O Tempo não se compra, mas gosta de ser bem tratado. Em tempo de globalização, crise e outros estados de alma, um amigo com muitas gerações de sabedoria acumuladas na família dizia-me recentemente, citando Metternich, primeiro-ministro do há muito defunto Império Austro-húngaro: "A verdadeira obra-prima é durar”.
"Quem me dera ser neto de mim próprio", observava Napoleão.
"Quem me dera ser neto de mim próprio", observava Napoleão.
O Tempo está na base dos recifes de corais, das estalactites e estalagmites das grutas, do bom vinho do Porto. Como diria Marguerite Yourcenar, “O Tempo, esse grande escultor…”.
Em 1830, F. Silvestre (possivelmente um pseudónimo), fez publicar em Tours, França, a obra L’Espagne et le Portugal Tels qu’on les voit – Notes et Impressions de Voyage. Nela, descreve assim o panorama relojoeiro de Lisboa em meados do séc. XIX:
“ [...] Lisboa, como em geral todas as cidades da Península, tem falta de relógios públicos. É certo que vemos raramente as pessoas a consultarem os seus relógios, e é mesmo muito provável que aquelas que surpreendemos nessa ocupação estejam apenas de passagem, e tenham importado esse hábito dos seus países de origem. Com efeito, os portugueses, bem como aliás os espanhóis, têm o hábito de observar a posição do sol que, desde o nascer ao ocaso, está sempre lá para permitir deduzir-se muito aproximadamente a hora, com a ajuda de uma simples observação.
"Devo também referir, para ser imparcial, que se encontram, de tempos a tempos, numa qualquer montra, suspensos algumas dezenas de relógios ingleses ou americanos; mas estou convencido de que os compradores são muito raros e todos estrangeiros.
“É verdade que a necessidade de possuir estas máquinas complicadas não se faz sentir em países ensolarados, como se faz com grande urgência na Flandres, na Alemanha e em certas regiões setentrionais onde o tempo nublado, de tempos a tempos, impede que se alcance o que quer que seja, e mesmo os olhos reforçados com óculos de lentes muito grossas não conseguem atingir os ponteiros dos relógios monumentais que cada edifício um pouco respeitável se orgulha de exibir”.
De então para cá, a situação só piorou. Quanto à sorte de relógios de sol e de relógios da chamada relojoaria monumental, de torre, grossa ou férrea, ela é hoje de autêntica hecatombe no país, mercê da insensibilidade das várias comunidades em perceber a importância do Tempo e dos seus Pilares – pedras ou mecanismos.
Desde a Igreja ao poder local, passando pelo Estado, a atenção dada ao património relojoeiro nacional tem sido escandalosamente nula, permitindo que peças de algum valor tenham, paulatinamente, seguido directamente para o lixo ou para o estrangeiro. E poucos parecem interessados em inventariar, restaurar e manter o património que resta. Que contraste com o que se vê na Europa Central, onde os relógios continuam a fazer parte do quotidiano dos burgos, que se sentem orgulhosos dessas peças.
A estima que essas comunidades nutrem pelos seus relógios públicos diz muito do grau de conforto com que elas lidam com três, quatro, cinco ou até mais séculos de uma História em que “aquele” Pilar do Tempo foi testemunha e por vezes actor.
Como colectivo, Portugal nunca lidou bem com o Tempo e isso explica muito do seu atávico atraso e das dificuldades por que agora passa.
Claro que até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Mas esse “consolo” só serve, mais uma vez, para nos enganarmos a nós próprios e não tomarmos decisivamente o Tempo nas nossas mãos. O mal, afinal, como dizia o cronista do séc. XIX, é termos sol a mais…
Artigo de opinião publicado na Revista Cais, número de Julho/Agosto de 2006
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