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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Homenagem ao Comandante Estácio dos Reis


O Comandante António Estácio dos Reis fez hoje 89 anos. Comemorou-os entre amigos, numa homenagem surpresa ocorrida no Museu de Marinha, em Lisboa.

Oficial de Marinha, Estácio dos Reis é um dos principais investigadores da História da Marinharia e dos Instrumentos Náuticos. É a ele que se deve, por exemplo, a atenção da opinião pública e dos poderes instituídos para os astrolábios - antes da sua campanha de recuperação, Portugal não tinha nenhum. Hoje, o Museu de Marinha tem nove, a maior colecção do género no mundo.


Estácio dos Reis, que continua a investigar e a publicar com regularidade, faz parte da Comissão que está a publicar as Obras Completas de Pedro Nunes. A ideia de o homenagear partiu do seio dessa equipa. E alastrou a mais de uma centena de amigos, que prometeram silêncio enquanto, durante uns meses, se preparava a homenagem.



A Marinha editou hoje António Estácio dos Reis - Marinheiro por Vocação e Historiador com Devoção - Estudos de Homenagem, com coordenação de Jorge Semedo de Matos.

Somos amigos de há década e meia do Comandante Estácio dos Reis, fruto das investigações que temos levado a cabo sobre o Tempo. Figura generosa, o Comandante ajudou-nos em muitas pistas dadas, em muitos documentos que foi encontrando e nos foi cedendo ou comunicando. É com prazer e orgulho que nos associamos à homenagem pública, incluídos que estamos nos nomes que figuram na Tabula Gratulatoria da obra, que inclui trabalhos de 15 investigadores.

O Ministro da Educação, Nuno Crato, amigo de Estácio dos Reis, esteve presente na cerimónia de hoje, onde falou a título pessoal. Recordou que foi Estácio dos Reis quem batalhou pela introdução em língua portuguesa do anglicismo "serendipidade" (acaso feliz).

O homenageado foi condecorado no acto com a Medalha Naval de Vasco da Gama, pelos serviços prestados à Marinha e à Cultura.



Reproduzimos aqui um artigo que escrevemos há uns anos, para a revista Homem Magazine, e onde conversámos com Estácio dos Reis. Esta é também uma forma de o homenagear-mos. Bem-haja, Comandante!

Investigador da Ciência Náutica condecorado A sorte de se conhecer o “sr. Serendipidade”

Fernando Correia de Oliveira

Acaba de ser feito Comendador da Ordem Militar de Santiago e Espada, reconhecimento de décadas de investigação sobre a Ciência Náutica. O Comandante Estácio dos Reis, aos 81 anos, continua a “dar novos mundos ao mundo” com o seu trabalho de levantamento das glórias portuguesas, muitas delas esquecidas e desprezadas.

Para quem tem o privilégio de privar com ele, há dois conceitos que, há muitos anos fazem parte do seu mundo, e que não se cansa de referir e explicar – colecções imaginárias e serendipidade.

O primeiro, diz respeito a uma frustração pragmaticamente resolvida – Estácio dos Reis, não tendo dinheiro para adquirir os belos instrumentos científicos que estuda, classifica, procura proteger, contenta-se com o facto de as ir arrumando por fichas, no seu mais ou menos organizado arquivo. E, quando publica um trabalho, vai buscar a essa sua vasta colecção imaginária um sextante, um nónio, um cronómetro de marinha… com o mesmo carinho como se as peças fossem suas e estivessem realmente expostas numa qualquer vitrina de sua casa.

Quanto à serendipidade, é talvez o conceito que tem servido mais de bordão a este investigador incansável. A palavra foi inventada em 1754 pelo intelectual inglês Horace Walpole. Há precisamente 250 anos, escrevia ele a um amigo, impressionado por ter encontrado, por mero acaso, um elemento heráldico que era crucial para uma investigação em curso. Não encontrando no léxico inglês conceito que exprimisse de forma precisa esse tipo de “feliz acaso”, inventou a palavra serendipity. E esclarecia que a tinha ido buscar a um conto persa, Os três Príncipes de Serendipe. Nesse conto, é referida a história dos filhos de Jafer, um rei-filósofo de Serendip ou Serembid, o antigo nome do Ceilão – a Trapobana que Camões refere – e que hoje é o Sri Lanka. Os três príncipes, acompanhando o pai em viagem, vão fazendo, por acidente, descobertas de coisas agradáveis que não procuravam.

Só em 1875 o novo vocábulo passa a ser usado numa revista literária e apenas em 1909 entra pela primeira vez num dicionário. Em português, serendipidade entra pela primeira vez num dicionário em 1982, fixada no Rio de Janeiro por António Houaiss. Estácio dos Reis sente-se bafejado pela serendipidade. Investigações que faz sobre um determinado objecto levam-no a descobrir elementos para futuras investigações ou permitem-lhe encerrar antigas. Conversas adjacentes com outros investigadores levam a soluções inesperadas.

“A serendipidade não é normalmente assinalada por aqueles que são bafejados por ela”, afirma, entre o divertido e o jocoso. “Quem frequenta as universidades ou os laboratórios, já deve ter ouvido, em conversa de corredores, frases do tipo – ‘ele não descobriu coisa nenhuma, teve foi muita sorte. É por isso que nunca são os próprios a falar de serendipidade, está em causa o seu próprio prestígio…”.

Estácio dos Reis, um cultor do vocábulo, é mesmo considerado, na Internet, como o “pai” do conceito no nosso país, coisa que ele se apresta a desmentir. “Em Portugal, é Amorim da Costa que, em 1986, utiliza pela primeira vez a palavra, na sua obra Introdução à História e Filosofia da Ciência”, precisa.

O Comandante especialista em acasos felizes faz questão de notar que “a serendipidade cria, ela própria, serendipidade”.

A decadência portuguesa

Foi notável a contribuição dos portugueses nas actividades ligadas ao mar, a partir do século XV. Inventando ou adaptando métodos de navegação simples e instrumentos de fácil manejo, “foi possível dar aos pilotos, especialmente aos menos letrados, a indispensável ferramenta de trabalho”, recorda Estácio dos Reis. “Apesar das limitações, como por exemplo a impossibilidade de determinar com rigor a longitude, os portugueses chegaram aos quatro cantos do mundo.

Mas a decadência chegou. “A estrela que iluminou os nossos nautas entrou em declínio nesse fatídico século XVIII”, acusa o especialista. “Os portugueses, que sempre fizeram os astrolábios náuticos, os quadrantes ou as ampulhetas, passaram a importá-los quando uma nova vaga de instrumentos entrou a bordo dos navios”, diz. Foi o cronómetro que permitiu calcular a longitude no mar com exactidão e essa descoberta tecnológica não partiu de Lisboa, mas de Londres. “Foi, também, essa nova famosa família de instrumentos, de que o sextante é o mais conhecido, que permitiu medir ângulos com uma precisão que os portugueses nunca sonharam”, recorda Estácio dos Reis. “Estou a mentir: houve um português que sonhou. Chamava-se Pedro Nunes e inventou o nónio. E foi essa genial ideia que veio a servir para que Pierre Vernier, dois séculos mais tarde, desse ao sextante o rigor de que os nautas passaram a usufruir na medição da altura dos astros”.

Talvez tenha sido esse o ponto crucial que marca a decadência portuguesa e a ascensão das novas potências marítimas – França, Holanda, Inglaterra – e o adivinhar da Revolução Industrial, que Portugal perdeu inexoravelmente.

“Também a cartografia, que os portugueses levaram aos mais alto nível, se extinguiu como que por encanto”, lamenta o especialista. “Nos anos oitocentos, não só não tivemos cartógrafos, como a cartografia que praticámos com tanto êxito se tornou obsoleta. Nasce uma nova cartografia, baseada no rigoroso cálculo da longitude e desenhada segundo o método das latitudes crescidas, que se deve a Gerard Mercator”.

E hoje, porque é que existe um desprezo relativo nos meios académicos portugueses pela História da Ciência e pela preservação dos instrumentos científicos existentes em Portugal? Para o Comandante Estácio dos Reis não se está perante um desprezo puro e simples, antes a situação actual resulta especialmente do facto de não ter havido nas Universidades, até há pouco tempo, cadeiras que versem esse tema. “Mas as coisas estão a melhorar”, diz. “Em 2000 tivemos em Évora e Aveiro o 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e em 2003 o 2º Congresso, no Rio de Janeiro, ambos com grande participação. Quanto à história da Náutica, já vamos em 12 reuniões, que têm a participação de espanhóis e brasileiros”. E o desprezo que se sente em relação à instrumentação, usada e depois quase sempre ignorada, colocada numa qualquer cave ou sótão ou, mais grave, deitada para o lixo? “Apesar deste interesse, isso não quer dizer que quem estuda a História da Ciência se possa interessar por instrumentos científicos”, reconhece o especialista. “De repente, só encontro alguns e poucos locais em que se cuidem destes instrumentos. O Museu de Ciência, de Lisboa, o Museu de Marinha, o Gabinete de Física da Universidade de Coimbra, um museu existente na Faculdade de Engenharia do Porto… e não me lembro de mais”. Estácio dos Reis, que fala sempre das suas “colecções imaginárias” – os instrumentos científicos que estuda, para os quais chama a atenção, ajuda a recuperar, mas que não tem dinheiro para, pessoalmente, adquirir – admite: “Os instrumentos científicos não atraem os portugueses. Não há coleccionadores, que são, efectivamente, quem faz os museus”. A única excepção de que Estácio dos Reis se recorda é do leilão realizado há uns anos, em que apareceram instrumentos científicos. “Foi o do meu saudoso amigo Francisco Hipólito Raposo”.

De uma generosidade rara em relação aos outros investigadores – está sempre pronto a partilhar fontes, a ceder documentos, a recomendar e abrir contactos em Portugal e no estrangeiro, Estácio dos Reis é, ele próprio, um caso sério de serendipidade para quem tenha a sorte de com ele se cruzar.

Biografia

António Estácio dos Reis nasceu em Lisboa, em 1923, frequentou o Liceu Pedro Nunes e foi admitido na Marinha de Guerra em 1943. Na Reserva da Armada desde 1979 e reformado desde 1991, tem no seu currículo militar cargos como o Comando Naval de Moçambique, uma Missão Militar NATO em Bruxelas, uma passagem pelo Tribunal Militar da Marinha, como juiz, ou pela Embaixada de Portugal em Paris, como Adido Naval. No campo da investigação, desde 1988 que trabalha com a Biblioteca Central de Marinha, tendo colaborado com a Comissão Cultural da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura (1982-83), com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, com a Comissão de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, com a EXPO-98. Está actualmente empenhado na contribuição para a edição das Obras de Pedro Nunes, sob a égide da Academia das Ciências de Lisboa.

Membro da Scientific Instrument Society, de Londres, Estácio dos Reis tem feito comunicações em dezenas de congressos científicos em Portugal e no estrangeiro. Centenas de artigos seus, de divulgação científica, estão publicados nas Revista da Armada, Baluarte, Atlantis, Oceanos, Mare Liberum, Gazeta de Matemática, entre outros títulos. Astrolábios Náuticos em Portugal é o seu mais recente livro, estando actualmente em fase de finalização A Máquina a Vapor, onde trata da introdução deste elemento de modernidade no Portugal do século XIX.

Com mais de vinte condeocorações militares e civis, Grande Oficial da Ordem Militar de Avis desde 1980 e condecorado pelos Estados de França e do Brasil, é agora feito Comendador da Ordem Militar de Santiago e Espada.



2 comentários:

Anónimo disse...

Aproveito o seu texto, para deixar também a minha homenagem ao Sr. Comandante.

João de Castro Nunes disse...


SERENDIPIDADE

Vezes sem conta tem-me sucedido
no chão topar um diamante em bruto
e displicentemente dar-lhe um chuto
sem dele retirar qualquer partido.

É o que sucede aos investigadores
quando lhes surge pela frente um dado
que indiferentemente põem de lado
sem ponderar sequer os seus factores.

Quem sabe se era ali que residia
o ponto crucial da descoberta
da mais inovadora... teoria?!

É de "acasos felizes" na existência
que surge às vezes uma porta aberta
para ocultos meandros da ciência!

JOÃO DE CASTRO NUNES