(Melancolia, de Albrech Dürer)
Há dez anos, em Junho de 2005, publicávamos na revista Internacional Horas e Relógios mais um artigo de análise, na série Enigmas do tempo.
Os novos ritmos
“O tempo é uma coisa que não se consegue achar, mas cujas existência não gera quaisquer dúvidas. É uma coisa de que toda a gente fala, mas que ninguém alguma vez viu. Para o digerir, é preciso despi-lo dos seus efeitos mais sensíveis: a duração, a memória, o movimento, o devir, a velocidade, a repetição… Porque os relógios não medem forçosamente o tempo. Porque o tempo está sempre presente, embora se diga que ele se esvai”. Mais uma citação sobre o Tempo, desta vez da filósofa francesa contemporânea Etienne Klein.
Ela e outros pensadores, multi-disciplinares, estiveram recentemente reunidos durante três dias, em Besançon, participando na primeira Bienal Internacional do Tempo. “Os tempos mudam e nós não temos sempre consciência disso”, diz-nos Luc Gwiazdzinski, geógrafo e Director da Casa do Tempo e da Mobilidade de Belfort-Montbéliard. “Em menos de um século, o tempo de trabalho foi diminuído para metade, a esperança de vida aumentou 60 por cento, o tempo livre multiplicou-se por 5, representando 15 anos de vida de um ser humano, o tempo de sono passou de 9 horas em 1900 para as 7 horas actuais”, diz ele, reportando-se a dados recolhidos em França, mas que não deverão andar muito longe dos que existem em Portugal, ou no Ocidente, em geral.
“A revolução silenciosa do nosso emprego do tempo acelera-se, os ritmos (de jornada de trabalho, semanais, mensais…) das nossas vidas e das nossas cidades mudam sob o efeito de vários fenómenos: a individualização dos comportamentos e o abandono progressivo dos grandes ritmos industriais e terciários que cadenciavam a sociedade; a generalização da sociedade urbana; a terciarização da economia e dos empregos; a diminuição do tempo de trabalho; a construção da sociedade em rede, à escala planetária, o que implica uma sincronização progressiva das actividades e o aparecimento do tempo global, as tecnologias da informação e de comunicação que dão a ilusão da ubiquidade a indivíduos que querem sempre tudo, de imediato, por todo o lado e sem esforço”, afirma o geógrafo, que nos aponta os perigos da desigualdade social face ao Tempo. “Tudo serve para andar mais depressa. Mais globalmente, a ditadura da urgência, a hipertrofia do presente e a subvalorizaçã do passado que caracterizam a nossa sociedade são acompanhados de uma incapacidade de pensar o futuro e de nos projectarmos para construir esse futuro”.
Devido a essas evoluções, a questão do Tempo deixou há muito de ser uma questão puramente fisolófica. O Tempo, ou antes, a sua gestão, é cada vez mais encarado como um problema concreto que alimenta as conversas do dia-a-dia. Apesar de o tempo de trabalho estar a diminuir (será que, nos últimos anos, de globalização, até mesmo no Ocidente, não terá havido uma regressão?), parece sempre que temos cada vez menos tempo disponível.
Ora, o funcionamento tradicional das cidades, dos territórios e das organizações parece cada vez menos adaptado a estas evoluções. Unificados pela informação, disponível em rede em tempo real, vivemos as nossas relações pessoais cada vez mais dessincronizadas e com temporalidades deslocadas. Vivemos vias inteiras nos mesmos prédios sem falar com ou conhecer os vizinhos, embora tenhamos, em conjunto, os mesmos ritmos de tempo – ida e vinda dos empregos, horas de lazer, etc.
Ao “tempo das igrejas” sucedeu-se “o tempo das fábricas”. Mas a este ter-se-á sucedido agora um tempo fragmentado, embora global. As desigualdades, por força da competição, aparecem: territórios que melhor se adaptam aos novos ritmos, povoam-se de imigrantes, enquanto outros, que continuam no tempo rural ou mesmo fabril, se despovoam, pois o seu tempo já não serve o consumidor. Estas mutações interpelam-nos e levam-nos até à esquizofrenia, pensa Luc Gwiazdzinski. “O consumidor exige aproveitar uma cidade aberta em contínuo (24 sobre 24 horas, sete dias por semana) e o assalariado gostaria e evitar trabalhar em horários atípicos, ao domingo ou à noite”. Uma contradição com que nos deparamos todos os dias. E que dizer dos turistas, cada vez mais acelerados, mesmo como consumidores, aderentes a programas de fim-de-semana, que inundam em voos e baixo custo cidades que dantes não estavam nos mapas, e que querem “tudo aberto” para os servir. Em muitos casos, os movimentos pendulares das populações desvaneceram-se ou deixaram mesmo de existir, passando a não haver “tempo de acalmia” e “hora de ponta”. Todos estamos interessados em fazer tudo, a todas as horas, em todo o lado.
O funcionamento da cidade e dos territórios está cada vez menos adaptado a estas evoluções. A procura explode e diversifica-se, enquanto a oferta urbana, os horários administrativos, o comércio, os serviços (bibliotecas, museus, centros sócio-culturais, creches…) ou os transportes permanecem ainda em larga medida organizados em função dos ritmos tradicionais. Torna-se assim cada vez mais evidente, chocante mesmo para os “apressados” largas zonas urbanas, grandes equipamentos, sub-aproveitados a partir das 17 horas. Como rentabilizar ao máximo tudo isto?
Face a esta fragmentação temporal do nosso quotidiano, e ao stress que isso provoca, alguns de nós decidem fazer uma pausa, para pensar, digerir ritmos que se nos impõem. E essa reacção dá fenómenos como o do slow-food, em contraposição à fast-food; à popularidade da caminhada como actividade de lazer – a marcha permite medir o espaço e o tempo ao ritmo de cada um. Redescobrem-se os tempos longos, um luxo, combatendo-se como se pode a ditadura do presente apressado, da urgência.
Mas, como caminham as coisas – com vastas zonas do mundo (a China à cabeça) a comandarem o ritmo, a produção, a competitividade – talvez o até agora rico Ocidente se venha a tornar no futuro numa espécie de “reserva de índios” do Tempo. Perdendo a batalha da produção – imbatível preço de mão-de-obra, horários selváticos – reinventaremos um Tempo de Cultura, de Civilização, de Sonho? Impossível fazer isso sem recursos. Nesta quadratura do círculo, onde o tempo é cada vez mais dinheiro, não há saída que se vislumbre.
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