segunda-feira, 16 de julho de 2018
Relógios, máquinas todo-o-terreno - artigo na revista Turbilhão
Já saiu o número de Verão da revista Turbilhão.
Escrevemos para esta edição um artigo intitulado "Máquinas Todo-o-Terreno"
Resistir à poeira, à água, às variações de temperatura e de pressão atmosférica
Máquinas todo-o-terreno
Fernando Correia de Oliveira
A Relojoaria vive bem com a hostilidade do meio-ambiente, dominando-o. Das profundezas dos mares aos picos das mais altas montanhas. Desde os primórdios da Aviação à conquista espacial. Com altas pressões ou em atmosferas rarefeitas. O que faz com que, no pulso, esteja uma máquina todo-o-terreno
Se fizer uma busca na Internet sobre os chamados “4 Elementos” será invariavelmente remetido para sites e artigos mais ou menos esotéricos, para mapas zodiacais, para guias sobre as pedras ou as cores “propícias”.
Mas há uma base científica ou pelo menos para-científica neste conceito que fala de terra, água, fogo e ar. Na sua origem, tratou-se de uma hipótese de alguns filósofos gregos pré-socráticos, nomeadamente de Empédocles, que viveu no século V antes da era actual. Segundo essa escola, toda a matéria de que o mundo é constituído é composta de quatro elementos. Na tradição alquímica, cada um é representado por um símbolo diferente. As experiências alquímicas – como a busca do Elixir da Longa Vida ou a transmutação de metais como o chumbo em ouro – estão para a história da ciência como a Astrologia está para a Astronomia.
Para os pré-socráticos, cada substância presente no universo seria constituída por um ou diversos desses elementos, em mais ou menos quantidade. Isso explicaria o carácter mais ou menos volátil, quente, frio, húmido ou seco (as quatro qualidades elementares) de cada material.
Para essa escola de pensamento, imaginou-se uma essência primordial, que precedeu todas as outras. Tales escolheu a água. Heráclito via no fogo o elemento que deu origem da toda a matéria. Anaximénes preferiu o ar; finalmente, Empédocles, fala pela primeira vez dos 4 Elementos como sendo, juntos, a composição do Universo.
Ainda nesse capítulo, Demócrito fala de um Universo composto por átomos (em grego, a-tomos, que não pode ser cortado). Ou seja, partículas muito pequenas, inseparáveis e eternas, que formariam a matéria, como se de tijolos de um muro se tratassem. A interpretação simbólica dos quatro elementos fala ainda das qualidades activas (quente e frio) e passivas (seco e húmido). A Terra representa o elemento sólido, que se pode tocar e que tem uma consistência, um peso, uma forma fixa.
A água é, obviamente, a representação do elemento líquido, que toma a forma do recipiente e que se escoa para os espaços vazios e profundos da Terra.
O Ar é o elemento gasoso. Ele é ligeiro e sensível ao movimento. Pode ser comprimido até se tornar líquido. O Fogo é o elemento activo, possui calor e pode comunicar com o seu meio envolvente imediato, transformando a matéria em seu contacto em líquido, gasoso ou mais fogo.
Perguntar-se-á o leitor: e o que tem tudo isto a ver com Relojoaria?
Desde logo, podemos dizer que os primórdios da medição mecânica do Tempo – a chamada Relojoaria Grossa – tiveram como palco as forjas dos ferreiros, que a um tempo fabricavam alfaias agrícolas, a outro armas e armaduras, a outro ainda rodas dentadas e outros elementos dos relógios iniciais. Só eles tinham a sabedoria, muitas vezes aprendida em tratados de Alquimia, para temperar e combinar metais, para trabalhar o ferro e dominar o fogo.
Depois, há o combate eterno entre os mecanismos e elementos que lhes são prejudiciais ao seu bom funcionamento – pó e água. Os primitivos relógios de bolso não tinham vidro protector do mostrador. Mas rapidamente as protecções contra o pó foram sendo criadas, nomeadamente em relógios de bolso com caixas múltiplas. Daí as chamadas “cebolas”, pois esses objectos “descascavam-se” em camadas sucessivas.
Quanto á água, a estanquicidade das caixas sempre foi um elemento procurado pela indústria. Especialmente quando os relógios de pulso se tornaram populares – na I Guerra Mundial, em ambientes húmidos e lamacentos – ou quando os desportos de ar livre se massificaram. A indústria soube responder com materiais cada vez mais resistentes à corrosão – nomeadamente aço inoxidável – e com caixas cada vez mais herméticas, mesmo a grandes profundidades – usando vedantes de borracha, coroas e botões de enroscar, válvulas que expelem o hélio que se forma nesses ambientes e que provocam a explosão do relógio quando ele emerge.
No ar, a navegação faz-se, como o nome indica, como se fosse no mar. A relojoaria, desde os cronómetros de marinha, no século XVIII, desempenhou um papel fundamental na navegação. Toda uma série de instrumentos profissionais esteve ligada à Aviação desde os seus primórdios. No tablier do cockpit, no pulso ou mesmo amarrado à perna do piloto. Para que este tivesse as mãos livres. Com tamanhos de caixa maiores do que habitualmente, coroas maiores e com estrias (para poderem ser manuseadas com luvas), índices e ponteiros luminescentes e também maiores, para leituras nocturnas mais fáceis. Os vidros, devido às mudanças de pressão, podem saltar. A relojoaria também resolveu esse problema, com fixações especiais. Finalmente, as funções – cronógrafos rattrapantes, com flyback, medindo ventos cruzados, com réguas de cálculo circulares, todas elas concebidas para facilitar a navegação aérea.
Quanto ao fogo, ele está presente em muitos dos Métiers d’Art. A ciência tem ajudado, com fornos mais eficazes e de controlo de temperatura por computador. Mas continua a haver muita alquimia (e incerteza) quando se produzem mostradores de esmalte Grand Feu (a mais difícil das técnicas de esmaltagem, exigindo temperaturas de 1.400 graus e sucessivas idas ao forno, uma delas de oito dias consecutivos). Conseguir uma cor homogénea, sem bolhas, é muito exigente. E, aqui, a experiência dos artesãos é factor insubstituível.
Mas a Relojoaria tem o aspecto fascinante de misturar saberes ancestrais com técnicas de vanguarda. Os chamados materiais compósitos, sem existência na Natureza, todos eles amagnéticos, resistentes ao risco e à corrosão – silício, fibra de carbono, nano-fibras, vidro sintético, cerâmicas e plasmas high-tech – estão hoje presentes na indústria. Dominando assim Terra, Mar, Fogo e Ar. Sempre em busca de relógios mais resistentes, precisos e perenes.
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