Caviar e champanhe da Crimeia
Depois de alguns anos a viver em Beijing, na hora do regresso a Portugal, no final de 1989, a minha mulher e eu decidimos que seria “a viagem da vida”.
Partimos a 30 de Outubro. Nesse tempo, havia três comboios – o mongol, o russo e o chinês – e recomendaram-nos o chinês como sendo o melhor. Em primeira classe, com um apartamento com cama para duas pessoas e casa de banho privativa, que nunca mudou, até Moscovo.
O que mudava, além da máquina, era a carruagem-restaurante. Depois de um dia “à chinesa”, seguiu-se a entrada na Mongólia e, logo, um dia “à mongol”. Foi o pior de todos. Chegámos à fronteira com a União Soviética na madrugada do terceiro dia e entroncámos aí com o Trans-Siberiano. A carruagem-restaurante russa recebeu-nos nesse dia para o pequeno-almoço – só havia pão e iogurte (de excelente qualidade), servidos por uma russa enorme, com ar de sargento do KGB…
O micro-cosmos no Trans-Siberiano é muito peculiar – gente de todas as nações e de todas as idades, com todos os motivos para estarem ali.
O estudante norte-americano ou australiano no tradicional ano sabático, antes de entrar para a Universidade, a fazer apontamentos no seu Moleskine; a velha inglesa, seca e alta, de chapéu, que viaja sozinha, apesar dos seus 80 anos, e que não dispensa a água quente para o chá; um cantor de ópera francês, em viagem de núpcias com o seu companheiro…
Desde o primeiro dia fizemos um contacto mais estreito com estas personagens – passámos a tomar, na semana que nos levou até Moscovo, as quatro refeições juntos.
Tivemos muita sorte. O cantor de ópera começou a flirtar a russa, esta quebrou o gelo à segunda ou terceira investida, corava de cada vez que dizia “merci, messieur”, numa troca de olhares cúmplices.
Com dólares, passámos a ter acesso a caviar, a manteiga, a carnes frias. Até a champanhe da Crimeia.
Cá fora, a paisagem siberiana de um Inverno “a la Dr. Jivago”, com centenas de quilómetros de neve imaculada pontilhados de meia em meia hora por casas de madeira, isoladas, fumo a sair da chaminé.
Estávamos nas margens do lago Baikal, a maior reserva de água doce do mundo. O Trans-Siberiano levou três dias e três noites a passá-lo. Tomei pela primeira vez contacto com um povo de que nunca tinha ouvido falar, os Buriates.
Chegámos a Moscovo no dia da Revolução de Outubro (que foi em Novembro, dado que os russos se guiavam ainda em 1917 pelo calendário Juliano). Tirámos fotografias junto a carros que transportavam mísseis inter-continentais – não chegávamos a metade da altura do rodado, o chão tremia, os motores não eram desligados, porque podiam não voltar a pegar…
Estávamos na Praça Vermelha aquando do desfile, e quando da multidão foram disparados tiros contra Mikhail Gorbachev, na tribuna. Era o princípio do fim da perestroika, da glaznost e… da União Soviética. Mas isso são contas de outro rosário.
O regresso a Lisboa continuou de comboio – Moscovo-Budapeste; Budapeste-Paris (Expresso do Oriente, mas para Ocidente); Sud-Express até Santa Apolónia. Talvez um dia volte a fazer o Trans-Siberiano, para comparar…
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