quarta-feira, 30 de abril de 2025
Meditações - a memória das coisas sem idade
Cai, como antigamente, das estrelas
um frio que se espalha na cidade.
Não é noite nem dia, é o tempo ardente
da memória das coisas sem idade.
O que sonhei cabe nas tuas mãos
gastas a tecer melancolia:
um país crescendo em liberdade,
entre medas de trigo e de alegria.
Porém a morte passeia nos quartos,
ronda as esquinas, entra nos navios,
o seu olhar é verde, o seu vestido branco,
cheiram a cinza os seus dedos frios.
Entre um céu sem cor e montes de carvão
o ardor das estações cai apodrecido;
os mastros e as casas escorrem sombra,
só o sangue brilha endurecido.
Não é verdade tanta loja de perfumes,
não é verdade tanta rosa decepada,
tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,
tanto relógio, tanta pomba assassinada.
Não quero para mim tanto veneno,
tanta madrugada varrida pelo gelo,
nem olhos pintados onde morre o dia,
nem beijos de lágrimas no meu cabelo.
Amanhece.
Um galo risca o silêncio
desenhando o teu rosto nos telhados.
Eu falo do jardim onde começa
um dia claro de amantes enlaçados.
Eugénio de Andrade
terça-feira, 29 de abril de 2025
Uma amiga - Maria José Teixeira (1945 - 2025)
Sempre que a saúde lhe permitiu, esteve presente nos lançamentos do Anuário Relógios & Canetas. Maria José de Melo e Vaz Teixeira, nascida em Timor, passou por Moçambique e pela África do Sul, antes de viver em Portugal. Quadro bancário desde os 18 anos, acabou a sua carreira na UNICRE. À filha, Carla, ao sobrinho Paulo e restante família, as nossas condolências. Nas imagens, sempre na Boutique Montblanc da Avenida da Liberdade, Maria José Teixeira a segunda à esquerda; ao centro; e a primeira à esquerda.
Meditações - gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.Eugénio de Andrade
segunda-feira, 28 de abril de 2025
domingo, 27 de abril de 2025
Meditações - a minha alma não envelheceu
São raros os meus familiares, amigos e colegas de trabalho que continuam a resistir à gadanha do tempo. Já quase todos partiram e, sem dramatismo, isso diz-me aquilo que todos nós sabemos.
O meu Bilhete de Identidade perpétuo (já não me foi passado o Cartão de Cidadão) diz que sou um velho de 94 anos. Isso é mais que evidente e, todas as manhãs, o espelho da casa de banho o confirma. Mas a minha alma não envelheceu e eu tenho plena consciência disso.
Mantenho, a um tempo, a ingenuidade e a transparência da criança feliz que fui, a insatisfação, ousadia e aventureirismo da adolescência, a energia e positivismo da idade madura e a ponderação, tolerância, paciência e resignação dos velhos. Não perdi o sentido de humor e o amor à vida. O corpo e, em especial, as pernas é que não ajudam.
Mas, aqui, sentado, frente ao monitor, a dedilhar no teclado
as palavras ditadas pelo pensamento, não tenho idade nem as dores do corpo dos
velhos. Continuo a trabalhar e tenho a felicidade de o poder cumprir no que me
dá prazer.
Faço-o ao limite das minhas capacidades físicas, tenho consciência de que o produto do meu trabalho continua a ter utilidade e isso encoraja-me a continuar.
António Galopim de Carvalho. Crónica escrita em Fevereiro de 2025