Um tempo público parado, como o país...
Gostava de vos falar do Tempo emitido e percebido colectivamente.
Os primeiros marcadores colectivos de tempo no território que hoje constitui Portugal, e que chegaram até aos nossos dias, são alinhamentos megalíticos, cromeleques, orientados de forma a, em cada ciclo de um ano, assinalarem os solstícios.
Portugal é particularmente rico nesse tipo de construções, num arco atlântico que nos leva à Galiza, a França, a Inglaterra (Stonehenge, claro), à Alemanha ou Dinamarca. Terá sido no Neolítico final e começos da Idade do Cobre (3000-2500 a.C.) que surge a magnífica, exuberante, misteriosa cultura megalítica.
Desde logo, estes emissores de tempo colectivo usam espaços sagrados, utilizáveis em ocasiões especiais, pensa-se que terão tido os seus intérpretes exclusivos (sacerdotes), julga-se que terá havido ritualização de datas, ocasiões.
Este é um bom lançamento para a questão da emissão colectiva de Tempo – tempo é poder, e quem detém o poder, quer emitir e ser dono do tempo.
A relação entre estas comunidades primitivas e o tempo usa como interface um poder religioso, que usando os seus conhecimentos astrológicos/astronómicos, constrói alinhamentos de pedras, que projectam sombras especiais em especiais alturas do ano.
A relação entre tempo em religião parece ter sido a primeira entre o primeiro e os vários poderes ou centralidades de poder.
Quando o território português sofreu a primeira grande colonização civilizacional – língua, costumes, direito, vias de comunicação, moeda, conceito de cidadania – falamos, é claro, do Império Romano, também passou a ter um tempo unificado. Desde logo, pelo calendário romano (juliano), depois pela introdução dos relógios de sol (a vida colectiva em sítios como a Civitas Igaeditanorum, Egitânia – Idanha a Velha, Vipasca – minas de cobre, de Aljustrel; o teatro romano de Lisboa era marcada por relógios de sol que chegaram até hoje ou sabemos deles através de inscrições e regulamentos). Há um tempo laico, cívico, económico.
Com a implosão do Império Romano e da sua ordem, também o Tempo se torna cada vez mais local – poucos elementos há que nos permitam conhecer o tempo de visigodos ou outros reinos bárbaros.
O tempo muçulmano, onde ele chegou, como a Península Ibérica, é sobretudo religioso, mas errático, dada a natureza do Islão – as rezas diárias fazem-se sem ser a horas certas, apenas mediante o chamamento do muezzin, e ordenadas por situações vagas – nascer e pôr-do-sol. Há, na Andaluzia, registo de horários para regas nos campos, ordenadas pela altura do Sol no horizonte.
Com a Reconquista, são introduzidas, de norte para sul, as ordens religiosas, algumas delas mesmo guerreiras. Mas parece ser São Bento e a sua ordem, com a divisa Orare et Laborare, que volta a estruturar o tempo da Idade Média europeia. Os monges necessitam de saber a que horas andam (horas canónicas, que extravasam pelo som dos sinos para as comunidades laicas adjacentes). Julga-se que os primeirosm relógios mecânicos terão nascido nessas comunidades de monges, mecanismos usados para bater sinos, dividindo segmentos de tempo, substituindo monges que liam salmos em cadência. Os primeiros relógios não têm sequer mostrador – batem as horas, não as mostram.
O primeiro relógio mecânico de que há notícia em território português é o da Sé de Lisboa, O primeiro relógio mecânico de que se tem conhecimento em território português é o colocado em 1377 na Sé de Lisboa, pago em partes iguais pelo rei D. Fernando, pelo cabido e pelos homens bons da cidade. Teria sido o seu autor um tal “mestre João, francês”. Não tinha mostrador, as horas eram para se bater (no sino) e não para se mostrar. Até pelo menos 1580, não teve mostrador. O senado de Lisboa pede a Filipe II, quando este visita a cidade, um mostrador para o relógio da Sé.
O poder religioso emite tempo, mas o poder político e o poder económico associam-se ao esforço de investimento.
Hora de verão e hora de inverno – o sino de colhença
Segundo informações coevas, em Lisboa, “o sino de recolher tange-se desde Outubro até ao fim de Março, desde as 8 horas da noite até às 9 da manhã; e de 1 de Abril até ao fim de Setembro, desde as 9 até às 10”. Desde muito cedo as sociedades se regulavam pelas horas de Inverno e de Verão... regime que em Portugal entra em vigor no Verão de 1916 – devido à I Guerra Mundial e à falta de carvão.
O segundo marcador de tempo – político –
O relógio do Paço, ao tempo de D. Manuel, quando o rei deixa de viver na Alcáçova e baixa ao rio, a partir de 1498 e no contexto da Expansão.
O Paço, nessa altura, era na Alcáçova do Castelo de São Jorge. A corte era itinerante e não havia ainda um conceito de capital do reino. Mas já nessa altura a cidade deveria ter outros marcadores de tempo colectivo, como o Convento de São Vicente de Fora.
Fora, das muralhas.
E fora de portas ficavam também a Judiaria ou a Mouraria. Um sino, de colher, ou da colhença, marcava todas as noites a hora de recolher – fechavam-se as portas. De manhã, o mesmo sino dava o sinal da abertura das portas. Ele era comandado pelo relógio da Sé. O tempo religioso comandava o tempo social. O casamento de D. João I com Filipa, da casa de Lencastre, dá a Portugal acesso a centros de saber científico e de produção de relógios, pelo que nessa altura há importação de exemplares ingleses para várias cidades do país.
Só com D. Manuel I o Paço é transferido do Castelo para junto do rio – era a época da Expansão. E um relógio, o do Paço, tem a partir de então uma importância grande para a cidade. O poder político já rivaliza com o poder religioso na marcação do tempo.
Frei João da Comenda, franciscano, primeiro relojoeiro nacional de que há notícia – 1478. Um dos seus relógios, restaurado, está em Orgens, Viseu.
Conta-se que, batendo o relógio do Paço três horas, o rei, D. João III, terá dito que ele estava sempre a mentir. Resposta de um dos cortesão: "Se Vossa Majestade quer que ele fale verdade, afaste-o da Corte"...
Em 1582, Portugal é dos primeiros países a adoptarem a reforma do calendário, passando a reger-se pelo calendário gregoriano, em vez do juliano. Isso acontece porque as coroas ibéricas estavam juntas e fora Filipe II quem pressionara mais o Papa para que a reforma se fizesse.
Em 1654, D. Francisco Manuel de Melo publica Os Relógios Falantes, um texto de crítica social, onde utiliza dois relógios de torre, um do campo, (Belas) e um da cidade de Lisboa (Chagas). É um documento precioso para se saber do estado da relojoaria e dos tempos sociais. O relógio das Chagas, por exemplo, diz a dado passo: todos que nos governam trazem seus relógios consigo. O tempo tinha-se portabilizado, com a invenção da corda helicoidal.
No texto referem-se o Relógio da Universidade de Coimbra, o Relógio da Sé e o Relógio do Paço - Mas sabemos que, por essa altura, também o poder judicial tinha o seu próprio marcador de tempo: o relógio da casa da Suplicação (supremo) é referido em várias fontes, e ficava no Limoeiro. Um marcador de tempo no Tribunal da Apelação, a Casa da Suplicação, que estava na Ribeira e foi transferida para o Limoeiro em 1584 – tempo e justiça
No texto de D. Francisco Manuel de Melo fica a saber-se que o relógio das Chagas foi a dada altura para o Paço e o Palatino (romano) para as Chagas, depois trocaram. Importava-se pois de Itália.
Anexim coevo: Em mulher de Alfama, homem do mar e relógio das Chagas não há que fiar. O que atestaria da pouca qualidade do referido marcador de tempo.
Em 1640, é pelo relógio do Paço que os revoltosos marcam o tempo da sua operação militar. Por essa altura, já os relógios davam horas civis, e começavam a ter mostrador, mas apenas com um ponteiro, o das horas, pois a exactidão ainda era pouca e os minutos não faziam muito sentido.
Com D. João V atinge-se o auge da relojoaria férrea nacional – o paradigma são os dois relógios flamengos, e respectivos carrilhões, que o monarca comprou para Mafra. D. João V mandou equipar igrejas, conventos, mosteiros, municípios, com relógios de torre e de sol. Os relógios de sol serviam para acertar diariamente os relógios mecânicos, ao meio-dia solar verdadeiro.
A Torre do Relógio, no Paço, adstrita à Patriarcal, foi demolida e encomendada uma outra a um arquitecto italiano, Canevari. Teve fama essa torre e o seu relógio. Mas pouca duração. O terramoto de 1755 foi o primeiro grande cataclismo que se abateu sobre a relojoaria grossa nacional.
A Torre do Relógio, no Paço, adstrita à Patriarcal, foi demolida e encomendada uma outra a um arquitecto italiano, Canevari. Teve fama essa torre e o seu relógio. Mas pouca duração. O terramoto de 1755 foi o primeiro grande cataclismo que se abateu sobre a relojoaria grossa nacional.
A torre do galo, na Ajuda
O Paço não volta ao rio – fica-se pela Real Barraca da Ajuda, com a Patriarcal e a sua torre do relógio. Foi marcador importante de tempo para as gentes dali – está a cair
O segundo cataclismo na relojoaria grossa nacional ocorreu com as Invasões Francesas – 1807/1810 – os sinos eram derretidos para fazer balas de canhão, e algumas máquinas sofreram o mesmo destino.
A terceira hecatombe que se abate sobre a relojoaria grossa é a extinção das ordens religiosas, em 1834. A maioria do património relojoeiro mais antigo de torre encontrava-se em conventos e mosteiros, que ficaram anos ao abandono, foram depois vendidos a particulares. Mas nos inventários e arrolamentos de bens dessa altura são mencionados muitos relógios.
O arco da Rua Augusta
O relógio veio do colégio de Jesus, hoje Academia das Ciências, e não tinha mostrador, foi adaptado por Augusto Justiniano de Araújo, fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia.
O relógio do Museu Militar, construído no século XVIII por F. Baerlein, o único relógio público existente nos bairros de Santa Apolónia, Santa Clara e Alfama.
O tempo ligado ao saber científico
Desde 1857 que funcionava a partir do Observatório Astronómico do Castelo de São Jorge um sistema de meridiana, da autoria de Veríssimo Alves Pereira. Ao meio-dia solar, o sistema fazia troar uma pequena peça de artilharia. A meridiana mudou-se depois para a Escola Politécnica. Funcionou até cerca de 1915. Este foi o quinto marcador colectivo do tempo lisboeta, mas das meridianas nada resta.
Os caminhos de ferro, os observatórios, a electricidade, os telégrafos, os fusos horários, o meridiano de Greenwich, a explosão de marcadores públicos de tempo.
Desde 1857 que funcionava a partir do Observatório Astronómico do Castelo de São Jorge um sistema de meridiana, da autoria de Veríssimo Alves Pereira. Ao meio-dia solar, o sistema fazia troar uma pequena peça de artilharia. A meridiana mudou-se depois para a Escola Politécnica. Funcionou até cerca de 1915. Este foi o quinto marcador colectivo do tempo lisboeta, mas das meridianas nada resta.
Os caminhos de ferro, os observatórios, a electricidade, os telégrafos, os fusos horários, o meridiano de Greenwich, a explosão de marcadores públicos de tempo.
Com a electricidade, surge o relógio emissor, relógio-mãe e os relógios escravos, as redes de tempo. o Tempo passa a poder ser transmitido.
Desde 1858 que funcionava junto ao Observatório Astronómico da Marinha o chamado Balão do Arsenal, um dispositivo que assinalava diariamente as 13h00 com a queda de um balão de um mastro e um sinal sonoro. Este foi o sexto marcador colectivo do tempo na capital, mas também dele nada ficou.
O relógio do Noviciado da Cotovia / Colégio dos Nobres / Escola Politécnica / Faculdade de Ciências foi importante para a zona desta colina de Lisboa.
Ao fundar-se em 1837 a Escola Politécnica, foi-lhe anexado o Real Observatório Astronómico de Marinha.
Ali funcionou, durante algum tempo, o serviço da “hora oficial”, com um canhão a disparar à uma da tarde. Mas a acuidade do sistema era pouca e os lisboetas não se fiavam lá muito nele. “Os que ainda se lembram deste sinal horário, sabem que ele enchia toda a cidade e fazia estar alerta os cidadãos que se jactavam da chamada ‘pontualidade inglesa’. Servia de fulcro às mais alegres anedotas correntes de boca em boca e preenchia os serões familiares, dando os mais divertidos temas aos folhetinistas jocosos da época”, refere Mário Costa nas suas Duas Curiosidades....
O canhão e a meridiana passariam depois para o Jardim de São Pedro de Alcântara, onde ficaram ainda algum tempo, sendo depois retirados.
As Farpas – Eça de Queiroz – Janeiro de 1878
* Por occasião da visita de el-rei á Escola Polytechnica funccionou o telephonio entre uma das salas da Escola e o Observatorio da Tapada.
Approximando-se do novo apparelho transmissor dos sons, dizem os jornaes que sua magestade ouvira--um solo de cornetim! Houve primeiro duvida sobre se o fio ligava a Escola Polytechnica com o Observatorio Astronomico ou se a ligava com a phylarmonica _União e Capricho_. O solo era effcctivamente executado pelo Observatorio.
Eça refere-se a uma das primeiras linhas telefónicas instaladas no país. Mas a linha não servia para telefonar, antes para transmitir Tempo - entre o Observatório da Ajuda, emissor, e o Observatório da Politécnica, receptor, e deste, mais tarde, para o relógio colocado no Cais do Sodré.
A 4 de Dezembro de 1883, o relógio do Arco da Rua Augusta é finalmente colocado. Veio do Convento de Jesus (hoje Academia de Ciências), não tinha mostrador, e foi adaptado por Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da escola de relojoaria da Casa Pia. Com mostrador para terra e não virado para o mar, como esteve previsto. É o tempo comercial por excelência. Mas, sintomaticamente, não está ligado à rede da hora oficial.
A 4 de Dezembro de 1883, o relógio do Arco da Rua Augusta é finalmente colocado. Veio do Convento de Jesus (hoje Academia de Ciências), não tinha mostrador, e foi adaptado por Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da escola de relojoaria da Casa Pia. Com mostrador para terra e não virado para o mar, como esteve previsto. É o tempo comercial por excelência. Mas, sintomaticamente, não está ligado à rede da hora oficial.
A Hora Legal
O Anuário Comercial de Portugal (ACP) de 1906 recordava: “A uma da tarde, hora oficial, é anunciada por um tiro de peça dado na Escola Politécnica. A hora é telegraficamente transmitida do observatório da Tapada”.
Desde 1915, ano em que o Balão do Arsenal desapareceu, que funcionou, ao Cais do Sodré, o relógio da Hora Legal, com o tempo a ser emitido por circuito eléctrico a partir do Observatório Astronómico de Lisboa. Depois de vicissitudes várias, o sétimo e último grande marcador do tempo colectivo da capital deixou de poder ostentar o título de Hora Legal. (Mas, actualmente, embora não ostente já a frase "Hora Legal", é o único marcador público de tempo certo no país, pois tem um computador em diálogo com outro no Observatório Astronómico de Lisboa - única autoridade portuguesa emissora de tempo legal).
Até aqui, o tempo era sempre local. O tempo de Lisboa não era o Tempo de Mafra e muito menos o de Coimbra ou do Porto. Só com o advento dos caminhos-de-ferro e do telégrafo se passou a sentir a necessidade de um Tempo nacional, primeiro, continental, a seguir, universal, depois.
Em princípios do séc. XIX e a par de outras nações europeias, Portugal adoptou o Tempo Solar Médio que simplificou a definição da Hora Legal. Os Reais Observatórios Astronómicos da Marinha (Lisboa) e de Coimbra definiam a Hora Legal para a sua região de longitude.
Em 1891 estabelecem-se as instruções regulamentares relativas às horas e duração de serviço nas estações dependentes da Direcção Geral dos Correios, Telégrafos e Faróis: "a hora, em todas as estações, seria a média oficial contada pelo meridiano do Real Observatório Astronómico de Lisboa; nas principais cidades do reino e em quaisquer pontos do país, quando a conveniência do serviço público aconselhasse, seriam estabelecidos postos cronométricos destinados a fazer conhecer a hora média oficial".
Entrara em cena o tempo emitido por instituições científicas. Auxiliado por meridianas – relógios de sol, acoplados a pequenas peças de artilharia, que faziam soar diariamente (em dias de sol), o meio-dia. Veríssimo Alves Pereira, que começou por colocar uma na Torre dos Clérigos, no Porto, convenceu a edilidade lisboeta a colocar uma no castelo de São Jorge (1857). Esse tipo de dispositivo passou depois para a Escola Politécnica (que estava ligada por linha telefónica ao observatório da Ajuda, para saber a hora exacta, já não por relógio de sol); e finalmente para o jardim de São Pedro de Alcântara. A meridiana terá deixado de soar por volta de 1912. Veríssimo Alves Pereira também intervém no relógio do Convento do Carmo, outro marcador importante do tempo alfacinha, regulador dos ritmos comerciais da Baixa.
As instituições científicas eram ainda auxiliadas por balões da hora – instrumentos que de forma visual e também sonora assinalavam a uma hora, para os navios ancorados no Tejo, mas também para os lisboetas. No arsenal de marinha, os dois primeiros, na Ajuda e na Escola Politécnica, depois.
Em 1878, o Real Observatório Astronómico de Lisboa (OAL, criado em 1861) tem como objectivo: "Fazer a transmissão telegraphica da hora official ás estações semaphoricas e outros pontos do paiz". Está-se perante o primeiro caso de tempo coordenado, emitido por um relógio-mãe a relógios escravos.
Só a partir de 1 de Janeiro de 1912 a hora legal em todo o território da República Portuguesa fica subordinado ao meridiano de Greenwich, aderindo finalmente o país à Convenção adoptada em Washington em 1884 e que estabeleceu o sistema dos fusos horários.
Assim, nesse dia, os relógios foram adiantados em Portugal continental 36 minutos, 44 segundos e 68 centésimos, além de que desaparecia a diferença de cinco minutos entre os relógios internos e exteriores das estações ferroviárias. Nos demais territórios da República Portuguesa a alteração foi feita em harmonia com o fuso horário onde passaram a ficar inseridos.
O ACP de 1915 informava, entretanto: “Já funcionam nos pilones da Alfândega e da Junqueira os sinais luminosos que indicam a hora exacta na cidade e porto de Lisboa. Ao mesmo tempo funcionam os relógios, com idêntico fim, numa torre no Cais do Sodré e em alguns estabelecimentos oficiais e particulares”.
O sistema luminoso era accionado pelo relógio do Cais do Sodré que, por sua vez, trabalhava sincronizado electricamente com uma pêndula do Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda). Dizia o ACP que os erros dessa pêndula nunca excediam alguns centésimos de segundo e que uma tabela com esses erros era publicada quinzenalmente no Diário da República.
No ano de 1916, em plena Guerra Mundial, são publicados diversos decretos que regulamentam o aparecimento da hora de Verão. Nas décadas seguintes alteram-se regularmente as datas de início e fim do período da Hora de Verão, e do valor do adiantamento da hora.
Estações dos CTT, fluviais, caminhos-de-ferro - todas elas ostentando marcadores de tempo públicos, geralmente de grande qualidade.
Uma passagem do ano em Lisboa
Que espera a multidão
com este frio,
plantada ali defronte à estação
do Rossio?
Nada que justifique uma pneumonia...
Nada, afinal, para que assim se afoite:
- Espera apenas o fim de mais um dia,
quando o relógio marque a meia-noite.
Só há que o fim do dia por que espera
é, simultaneamente, o fim de um desengano
e o princípio de mais uma quimera
que, para muitos, vai durar um ano...
E a multidão - que vive o seu presente
em sonhos sem tom nem som -
está de nariz no ar, ansiosamente
à espera do Ano-Bom!
Espera, como quem espera
depois da fome, o pão;
depois do Inverno, a Primavera;
no tribunal - a salvação!
E quando, enfim, se cruzam os ponteiros
e a meia-noite soa,
o delírio electrisa os mais ordeiros
e sai fora de si o povo de Lisboa!...
O chinfrim ensurdece
e dir-se-ia que tudo se conhece,
tantos são
os abraços que se dão!
Soltam-se vivas, gargalhadas, gritos!
Bate-se em latas, tachos, caçarolas!
Tocam-se gaitas, sopram-se apitos
e dizem-se graçolas!...
Mas passada a vertigem de balburdia
da eterna farça da passagem do ano
- sobre a cidade em esturdia
cai o pano!
A vida, como sempre, continua
nem melhor nem pior: - tal qual o que era.
E a multidão dispersa, rua em rua,
mas... não desiste de ficar à espera!
Silva Tavares (1893-1964), in Calendário de Lisboa
Para terminar, citemos Pessoa:
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. […]
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. […]
Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:
“Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!” Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?
É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.
E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado”. […]
Arriscaria que Bernardo Soares / Fernando Pessoa, ao saírem do Martinho da Arcada, e olhando inúmeras vezes para o relógio do Arco, se terão inspirado nele para este pensamento desassossegado.
(Intervenção a 16.07.2011, na Sala do Relógio do Arco da Rua Augusta, no Passeio pelo Tempo Público de Lisboa)
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