Já em A Visita das Fontes, D. Francisco Manuel de Melo vai mais longe nas alegorias usando o tempo e os seus medidores: “O maior desconcerto de um relógio consiste em dar algumas horas a seu tempo, e outras não; porque daquele relógio que de todo anda errado ninguém se confia, e do que talvez acerta se fiam muitos parvos, que depois vão dar consigo e sua conta por aí além”.
Em Carta de Guia de Casados, decreta: “Seja a mulher como a mão do relógio, e o marido seja relógio. Aponte ela, e soe ele. Um mostre, outro resolva; que andando desta maneira temperado o relógio, todos o crêem, todos o têm por oráculo. Não se concerta a si mesmo, mas faz andar aos outros concertados. E ao contrário, se se desconcerta, também aos outros”. A “mão” é o ponteiro (na época, os mostradores ostentavam apenas um, o das horas) e um relógio bem “temperado” é aquele que está certo – o termo vem directamente do azeite que os relojoeiros usavam (e em que eram parcialmente pagos) para olear as engrenagens da peça.
Estes conselhos para a harmonia no lar não se compadecem hoje, nas sociedades ocidentais, com o estatuto de igualdade entre os sexos, mas ainda em Carta de Guia de Casados, D. Francisco Manuel de Melo escreve: “Dias há que me perguntou um fidalgo sisudo, casado de poucos tempos, a que hora seria conveniente se recolhesse à noite para casa. Lembra-me que lhe disse, que essa hora daria o amor, ou ocupação, e não o relógio”.
O relógio mecânico portátil, inventado por volta de 1500 (com a mola helicoidal), passara a ser peça do quotidiano privado entre as classes nobres, já que o povo se continuava a guiar pelo relógio público da torre da igreja ou do município (e ainda mais pelo seu “bater” nos sinos).
D. Francisco Manuel de Melo escreveu um Apólogo Dialogal onde os marcadores do tempo são mesmo os sujeitos principais – trata-se do clássico Relógios Falantes, que merecerá brevemente aqui uma análise mais aprofundada.
*Crónica A Máquina do Tempo, publicada a 18/01/08 no suplemento Casual do Semanário Económico
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