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terça-feira, 2 de junho de 2015

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"


Leituras acidentais de um ocidental. Décima quarta e última crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Junho de 2005.

Fernando Correia de Oliveira

Bento XVI e as batalhas da Europa

A 12 de Março de 2005, escassas semanas antes de ter sido escolhido como Papa, o cardeal Joseph Ratzinger (Marktl am Inn, Alemanha, 1927) dizia numa carta particular dirigida ao seu amigo Olegario González de Cardenal, professor de Teologia da Universidade Pontifícia de Salamanca: “Renunciei a dar conferências. Os anos que Deus ainda me der, quero consagrá-los a um livro de meditações sobre Jesus Cristo” (1).

Esse derradeiro projecto editorial deverá agora ter sido definitivamente abandonado.

“Joseph Ratzinger foi toda a sua vida um professor universitário para quem a busca e o serviço da verdade do homem e da verdade de Deus foi a suprema paixão da sua vida”, diz Olegario González de Cardenal.

Pode um intelectual tímido, de aparência frágil, sem carisma, carregando aos ombros um passado recente de perseguição às vozes críticas e mais inovadoras no seio da teologia católica ganhar o afecto do seu rebanho? Pode um intelectual, acostumado mais ao combate doutrinário que ao contacto com as multidões, vencer o desafio de um mundo mediatizado, globalizado? Será que, com esta escolha, o conclave de cardeais – mais a inspiração do Espírito Santo, segundo a Fé católica – quis arrepiar caminho e contrariar as tendência das “praças cheias, igrejas vazias” que o pontificado de João Paulo II, mesmo contra a sua vontade, consagrou?

João Lobo Antunes, médico católico, afirmava recentemente (2): “Parece-me evidente que este mundo exige um catolicismo como uma nova força revitalizadora, aberto à comunicação com todos, atento à ciência e à técnica, e consciente de que continua a ser uma duradoura e consistente força do progresso moral e social dos povos, e, por isso, a si mesmo chamou sal da terra e luz do mundo”.

Mas, que esperar de um Papa que prega contra a “ditadura do relativismo” ou que pensa que não há salvação possível fora da Igreja de Roma?

“Os ateus deveriam estar satisfeitos com a eleição do Papa Bento XVI”, afirma o historiador britânico Timothy Garton Ash (3). “Porque há grandes probabilidades de que este teólogo bávaro, velho, estudioso, conservador e sem carisma, acelere precisamente a descristianização da Europa que pretende suster”. E este professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford vai mais longe: “Ao terminar o seu papado, é possível que a Europa seja tão pouco cristã como na época em que São Bento, um dos patronos do continente, fundou a inovadora ordem monástica dos beneditinos, há 15 séculos. A Europa cristã: de Bento a Bento. RIP”.

Para George Weigel, “Bento XVI: o nome é o programa, e o programa é o homem” (4). Este professor do Centro de Ética e Política Pública, em Washington, biógrafo de João Paulo II e autor do essencial The Cube ans the Cathedral (Basic Books, 2004) recorda que, em 529, quando estava a ser construída uma pequena cidade monástica para Bento e para os seus monges junto ao Monte Cassino, fechava em Atenas a Academia de Platão.

“O Império Romano estava em declínio rápido, consumido por guerras, males económicos e desordem social. A realização civilizacional que a Academia de Platão representava podia ter-se perdido; a cultura clássica podia ter tido o destino dos maias. O facto de isso não ter acontecido teve muito a ver com Bento. Os seus monges não se limitaram a preservar elementos cruciais da civilização de Atenas e Roma durante a Idade das Trevas; transformaram a civilização com a introdução de um entendimento bíblico do humano – pessoa, comunidade, origens e destino – na cultura clássica que preservaram para futuras gerações nos seus escritos e bibliotecas”.

E George Weigel resume: “O resultado dessa fusão de Jerusalém, Atenas e Roma foi o que conhecemos como ‘Europa’, ou, em sentido mais lato, “o Ocidente”. Foi um acontecimento colossal, na realidade com uma dimensão histórica universal”. Para este académico norte-americano, “Acontece com o homem o que acontece com o programa: ele [Bento XVI] é um Bento no mais profundo da sua vida interior e na sua realização intelectual”, já que o novo Papa “tem um conhecimento enciclopédico de dois milénios de teologia, e na realidade de toda a história cultural do Ocidente”.

Aladair MacIntyre, na sua obras After Virtue, falando sobre as confusões morais do Ocidente, e num tempo em que “a falta de vontade e o relativismo conduziram a um clima cultural frígido e sem alegria”, o mundo não está à espera de Godot, “mas de outro – e sem dúvida muito diferente – S. Bento”.

O filósofo alemão Jurgen Habermas, que se define a si mesmo como “ateu metódico”, teve recentemente um interessante e “cordato” debate ideológico com Joseph Ratzinger.

Habermas, um homem de esquerda, admitiu que o cristianismo é o fundamento último da liberdade, dos direitos humanos, da democracia tal como estes conceitos são entendidos no Ocidente. “Não dispomos de opções alternativas. Continuamos a alimentar-nos desta fonte. Tudo o mais é palavreado pós-moderno”, pensa Habermas. Não será, então, de estranhar, que o texto da primeira Constituição Europeia não faça referências às raízes cristãs da Europa?

Citemos o próprio Ratzinger: “A Europa aparece nesta hora do seu brilho e sucesso exterior vazia por dentro, atingida por uma crise de circulação vital. […] O cristianismo, que criou a cultura moderna, tem a grande responsabilidade de voltar a dar a esta cultura – à sua racionalidade e à sua capacidade de agir – novas dimensões que vêm da sua profundidade espiritual”. Ou ainda: “Para sobreviver, a Europa necessita de uma nova – e certamente crítica e humilde – aceitação de si mesma”.

Para a espuma dos dias, sabe-se que, pelas suas posições conservadoras, Bento XVI não dará resposta positiva aos anseios mais ou menos pós-modernos de crentes e laicos sobre problemas como a moral sexual, o uso do preservativo, o celibato dos padres, a ordenação de mulheres…

Mas o Ocidente, especialmente a Europa, enfrentam um problema muito mais grave e de desenlace difícil de prever – a imigração, a elevada taxa de natalidade entre as comunidades imigrantes e as perspectivas de ampliação da União Europeia “fazem com que o Islão seja a confissão mais dinâmica e em aumento na Europa”, reconhece Timothy Garton Ash. “Em Berlim, por exemplo, os muçulmanos constituem já o segundo grupo religioso em importância, depois dos protestantes mas antes dos católicos”, diz. E o mesmo se passa (ou vai rapidamente passar-se) em outras cidades da Alemanha, da França, da Bélgica, da Holanda… de Espanha?

Sabe-se que Bento XVI é clara e fortemente contra a integração da Turquia na Europa. Isso, segundo o Papa, seria “um tremendo erro” que iria “contra a História”. Ratzinger, numa entrevista concedida em Agosto do ano passado ao Le Figaro, falou da Europa como um continente “cultural”, mais que geográfico, e disse que a Turquia “sempre representou outro continente ao longo da História, em contraste permanente com a Europa”.

Com ou sem inspiração do Espírito Santo, a eleição do polaco João Paulo II contribuiu decisivamente para a implosão do Comunismo e para o fim da divisão da Europa, numa demonstração da Sapiência da Igreja. Seria genial comprovar, daqui a, digamos, 50 anos, que a eleição de Bento XVI tinha contribuído decisivamente para o renascimento da Europa e para impedir que o Islão se dela apoderasse. Os laicos – e neles me incluo – ficar-lhe-iam eternamente agradecidos.

Algumas pistas para se saber mais sobre o pensamento de Bento XVI encontram-se disponíveis na Net e foram dadas recentemente pelo El País. Embora a maioria esteja em língua castelhana, não deixam de ser muito úteis:

www.aciprensa.com/benedictoxvi/ - Selecção dos seus principais textos, em castelhano. Inclui a biografia oficial, publicada pela Santa Sé, ou o que pensava João Paulo II do seu sucessor.

www.iveargentina.org/Foro_Exegesis/Articulos_Varios/magisterio_exegesis_ratzinger.htm - Texto de Joseph Ratzinger escrito por ocasião dos cem anos da Pontifícia Comissão Bíblica. Dizem os especialistas que se trata de um texto nuclear para se entender o pensamento do actual Papa.

www.ewtn.com/new_library/Spanish/dominus_iesus.htm - Um dos textos mais polémicos. Dominus Iesus. Declaração sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e a Igreja (Agosto de 2000), escrito em parceria com Tarscicio Bertone, provocou dezenas de protestos públicos de teólogos progressistas de todo o mundo, entre eles Hans Kung, Jon Sobrino e Leonardo Boff.

www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20021124_politica_sp.html

Esta Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e à conduta dos católicos na vida política é um texto da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado em Dezembro de 2002, e em que Ratzinger ataca o relativismo e toma posiçãpo face à laicidade, admitindo-a como “valor adquirido e reconhecido pela Igreja”.

www.interrogantes.net/includes/seccion.php?IdSec=147 – Selecção de artigos e conferências de Ratzinger sobre a relação entre Fé e Sociedade. Entre eles, Cristianismo e Islão e O fundamentalismo islâmico.

http://es.catholic.net/conocetufe/633/1804/articulo.php?id=3401 – Notificação emitida em 2001 e onde o teólogo espanhol Marciano Vidal, autor do Diccionario de ética teológica y Moral de actitudes, era censurado e admoestado por Ratzinger a reelaborar os seus escritos em função da ortodoxia imposta pela Congregação para a Doutrina da Fé.

http://dsapce.unave.es/retrieve/402/01.+Investidura1+1998-2.pdf – Discurso de posse de Joseph Ratzinger como doutor honoris causa pela Universidade de Navarra, em 1998. www.ratzinger.it/ - Documentos da Congregação para a Doutrina da Fé. Em italiano.

1 – “Retrato de um Papa intelectual”, in El País Semanal, 30 de Abril de 2005

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