Para começar esta discussão sem fim talvez seja bom lembrar desde logo duas coisas: os primeiros relógios mecânicos não tinham mostrador, eram utensílios das comunidades religiosas para regular os seus tempos de oração e trabalho, que “batiam” horas mas não as mostravam; os primeiros relógios complicados começaram por ser astronómicos, pois o poder da época estava muito mais interessado, para fins místicos, em saber quando ocorria o próximo eclipse do Sol ou da Lua do que em saber que horas eram (paradoxalmente, com os conhecimentos astrológicos de então, isso já era relativamente fácil de prever e traduzir de forma mecânica, mas conseguir que um relógio não atrasasse uma hora por dia, devido à fraca qualidade dos mecanismos, era tarefa impossível).
Há quem pense que um relógio com mostrador em numeração romana revela a sua qualidade se tiver um “IIII” em vez de um “IV”. Por outras palavras, os relógios com “IV” seriam de fraca qualidade. Um problema para esta tese: alguns dos melhores relojoeiros de sempre, como Lepine, muitos construtores ingleses e americanos dos séculos XVIII e XIX, usaram indiscriminadamente os dois tipos de numeração. E que dizer do Big Ben, em Londres, o paradigma da relojoaria pública mundial, que tem no mostrador um “IV”?
O uso indiscriminado dos símbolos “IIII” e “IV” parece ter começado com os próprios romanos, embora se pense que os quatro traços para significar a unidade “quatro” são o método mais antigo, pois eles estão presentes na esmagadora maioria dos relógios de sol daquela época. O método de subtracção – IX, para “nove”, XL para “quarenta”, XC para “noventa”, etc. – parece ter-se disseminado lentamente, passando a coexistir com o anterior e, depois, vindo a substitui-lo. O “IV” só viria a ser de uso generalizado na Idade Média europeia mas, entretanto, a tradição, vinda de outros medidores de tempo – os quadrantes solares – teria passado para os mostradores dos relógios mecânicos.
Ainda do tempo do Império Romano vem outra explicação para se preferir “IIII” a IV”. É que os romanos usavam o “I” para significar o actual “J” e o “V” para significar o actual “U”. Sendo assim, escreviam IVPITER para significar “Júpiter”, uma das suas principais divindades. Seria blasfemo usar a abreviatura desse nome sagrado, “IV”, nos mostradores dos relógios solares, pelo que o “IIII” seria a solução. Uma explicação rebuscada e que não tem qualquer base científica, pois nunca foi encontrado nenhum escrito clássico que a corroborasse.
Outros dizem que os camponeses, iletrados, conseguiam ler mais facilmente IIII do que IV. Não colhe, pois a esses camponeses analfabetos bastava ouvir o “bater” das quatro horas, quer o relógio tivesse mostrador ou não. E que dizer do IX, que nunca foi representado, pelo menos em relojoaria, como VIIII?
Segundo uma explicação mais “industrial”, os mestres medievais tinham que fundir e cortar as letras que usavam nos mostradores, sendo mais fácil e mais económico produzir séries de 20 Is, 4 Vs e 4 Xs numa prancha, com os moldes a produzirem 10 Is, 2 Vs e 2 Xs de cada lado. E então os mostradores que não usavam índexes colados, mas escavados e pintados na pedra, como era a esmagadora maioria nos primeiros relógios que mostravam as horas para o exterior? E porque é que uma profissão que sempre se preocupou em produzir “complicações” cada vez mais espantosas do ponto de vista mecânico, se iria preocupar em simplificar na produção de simples mostradores?
A saga da “guerra” entre o IV e o IIII em relojoaria desperta as imaginações mais férteis. Há explicações que dariam um bom enredo para um filme.
No Casual anterior falámos de algumas explicações para o uso do IIII em vez do IV na numeração romana dos mostradores dos relógios. Prosseguimos com mais umas tantas, nomeadamente as histórias apócrifas, que estranhamente foram ganhando eco em obras respeitadas sobre o Tempo e a História da sua medição. Fala-se de um episódio, em 1364, em que Carlos V repreendeu um relojoeiro, Henry de Vick, por ter escrito “IV” numa torre de relógio. O segundo disse que assim é que estava correcto, mas o rei ripostou: “Eu nunca me engano”, e o IV passou definitivamente ao caixote de lixo da História, para gáudio do IIII. Já com o francês Luís XIV, o episódio teria sido a oferta de um relógio por um grande relojoeiro da corte, possivelmente Lepine, que usava o IV. O Rei Sol decretou que ele deveria substitui-lo por IIII, pois IV era parte do seu nome sagrado e não utilizável em coisa tão comezinha. Outra história semelhante diz que o uso generalizado do IIII é anterior a 1820, e responsabiliza disso o rei inglês Jorge IV (1820-1830), que não queria passar à posteridade como George IIII. Tudo coisas sem sentido e sem o mínimo de fundamento.
A saga da “guerra” entre o IV e o IIII em relojoaria desperta as imaginações mais férteis. Há explicações que dariam um bom enredo para um filme.
No Casual anterior falámos de algumas explicações para o uso do IIII em vez do IV na numeração romana dos mostradores dos relógios. Prosseguimos com mais umas tantas, nomeadamente as histórias apócrifas, que estranhamente foram ganhando eco em obras respeitadas sobre o Tempo e a História da sua medição. Fala-se de um episódio, em 1364, em que Carlos V repreendeu um relojoeiro, Henry de Vick, por ter escrito “IV” numa torre de relógio. O segundo disse que assim é que estava correcto, mas o rei ripostou: “Eu nunca me engano”, e o IV passou definitivamente ao caixote de lixo da História, para gáudio do IIII. Já com o francês Luís XIV, o episódio teria sido a oferta de um relógio por um grande relojoeiro da corte, possivelmente Lepine, que usava o IV. O Rei Sol decretou que ele deveria substitui-lo por IIII, pois IV era parte do seu nome sagrado e não utilizável em coisa tão comezinha. Outra história semelhante diz que o uso generalizado do IIII é anterior a 1820, e responsabiliza disso o rei inglês Jorge IV (1820-1830), que não queria passar à posteridade como George IIII. Tudo coisas sem sentido e sem o mínimo de fundamento.
Há quem sustente que a forma IV entrou na relojoaria no último quarto do séc. XVII, quando alguns fabricantes fizeram relógios com “Toque Romano”, uma forma de sonnerie em que há um sino grande e um sino pequeno. O som do sino grande significa “cinco”. Assim, por exemplo, as quatro horas seriam assinaladas com um toque no sino pequeno, seguido de um toque do sino grande. Com esse método, havia uma grande poupança de energia e a corda durava mais tempo. Por mimetismo gráfico, os mostradores desses relógios têm sempre um “IV” em vez de “IIII”.
Mas isso contraria o “prestígio” que o segundo manteve até hoje em relação ao primeiro.
Algumas explicações são meio esotéricas – usando IIII, o mostrador ficaria em equilíbrio perfeito, com quatro indicadores de hora usando um I; quatro indicadores usando um V e quatro indicadores usando um X.
Algumas explicações são meio esotéricas – usando IIII, o mostrador ficaria em equilíbrio perfeito, com quatro indicadores de hora usando um I; quatro indicadores usando um V e quatro indicadores usando um X.
E, na Internet, circulam verdadeiras teorias da conspiração: há muitos anos, numa estação ferroviária distante (apetece-nos dizer “numa galáxia muito, muito distante”), uma pequena confusão causou um terrível acidente. O chefe da estação olhou para o relógio e viu que o ponteiro das horas marcava V (cinco horas), autorizando a saída de uma composição. Só que o ponteiro estava mesmo em cima do I, sendo quatro horas e não cinco, e houve um terrível acidente, pois entrou nessa altura na estação outro comboio. A versão prossegue, dizendo que houve depois uma convenção em Genebra, ficando estabelecido que o maldito IV seria banido para todo o sempre. Experimente reproduzir esta cena num relógio de bolso. Não conhecemos nenhum cujo ponteiro das horas (mais curto que o dos minutos), tape os índexes. E seria preciso ao chefe de estação estar numa grande confusão espaço-temporal para confundir quatro com cinco horas num mostrador de leitura analógica. Claro que nunca houve qualquer acidente ou qualquer convenção de Genebra (sobre o fatídico IV).
Então o que resta? Talvez a explicação menos espectacular mas a que faz, apesar de tudo, mais sentido: de um ponto de vista estético, o IIII dá simetria e equilíbrio, em contraposição ao VIII. É essa pelo menos a resposta preferida de grande parte dos especialistas, como Fortunat Mueller-Maerki, Presidente do Comité da Biblioteca do National Watch and Clock Museum, em Columbia, Pennsylvania, o maior museu de relojoaria dos Estados Unidos. “Os mostradores dos relógios são os seus rostos, com os quais o mecanismo comunica com a sua audiência”, refere ele ao Casual numa entrevista por e-mail. “Trata-se de um elemento muito importante, e os fabricantes de mostradores gastaram muitos esforços ao longo dos tempos para os tornarem agradáveis e bonitos. Parte dessa beleza é a de que os mostradores devem ser visualmente equilibrados. A simetria realça o equilíbrio”. Assim, “o IV em oposição ao VIII está desequilibrado, os números têm peso visual diferente, mas um IIII em oposição a um VIII está mais equilibrado”. Para Mueller-Maerki (e para nós), a decisão de se usar IIII em vez do IV é puramente estética. E você, leitor, tem alguma nova explicação a dar?
*Dois artigos publicados em 2008 no suplemento Casual, do Semanário Económico.
2 comentários:
Cinco (ou "V"?) estrelas!
Essa informação de que o conceito subtrativo surgiu posteriormente não me convence pois, o próprio 9 dos mesmos relégios são escritos em IX, logo este conceito nao surgiu posteriormente ¬¬ aliás é obvio que nao ou entao teriamos mais fatos ao longo da história, além de ter 14 como XIIII e etc..
Enviar um comentário