O relógio de Orgens, Viseu, antes e depois do restauro
Como o mecanismo era altamente misterioso para os comuns dos mortais, e como a sua pouca fiabilidade exigia manutenção constante, “quando se comprava um relógio, comprava-se com ele o relojoeiro”, que além do salário, recebia geralmente uma determinada quantidade anual em azeite. Para que o mecanismo pudesse ser oleado.
Eram tempos conturbados estes em Portugal, com a guerra quase constante com Castela, com o alfaiate Fernão Vasques a liderar a revolta popular contra o casamento de Fernando com Leonor Teles. E com a Peste Negra a aparecer: a pulga vinda das estepes da Ásia central, portadora da bactéria yersinia pestis matou, a partir de 1347, e em surtos sucessivos de apenas umas décadas, uma quarta parte da população europeia. Portugal não escapou à pandemia.
O século XV foi acentuando a importância do tempo público, marcado primeiro a partir de relógios de torre de mosteiros, com mecanismos que accionavam os sinos, passando a pouco e pouco a estar instalados nas torres municipais.
O mesmo cronista refere um frei João da Montanha, serralheiro, que tomou hábito em Alenquer, em 1475. Era “muito subtil em todo o mundo em fazer todo o labor de lima” e subentende-se que terá feito também obra relojoeira, a chamada “horologia ferrea”.
Segundo o investigador Rolando van Zeller, e referindo-se a João da Comenda, “o conhecimento que o bom do frade tinha, da maneira como se construíam relógios, devia resultar da convivência com outros serralheiros leigos ou monges, pois não se admite que subitamente lhe viesse à ideia de fabricar um, perdido como estava nos claustros do Mosteiro de Orgens”.
Van Zeller, refere que João da Comenda era do Convento da Conceição de Leça da Palmeira, vizinho do de S. Salvador de Bouças, este último pertencente à ordem de Cister, o que poderia explicar alguma coisa. Essa ordem “sempre procurou juntar a cristianização que operava em Portugal ao desenvolvimento de actividades industriais úteis para o progresso do país”. E acrescenta: “Se examinarmos com atenção o mapa da nossa terra, verificamos que é perto dos conventos principais da ordem de Cister que a arte de relojoaria se desenvolveu na província, e de que ainda restavam vestígios no final do século XVIII.”
Contrariando a primazia aventada por van Zeller, outro investigador, Jorge Custódio, faz notar que “a maioria das máquinas montadas no século XV foram encomendadas por conventos franciscanos e jerónimos e não tanto por beneditinos ou cistercenses”.
Toda a interpretação que se seguiu ao escrito de van Zeller partiu da premissa errada cistercense. Como Orgens é franciscano (fundado em 1410 por um frade galego, Pedro de Alemancos), parece que a questão fica mais ou menos resolvida.
Aquando da nacionalização dos bens das ordens religiosas, em 1834, Orgens também foi vendido. Do inventário da altura regista-se, na torre: um relógio com a sua competente sineta, avaliado em 24 mil réis; um sino grande, avaliado em 30 mil réis; uma sineta pertencente ao Refeitório, avaliada em 600 réis; outra sineta, pertencente à Portaria, avaliada em 6.800 réis e uma bandeira de ferro da Torre, avaliada em 300 réis.
Em 1377, a Sé de Lisboa instala “um relógio de torre, batendo sinos.” Segundo os registos, terá sido seu autor um tal “mestre João”, francês. E o investimento foi dividido em partes iguais pelo rei, Fernando I (que chegara dez anos antes ao poder, e a quem Herculano classificou de “extravagante mescla de grande príncipe e mentecapto ainda maior”), pelo Cabido da Cidade e pelos homens bons do burgo.
Sabe-se isso tudo porque há registos coevos de um sino, onde se lia a seguinte inscrição: “[…] foi este sino do relógio […] da mui nobre cidade de Lisboa por mandado do mui nobre Rei D. Fernando de Portugal e mui honrado cabido da dita cidade. Maitre Joam Francez me fez.” Do dito sino, hoje, nem rasto…
Como o mecanismo era altamente misterioso para os comuns dos mortais, e como a sua pouca fiabilidade exigia manutenção constante, “quando se comprava um relógio, comprava-se com ele o relojoeiro”, que além do salário, recebia geralmente uma determinada quantidade anual em azeite. Para que o mecanismo pudesse ser oleado.
Eram tempos conturbados estes em Portugal, com a guerra quase constante com Castela, com o alfaiate Fernão Vasques a liderar a revolta popular contra o casamento de Fernando com Leonor Teles. E com a Peste Negra a aparecer: a pulga vinda das estepes da Ásia central, portadora da bactéria yersinia pestis matou, a partir de 1347, e em surtos sucessivos de apenas umas décadas, uma quarta parte da população europeia. Portugal não escapou à pandemia.
O século XV foi acentuando a importância do tempo público, marcado primeiro a partir de relógios de torre de mosteiros, com mecanismos que accionavam os sinos, passando a pouco e pouco a estar instalados nas torres municipais.
Em Portugal, por essa altura, um frade leigo, João da Comenda, sabia ler e escrever. E fazia “bons” relógios, graças aos seus conhecimentos de serralheiro.
“No ano do Senhor de 1478, sendo vigário provincial frei João da Póvoa: requereu-lhe um frade leigo que se chamava Frei João da Comenda, natural de São Pedro do Sul, morador nessa altura em Orgens, perto de Viseu, licença para construir um Relógio de Rodas de Ferro. Porque o engenho lhe dizia que o poderia fazer bem [...] E o dito vigário lhe deu esta licença, mandando ao guardião de São Francisco de Orgens que lhe fizesse a despesa do ferro e pagasse o ferreiro que lhe forjasse as rodas e o artifício, se não que ele compassaria e limaria e pregaria e faria tudo o que lhe cumpria, e que fizesse logo um relógio para o dito mosteiro. À qual cousa aviada meteu mão à obra com despesa de 500 reis”.
Esta informação está contida numa obra quinhentista existente no Arquivo Distrital do Porto, escrito por Frei João da Póvoa, um dos principais cronistas das ordens religiosas em Portugal e confessor de D. João II.
Segundo alguns investigadores, João da Comenda terá sido o primeiro relojoeiro português. É pelo menos o primeiro referenciado nas fontes até agora encontradas.
Quem seria Frei João da Comenda, franciscano, irmão leigo, que por seu engenho fez este e vários relógios de rodas para outras tantas torres de Portugal? Onde terá ele aprendido a arte de calcular diâmetros de rodas, número de dentes, sistemas de pesos e contrapesos? Ninguém sabe. Mas, sendo um franciscano, coloca-se a hipótese de ele ter viajado por França, ou especialmente por Itália (na altura o país tecnologicamente mais avançado em relojoaria grossa), pois os membros desta ordem eram conhecidos por fazerem grandes périplos ao longo da vida.
O cronista João da Póvoa adianta que o primeiro e “bom” relógio foi feito em três meses. A este seguiram-se encomendas de mosteiros de todo o país, chegando tão ao sul como Setúbal, para um total de 12 relógios de torre. E acrescenta mais alguns pormenores sobre a personagem: “sabe ler e escrever, é um frade leigo, homem fiel e honesto e bem devoto, e de bom exemplo: filho de um Fernão Vaz, que teve carrego de uma comenda da ordem dos Cavaleiros de Rodes [...) E é de idade de 35 anos quase. E é subtil em outras cousas...”
O mesmo cronista refere um frei João da Montanha, serralheiro, que tomou hábito em Alenquer, em 1475. Era “muito subtil em todo o mundo em fazer todo o labor de lima” e subentende-se que terá feito também obra relojoeira, a chamada “horologia ferrea”.
Um tal D. João de Abreu ou D. João Gomes de Abreu, devoto do convento, e cujas armas ainda hoje estão no arco da capela-mor, tinha mandado fazer em 1476 a torre para o relógio. Como era usual nessa altura, a torre tinha apenas abertura para os sinos, um profundo vão para deixar passar a corda e os pesos do relógio (quanto mais extensa a corda, maior a autonomia), mas não dispunha de mostradores. É que os relógios da altura eram apenas de “tanger”, faziam soar sinos, e eram muito inexactos. Um mostrador, mesmo que apenas com o ponteiro das horas, ainda estava para chegar.
Segundo o investigador Rolando van Zeller, e referindo-se a João da Comenda, “o conhecimento que o bom do frade tinha, da maneira como se construíam relógios, devia resultar da convivência com outros serralheiros leigos ou monges, pois não se admite que subitamente lhe viesse à ideia de fabricar um, perdido como estava nos claustros do Mosteiro de Orgens”.
Van Zeller, refere que João da Comenda era do Convento da Conceição de Leça da Palmeira, vizinho do de S. Salvador de Bouças, este último pertencente à ordem de Cister, o que poderia explicar alguma coisa. Essa ordem “sempre procurou juntar a cristianização que operava em Portugal ao desenvolvimento de actividades industriais úteis para o progresso do país”. E acrescenta: “Se examinarmos com atenção o mapa da nossa terra, verificamos que é perto dos conventos principais da ordem de Cister que a arte de relojoaria se desenvolveu na província, e de que ainda restavam vestígios no final do século XVIII.”
Cister instalou-se em Portugal por volta de 1144, a partir provavelmente de São João de Tarouca, espalhando-se depois um pouco por todo o país. Van Zeller aventa a hipótese dos monges desta ordem terem recebido os ensinamentos sobre trabalhar o ferro com os monges de Alcobaça, que se preocuparam em instalarem fundições e serralharias nos seus conventos ou vizinhanças.
Contrariando a primazia aventada por van Zeller, outro investigador, Jorge Custódio, faz notar que “a maioria das máquinas montadas no século XV foram encomendadas por conventos franciscanos e jerónimos e não tanto por beneditinos ou cistercenses”.
Toda a interpretação que se seguiu ao escrito de van Zeller partiu da premissa errada cistercense. Como Orgens é franciscano (fundado em 1410 por um frade galego, Pedro de Alemancos), parece que a questão fica mais ou menos resolvida.
Aquando da nacionalização dos bens das ordens religiosas, em 1834, Orgens também foi vendido. Do inventário da altura regista-se, na torre: um relógio com a sua competente sineta, avaliado em 24 mil réis; um sino grande, avaliado em 30 mil réis; uma sineta pertencente ao Refeitório, avaliada em 600 réis; outra sineta, pertencente à Portaria, avaliada em 6.800 réis e uma bandeira de ferro da Torre, avaliada em 300 réis.
Dos sinos, não há hoje sinal. Da bandeira de ferro, certamente um cata-vento, houve igual sumiço. Quanto ao relógio, que teoricamente seria ainda o feito em 1478 por frei João da Comenda, dizia-nos em Novembro de 2000 o historiador local Alexandre Alves: “A preciosa relíquia, inteiramente de ferro […] encontra-se actualmente devidamente preservada e encaixotada”. O historiador baseava-se numa notícia aparecida sete anos antes, no Jornal da Beira.
Fomos a Orgens em 2002. E o que lá encontrámos metia dó. Se o relógio esteve alguma vez encaixotado, foi por pouco tempo. Nessa altura, jazia a apodrecer à chuva e ao vento, entre cacos, dejectos de pombo e uns madeiros podres, na tal torre sineira.
A gaiola deste relógio cavilhado (porque se usavam cavilhas em vez de pregos) ainda deve ser a original, mas muitas das peças terão sido substituídas ao longo dos quase 525 anos que esteve a funcionar.
Uma equipa de técnicos do IPPAR estivera pouco antes no local, inventariando a capela para classificação. Tivemos acesso ao relatório que daí resultou. Fala-se de tudo, menos do relógio (certamente por ignorância de que lá se encontra uma peça importantíssima da arqueologia industrial portuguesa). Desligado apenas no início dos anos 90 do séc. XX, o relógio de Orgens é hoje substituído no cantar das horas por um “Reguladora” de pêndula, electrificado, e por altifalantes.
Alertada por nós para a situação do relógio de frei João da Comenda, a Junta de Freguesia de Orgens, por sugestão nossa, retirou a peça da torre, encarregou um relojoeiro local de a limpar e restaurar, colocando-a depois numa sala, junto à sacristia, onde agora pode ser admirada.
A pista da semana é pois Orgens e sua capela franciscana, onde está o mais antigo relógio de torre português que se conhece.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003)
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