(arquivo Fernando Correia de Oliveira)
Em Junho, Julho, Agosto e Setembro de 2004 A Boa Reguladora, numa derradeira e fracassada tentativa de recuperação, levava a efeito uma exposição histórica. Eis o que escrevemos na altura para a revista Internacional Horas & Relógios:
Exposição até final de Setembro, em Famalicão
A Boa Reguladora – uma viagem no Tempo
Fernando Correia de Oliveira
São 136 peças de um acervo que esteve durante muito tempo esquecido, se não abandonado. Trata-se de um importante património para a arqueologia industrial portuguesa, pois é exemplo único de perenidade nacional no que respeita ao fabrico de relógios. A exposição de A Boa Reguladora, em Vila Nova de Famalicão, agora inaugurada, será o primeiro passo para a concretização de um museu de uma fábrica que quer renascer.
“A Boa Reguladora – Uma viagem no Tempo” é o título da exposição que está patente no centro histórico de Famalicão, no antigo edifício Casa Malheiro, e que permite uma viagem pelas várias etapas da única fábrica de relógios portuguesa que existiu no último século e meio.
Iniciativa conjunta da nova gerência da Reguladora e da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, a exposição reúne 136 peças, entre relógios, peças, catálogos e instrumentos e ferramentas daquela que foi caso único no panorama nacional. Estará patente até 30 de Setembro.
Rica em história e tradição, a Reguladora está em risco de perder um conhecimento relojoeiro acumulado ao longo de gerações, já que aos tempos áureos – que duraram até quase ao 25 de Abril de 1974 – se seguiram algumas décadas de indefinição e ultrapassagem em termos técnicos e estéticos por uma concorrência aguerrida e estrangeira. Com uma nova gerência, apostada em não deixar perder o nome forte da marca, a Boa Reguladora quer agora criar um museu de manufactura, arrancar com um ciclo de colóquios e conferências subordinadas ao Tempo, à Relojoaria e à indústria micro-mecânica, candidatar-se a fundos europeus para formação de relojoeiros. E lançar novos modelos do seu vasto catálogo, inspirados no passado, mas que possam agradar ao gosto do século XXI. Seria uma pena que esta empresa, única, desperdiçasse o seu nome ou visse o seu património desaparecer ingloriamente. Há toda uma vasta história por contar:
O Catálogo da Exposição Industrial Portuguesa de 1897, realizada no Palácio de Cristal, no Porto refere no seu artigo 187 a firma Carvalho, Irmão & Cª, Fábrica de relógios “A Boa Reguladora” (Vila Nova de Famalicão). A firma levou à feira uma colecção de relógios de mesa e de parede, além de material em diversos graus de fabricação.
No catálogo que o próprio expositor mandou imprimir para a ocasião explica-se: “A iniciativa da introdução do fabrico de relógios no nosso país deve-se exclusivamente ao génio altamente empreendedor e tenacíssimo do nosso falecido sócio, João José de S. Paulo. A fábrica primitiva, que foi estabelecida em 1893, na Rua Gomes Freire, desta cidade [Porto], sob a firma de S. Paulo & Carvalho, foi depois mudada para Vila Nova de Famalicão, onde se acha instalada em um edifício de construção ligeira, mas amplo e em condições de se poder dar ao fabrico o desenvolvimento que a pronta extracção dos seus produtos exige” (sic).
“Hoje, prossegue o catálogo, a fábrica ‘A Boa Reguladora’ pertence à família Carvalho, Irmão e Cª, possui trinta e quatro máquinas diversas, sendo a maior parte movidas a vapor, e, com um pessoal composto de trinta e seis operários, de ambos os sexos, produz uma média mensal de cento e sessenta relógios de modelos diversos para mesa e parede.
“Esta produção, que não é ainda metade da quantidade que o país importa, vai aumentando pouco a pouco segundo o número de modelos novos que entram em fabricação e na proporção do terreno ganho no mercado pelos produtos da nossa fábrica”.
Como estavam equipados os relógios d’A Boa Reguladora? “O tipo de máquina que adoptámos para os nossos relógios é cópia fiel do calibre usado pela principal fábrica americana ‘Ansonia Clock Cny’, modificando-lhe apenas o sistema de contar as horas, de que temos privilégio por alvará de 18 de Maio de 1893. Todas as peças de que se compõem as máquinas são fabricadas com tal precisão e uniformidade de dimensões, que a substituição de qualquer delas se torna muito fácil e pronta”.
Num país sem tradição na micro-mecânica em geral e ainda menos na relojoaria, “grandes foram as dificuldades com que a princípio lutámos, e que sempre se opõem à implantação de uma indústria complicada e inteiramente estranha no nosso país, como a da relojoaria; essas fadigas, porém, têm sido compensadas em parte, não só com a satisfação de vermos os nossos produtos premiados com medalha de ouro na exposição agrícola e industrial de Gaia, um ano apenas depois de instalada a fábrica, mas também pela boa aceitação que têm tido no mercado todos os relógios por nós fabricados, sem excepção mesmo dos primeiros que nos serviram para experiências. É-nos também muito grato poder declarar que a dependência que existe entre a nossa fábrica e a indústria estrangeira, se limita apenas à importação do material em bruto, tal como ferro e aço em fio, latão em grandes chapas e diversas qualidades de madeiras, em pranchões e em folha, que se empregam na marcenaria instalada na mesma fábrica”.
Quais as perspectivas do negócio, quatro anos apenas depois de ter começado? “Consideramos a nossa indústria ainda na infância, mas julgamos poder em poucos anos suprir as exigências do mercado interno. Só depois trataremos de estudar a possibilidade de exportação dos nossos artigos para o Brasil, para as nossas possessões, e talvez para Espanha, imitando a relojoaria francesa, única que tem aceitação naquele país”.
Os relógios d’A Boa Reguladora foram fazendo, durante décadas, o seu nome, encontrando lugar em milhares e milhares de lares portugueses.
João S. Paulo e José Carvalho logo iniciaram no Porto o fabrico de relógios como se tinham proposto. Não pensaram em relógios de uso pessoal como os de bolso (relojoaria fina) nem em relógios de torre (relojoaria grossa), ficando-se pelo meio-termo, os relógios de parede e de mesa – visando competir com os que o mercado português importava da Alemanha e dos Estados Unidos. Sobretudo estes últimos, eram muito apreciados pela robustez e simplicidade do seu mecanismo, o que os tornava muito competitivos.
O primeiro modelo fabricado na fábrica do Porto foi o “Batalha”, relógio de mesa batendo horas e meias horas. Sendo o primeiro, foi também um modelo que nunca deixou de se fabricar.
Tinha a Sociedade “S. Paulo & Carvalho” apenas 3 anos de existência quando o sócio João José S. Paulo, por razões de saúde, cede a sua posição a José Carvalho, vindo a falecer, pouco depois, com apenas 30 anos. Foi nessa altura constituída nova sociedade entre José Carvalho, seu irmão mais novo, Lino Carvalho, e o credor de S. Paulo, Joaquim Martins de Oliveira Rocha, este último como sócio capitalista.
Lino Gomes da Costa Carvalho era relojoeiro estabelecido com oficina e casa comercial na rua de Stº António, em Famalicão. Dado que os dois sócios activos eram daí, resolveram transferir a fábrica para lá.
Em 1901, a dívida de S. Paulo é paga e Oliveira Rocha deixa a sociedade, que fica nas mãos dos irmãos Carvalho.
Desde os primeiros anos que a Reguladora é uma empresa industrial integrada. O relógio fabricava-se totalmente, em todos os seus componentes. Para a fabricação das caixas, a madeira era comprada em toros, serrada, aparelhada e acabada por marceneiros. A par da actividade relojoeira, e aproveitando a actividade de serração e carpintaria, a empresa trabalhou também para a construção civil. A força motriz das máquinas a vapor entretanto adquiridas era paralelamente utilizada na moagem de cereais. Em 1908 já a Reguladora possuía geradores de energia eléctrica. Por iniciativa de José Carvalho, estudou-se a iluminação eléctrica pública de Famalicão, concretizada no ano seguinte e tornando a localidade no primeiro município da província a ter essa melhoria. A Reguladora teve até à década de 50 do século XX a concessão de distribuição eléctrica à Vila.
Quando, em 1914, deflagrou a I Guerra Mundial, já A Boa Reguladora tinha atingido uma dimensão industrial assinalável para a região. Numa área fabril de 10 mil metros quadrados trabalhavam 220 operários de ambos os sexos. A força motriz era de “220 cavalos em 3 motores” e a produção de relógios foi, nesse ano, de 6.408 unidades.
Nos anos 30 e 40, já por influência de António Augusto do Nascimento Carvalho, neto de José Carvalho, assiste-se à evolução dos modelos da Reguladora, mais precisos e mais técnicos: surgem os “Carrilhões” com toque Westminster e, mais tarde, os Avé Maria de Fátima com toques nos “quartos” e nas “horas”. Abriu-se com grande sucesso o mercado brasileiro. Na II Guerra Mundial, debatendo-se com falta de matérias-primas, a Reguladora viu-se obrigada a fundir latão ou a comprar cabos, retirados por desgaste, do elevador do Bom Jesus de Braga. Por uma questão de honestidade, os maquinismos dos relógios dessa época levavam a marca “Fabrico de Guerra”, mas ainda hoje são apreciados pelos relojoeiros pela sua robustez.
Terminada a guerra, o mercado brasileiro entra em crise e praticamente termina para a Reguladora. Começava a haver dificuldade de escoamento para a capacidade de produção. Procuram-se novos produtos. Em 1952 surgem os despertadores, artigo de grande consumo mas de tecnologia mais exigente: escapes de volante com oscilador espiral. Com o seu característico tic-tac bastante sonoro, o despertador da Reguladora passou a figurar até nas habitações mais humildes.
Com vista à expansão e diversificação de actividades, procurou-se um novo produto que, não sendo relógios, pudesse contudo tirar rendimento de grande parte do parque de máquinas e equipamentos existentes. O Contador de Água parecia ser o produto ideal, pois tinha uma importante componente de engrenagens, era de grande consumo e Portugal estava nessa altura quase totalmente dependente da importação. Em 1954 foi assinado um contrato de assistência técnica com a firma belga Contimeter. No ano seguinte, iniciou-se a produção de contadores. Em 1957, com a mesma firma belga, assina-se o contrato de assistência técnica para o fabrico de contadores, mas agora de energia eléctrica.
No capítulo dos relógios, a década de 50 assiste a uma exportação considerável para o mercado espanhol. Na década de 60 continua o fabrico de relógios de parede, de coluna, de mesa e despertadores. No final dessa década são lançados os primeiros relógios electrónicos alimentados a pilhas, primeiro com oscilador mecânico e depois com oscilador de quartzo.v A partir de 1972 a Reguladora dispunha da totalidade da tecnologia para o fabrico de contadores de água e contadores eléctricos. Em 1982 começa a fabricar aparelhos de protecção diferencial – disjuntores e interruptores. Em 1983 inicia-se a produção de fiscalizadores de chamadas telefónicas e de interruptores horários de quartzo.
No período conturbado do pós-25 de Abril de 1974, a Reguladora, como centenas de outras unidades fabris por todo o país, chega a estar em regime de co-gestão, que acabaria pouco depois.
Em meados da década de 90, o negócio da relojoaria pura autonomiza-se, com a venda das restantes componentes. Embora não fabrique já desde 1995 os seus movimentos (importando os mecânicos da Alemanha e os de quartzo da Suíça), A Boa Reguladora, que vai na quarta geração como negócio de família, continua a comercializar os seus relógios. E quer agora, com esta exposição, recolocar-se no mercado nacional, onde ainda continua a ter uma imagem muito forte.
Na abertura da exposição, a 29 de Junho de 2004, fomos convidados a fazer uma conferência em Vila Nova de Famalicão, subordinada ao tema "O Tempo em Portugal – Relojoaria Mecânica e Mentalidades"
Eis o resumo:
Os relógios de sol, que vieram com a ocupação romana, e a relojoaria grossa, férrea ou de torre, que veio com relojoeiros franceses e que se estabilizou com a aliança matrimonial da dinastia de Aviz com a Casa inglesa de Lencastre.
A introdução dos relógios portáteis, de sol e mecânicos, por parte da família Behaim, que comerciava em Lisboa mas era originária da Floresta Negra.
A introdução dos relógios mecânicos nas cortes chinesa e japonesa, por intermédio do Padroado Português do Oriente, nos séculos XVI e XVII, e a sua importância para a fixação dos ocidentais nessas paragens.
O tempo glorioso de D. João V, em que a corte portuguesa comprava os melhores relógios do mundo, seguido do desastre do terramoto de 1755, que destruiu grande parte do património relojoeiro monumental de Lisboa e arredores.
O período do Marquês de Pombal, em que se assistiu à laicização do tempo nacional, por um lado, e à fundação da primeira fábrica de relógios portuguesa, por outro.
Os astrónomos jesuítas em Portugal e os “estrangeirados” do século XVIII, como João Jacinto de Magalhães e Jacob de Castro Sarmento
Veríssimo Alves Pereira e Augusto Justiniano de Araújo, figuras da relojoaria do século XIX português.
Os casos de A Boa Reguladora, A Boa Construtora, Cardina (Nazaré) ou Jerónimo (Braga), exemplos de relojoaria de fabrico nacional no século XX português.
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