
- Com franqueza, que tal a torrada?
- Não há melhor torrada em Lisboa, Doutor Margaride.
Ele apertou-me a mão com afecto, e separámo-nos, quando estava a dar a meia-noite no velho relógio do Carmo.
Noutro passo:
[…] Cheguei ao Rossio quando batia uma hora no relógio do Carmo. Ainda fumei um cigarro, indeciso, por debaixo das árvores. Depois voltei os passos para a casa da Adélia, vagaroso, e com medo.
Não se sabe que destino levou o mecanismo antigo reparado por Veríssimo Alves Pereira.
O exemplar que hoje aqui se encontra é francês, da região de Morez, no Jura, de grande tradição relojoeira. Deve datar da transição do século XIX para o século XX e é possivelmente um Prost Fréres.
A chamada relojoaria grossa, monumental, de torre ou pública teve forte tradição na região francesa do Jura, nomeadamente em Morèz, uma pequena cidade junto ao rio Bienne, onde a Prost Frères e depois a Francis Paget estavam instaladas. Portugal foi um bom cliente da relojoaria grossa e média de Moréz du Jura, havendo dezenas, se não centenas de exemplares desse tipo espalhadas pelo país.
A casa Prost Fréres, fundada em 1559, em Morez, no Jura francês, radica as suas origens em trabalhos de ferreiro, tanoeiro e peças para relojoaria grossa. Este último ofício começa a ganhar mais importância por volta de 1800. Situada significativamente na Rue des Forges, 2 a 10, ela alinha os seus vários edifícios de oficinas ao longo das margens do Bienne, onde vai buscar a força motriz. Em 1890, o negócio é florescente e os estabelecimentos Prost fabricam cerca de 100 mecanismos de relojoaria grossa por ano. Em 1909, a secção de relojoaria é vendida à sociedade Francis Paget et Cie, a última fábrica de relógios monumentais de Morez, que encerra em 1967. O Espólio é vendido à empresa relojoeira Bodet, que ainda hoje existe. Os relógios F. Paget parecem não ter evoluído de forma significativa ao longo das décadas e os modelos são os mesmos que os realizados pelos Fréres Prost no final do século XIX e são típicos do que se fazia nessa época nas oficinas da região de Morez. Os modelos mais recentes são tão parecidos com os mais antigos que é quase sempre muito difícil distingui-los.
No caso do exemplar do Convento do Carmo, ele ostenta as iniciais “P. F.” Nas paredes de sustentação do mecanismo. Ora, P. F significa algumas vezes “Prost Fréres” e outras “Paget Francis”, com a sucessão entre os dois donos a fazer-se mantendo-se as iniciais. Mas pensamos que este exemplar é um Prost Fréres.
Não só nos tempos de Eça, mas também no século XX, o relógio do Carmo foi peça importante no quotidiano colectivo da Baixa. No fim do ano de 1946, por exemplo, o Rádio Club Português pedia autorização à Guarda Nacional Republicana para transmitir, à meia-noite, a partir da Torre do Relógio. Isso demonstra a importância do bater das horas deste relógio para o colectivo da cidade, como que o equiparando ao estatuto de um Big Ben londrino ou ao que está em Times Square, em Nova Iorque, e que desde há décadas assinalam a passagem do ano para milhões de pessoas.
A dada altura, pelos anos 60 do séc. XX, sabe-se que a sua manutenção era paga por um conjunto de lojistas da Rua do Carmo vizinha e os toques que dava regulavam todo o comércio da zona. O seu bater de horas regulava o abrir e fechar de taipais, a ida para almoço de caixeiros e patrões.
Sabe-se que o relógio do Convento do Carmo sofreu uma reparação em Fevereiro de 1966, assinada “Ouriv. E. Pinto Lda 2-966 Vic”, de que não conseguimos obter quaisquer elementos.
Há quatro anos, o relógio foi de novo reparado. Mas hoje, dia em que o visitámos, estava de novo parado.
(Intervenção a 16.07.2011, na Sala de Operações do Comando Geral da GNR, adstrita à sala do relógio, no Convento do Carmo, no âmbito do Passeio pelo Tempo Público de Lisboa)
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