Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Meditações - a banalidade das horas

Soam - devem ser oito as que não conto - badaladas de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à continuidade do tempo fronteira no abstracto, limite no desconhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contacto com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista.

Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida.

Sim, a vida a que eu também pertenço, e que também me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de Deus, ou de si mesma, que não contém mistério nem verdade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior.

Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio "corre", que um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é sorridente (pelo sol que lhe está fora).

Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranha conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

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