(arquivo Fernando Correia de Oliveira)
Do acervo do Museu Histórico Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, que ardeu quase por completo no início de Setembro, terá desaparecido um conjunto de peças importantes de relojoaria, como cronómetros de marinha oriundos de Portugal, exemplares de bolso Breguet e Patek Philippe ou ainda um que foi de uso pessoal de D. Pedro II.
Reproduzimos aqui o catálogo da exposição "O Tempo não pára", ocorrida em 2000 no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
Em História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003), dedicámos algum espaço aos relógios e instrumentos científicos que a Casa Real e a Corte levaram para o Brasil, aquando das Invasões Francesas. A maioria das peças não regressou e algumas delas estão incluídas entre as que arderam agora no incêndio do Rio de Janeiro.
Extractos:
Decretado o bloqueio continental a Inglaterra, Portugal não acede às pressões francesas. E dá-se a primeira invasão (1807-1808), comandada por Junot. A família real foge para o Brasil. Em 1809 ocorre a segunda invasão, comandada por Soult. Em 1810 ocorre a terceira e última invasão, liderada por Massena.
É difícil saber ao certo quantas pessoas aportaram ao Rio de Janeiro com o príncipe regente D. João. Talvez o grupo rondasse as dez mil pessoas, que tinham carregado consigo o que podiam levar de mais preciosos: pratas, jóias, louças, roupas, livros, manuscritos, mapas, relógios... Desfiles de carros e danças fizeram parte da celebração do casamento da Princesa da Beira com o Infante de Espanha, em 1810. A Gazeta do Rio de Janeiro descreveu o cortejo, dizendo que os vários grupos sócio-profissionais se ofereceram para contribuir para o esplendor dos festejos. Os negociantes de varejo (retalho) e boticários apresentaram o Carro da América, acompanhado da dança dos índios; os negociantes do ouro e da prata e os relojoeiros, o Carro da China.
A presença da Corte e de estrangeiros que ela atraíra alterou em praticamente todos os aspectos da vida dos “cariocas”. Os “reinóis”, assim se chamava aos que tinham vindo de Lisboa, viviam uma vida muito mais requintada, tinham as casas mais luxuosamente decoradas, vestiam com outro requinte. (95)
Debate-se desde há 200 anos sobre o saque que as tropas francesas terão feito em palácios, mosteiros, igrejas do reino português, mas não existe até hoje um estudo com bases científicas elencando verdadeira e exaustivamente o que foi levado. A figura mais evocada, quanto a pilhagens e desmandos, é a do general Loison (1771-1816), que participou nas três invasões e que actuou sobretudo em Trás-os-Montes. Não tinha um braço e, ainda hoje, a expressão “foi para o maneta”, ouvida desde essa altura, tem um significado claro...
Quanto a relógios, arriscaríamos nós, terão sido mais os que saíram para o Brasil, com a corte, do que os que os franceses terão pilhado. Aliás, os que pertenciam ao futuro D. Pedro I do Brasil, passaram a fazer parte da colecção do novo reino e ainda lá se encontram, em museus (A colecção do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, abarca relógios a partir do século XVIII, muitos deles provenientes da Família Real portuguesa, e depois brasileira, como um cronómetro de marinha, com reserva de marcha de 54 horas, ou um cronómetro de bolso, que pertenceram a D. Pedro II e que estiveram patentes na exposição “O Tempo não Pára”, em 2000, no Rio de Janeiro. Ou ainda um relógio de parede, que pertenceu ao vapor “Alagoas”, no qual a família imperial deixou o Brasil, após a proclamação da República.
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O Observatório Real de Marinha, fundado em 1798, é um desses casos. Destinava-se aos exercícios práticos dos futuros guardas-marinhas em astronomia e navegação. Primeiro instalado no Arsenal da Marinha, mais tarde adjacente ao Colégio dos Nobres, depois à Escola Politécnica, o Observatório voltaria a instalar-se a partir de 1847 no Arsenal (entre o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré), onde fica até à sua extinção, em 1874. (96)
O observatório possuía os melhores instrumentos que havia na época da sua fundação. Prosperou e funcionou regularmente até 1807, data em que se desorganizou inteiramente em Lisboa a companhia dos guardas-marinhas, pela retirada da família real para o Brasil. Os instrumentos, livros, modelos, máquinas, cartas e planos da instituição seguiram, de aviso, com a família real, e nunca mais voltaram.
Para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal, há, porém, um aspecto da actividade do Observatório Real de Marinha que não pode passar em claro: o pioneirismo na introdução dos cronómetros no país. Qual teria sido o primeiro cronómetro utilizado na Marinha Portuguesa? A esta pergunta responde o especialista, Comandante Estácio dos Reis: em Janeiro de 1789 regista-se nos Escritos Marítimos e Académicos “um relógio ou cronómetro”. (96) Infelizmente, não há menção ao nome do fabricante ou à sua proveniência. Depois, há uma referência, não datada, mas anterior a 1800, a um cronómetro de autoria de John Brockbank, que viveu entre 1747 e 1800 e teve oficina em Londres, dedicando-se ao fabrico de relógios. Dessas duas peças, não há hoje quaisquer outras pistas. Desapareceram.
Quanto ao primeiro cronómetro verdadeiramente documentado, trata-se do nº 66, de John Arnold. Este instrumento aparece pela primeira vez mencionado em Agosto de 1800. No ano seguinte, há referência a um outro cronómetro Arnold, o 82.
Quanto aos Arnold nº 66, terá ido parar ao Brasil. O seu “irmão” nº 82, entregue a Haas para reparação, terá ardido num incêndio que entretanto ocorreu na sua oficina.
John Arnold (1736-1799) é um dos mais famosos relojoeiros ingleses. Além de cronómetros, fez relógios de repetição para Jorge III, inventou um novo sistema balanço-espiral e um escape de “detent”.
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