O homem que reinventou as horas
A suite do hotel de charme é imensa, a secretária quase que ocupa toda a largura de uma janela panorâmica que, cá de cima, domina a totalidade do lago de Lugano. Mas este homem a entrar nos 80 anos, de charuto na boca e três relógios em cada pulso, camisa aberta no peito, é das tais personagens maiores do que a própria vida e a sua energia transborda para além das fronteiras físicas do seu avantajado corpo.
É num contra-luz ensaiado, ao fim de uma tarde esplendorosa, destacando a silhueta de barba grisalha e rigorosamente aparada numa paisagem de bilhete-postal, que Nicolas Haiek concede meia hora do seu tempo, numa longa lista de compromissos que apenas terminará já de madrugada, quando o fogo de artifício assinalar o fim de mais um gigantesco evento Swatch, assinalando um terço de bilião de peças produzidas.
PÚBLICA – A Swatch tem uma história de mais de 20 anos. Quando começou, imaginava que iria vender 333 milhões de relógios?
Nicolas Hayek – Não, não e não! Quando grande parte da indústria relojoeira suíça me foi confiada, para que eu tentasse estabiliza-la, salva-la, comecei a actuar ainda sem me preocupar com a Alta Relojoaria. Nessa altura, em 1980, era preciso conservar as fábricas, com pessoas lá dentro e os seus milhares de empregos. Se elas não produzissem em grande quantidade, iriam fechar. E o nosso objectivo, com a Swatch, era fazer um. Dois, três milhões de peças. O projecto começa a ser pensado em 1982, mas arranca verdadeiramente em 1983. No primeiro ano de actividade produzimos 1,5 milhões e ficámos muito orgulhosos. Muito rapidamente chegámos aos 3 milhões, depois aos cinco. Ficámos então certos de que aquele tinha sido o caminho certo, mas nunca na vida tinha pensado que haveríamos de chegar aos 20 a 25 milhões de relógios por ano e a um volume de negócios da ordem dos mil milhões de francos suíços. Foi a apoteose. Mas, a partir de determinada altura, toda a gente começou a copiar-nos – as marcas de moda passaram a fazer produção em massa em países como a China, relógios que custavam 5 ou 10 francos suíços, passaram a introduzir a Arte neles, tudo coisas que nós tínhamos iniciado. De qualquer modo, nunca na história da relojoaria uma marca vendeu tal número de peças como a Swatch.
PÚBLICA – Como é que se vê a si próprio, no seio da indústria relojoeira mundial?
Nicolas Hayek – Acabou de sair um livro em França dedicado às 50 coisas que nunca teriam existido se não tivesse havido alguém por detrás delas. Leonardo da Vinci, Louis Pasteur, Joan Sebastian Bach, Eiffel, se eles não tivessem existido, o mundo não teria hoje uma série de belas e úteis coisas. E eu, modestamente, se não tivesse existido, não teria havido o conceito Swatch. Nessa obra diz-se que eu alterei a maneira como se passou a olhar para um relógio – de instrumento de medida do tempo a adereço, acessório de moda. Pode-se comprar cinco, seis, sete Swatch, mas há 20 anos comprava-se o chamado “relógio para toda a vida”. O segredo Swatch está na criatividade. Todos nascemos criativos e temos total liberdade de criação até mais ou menos aos seis anos. Depois, começam os condicionalismos sociais, na família, na escola, no emprego, e esquecemos esse potencial de criatividade que está em cada um de nós. A sociedade rouba-nos a fantasia, e eu tê-la-ei devolvido nas peças que fazemos. E não só nos Swatch. Em Alta Relojoaria, por exemplo, estamos a trabalhar com grande entusiasmo uma marca lendária como a Breguet. Dentro de três ou quatro anos, sem exagero, esta marca fará um milhão de francos suíços de volume de negócios. E dentro de oito anos, será a mais rentável – o seu volume de negócios será superior ao do da Rolex e da Omega. O crescimento Swatch também tem sido muito superior à média do sector na Suíça. Somos os maiores, como grupo, mas vamos ser ainda mais.
PÚBLICA – Quando é que a Swatch comemorará os 666 milhões de relógios produzidos?
Nicolas Hayek – Isso é mesmo pergunta de um mediterrânico. Digo isto como um cumprimento, pois eu sou também um mediterrânico. Houve muita gente que me disse que eu deveria ter feito alguma coisa para assinalar os 20 anos da Swatch, em 2003, que eu já não ligava grande coisa à marca e estava virado para outras do grupo. Eu dizia-lhes que não via muito bem o que fazer com uma história de 20 anos, quando a Breguet, por exemplo, tem 250, a Longines 120, a Omega 100… E não fizemos nada. Até quando decidi comemorar os 333 milhões, não o anunciei, porque os jornalistas iriam perguntar-me todos os dias quantos relógios faltavam ainda… E decidimos fazer este evento, o maior em muitos anos, envolvendo toda a cidade de Lugano, os artistas do Blue Man Group e milhares de convidados vindos de todo o mundo. O próximo marco? Não lhe vou dizer…
PÚBLICO – Esta nova linha, Jelly in Jelly, parece ser o retorno à filosofia Swatch primitiva – a utilização do plástico de forma assumida.
Nicolas Hayek – O tamanho de um relógio é importante quando queremos que ele seja veículo de expressão da Arte, que dê espaço à cor e ao design. Quando lancei a Swatch, desafiei os mais importantes artistas e criativos contemporâneos – de Jean-Michel Jarre a Spike Lee, passando por Pedro Almodôvar ou Vivienne Westwood. Depois, vieram as linhas desportivas, ou com caixa em aço. Na verdade, regressamos nesta linha aos tamanhos maiores e ao plástico. A Jelly in Jelly vem juntar-se a linhas fantásticas que já temos – as pessoas esquecem-se de que a Swatch mantém em produção o relógio de pulso em plástico mais fino do mundo – o Skin. Até hoje, ninguém o conseguiu copiar, porque ele é tecnicamente muito avançado.
PÚBLICA – Toda a indústria relojoeira se debate com um problema – a juventude já não usa tanto o relógio de pulso, dado que tem substitutos para esse objecto no telemóvel, na consola de jogos, no computador. Como pensa ultrapassar a questão?
Nicolas Hayek – Mas isso foi uma das coisas que eu previ! Quando lancei a Swatch tinha claro que não ia fornecer ao mercado um instrumento de medição do tempo. Na Suíça, então, você não dá um passo na rua sem que lhe apareça diante do nariz um relógio público… No Grupo Swatch temos que prever o que se vai passar nos próximos 15 ou 20 anos. Em Alta Relojoaria, não estou a vender um relógio, estou a acenar com uma jóia, em ouro ou platina, cravejada de diamantes, que tem no interior um mecanismo que é outra preciosidade. E que o comprador sabe estar a fazer um investimento, pois daqui a 50 anos essa peça valerá o dobro. Trata-se de um investimento, como se estivesse a comprar um quadro. Na Swatch, houve um momento em que também era um investimento, dada a loucura na procura. Alargámos o conceito do relógio a uma linha de joalharia, que tem tido enorme sucesso.
Quem compra Swatch sabe que não precisa de um instrumento de medição do tempo no pulso. Está a comprar um adereço.
PÚBLICA – Isso entra em contradição com a filosofia da Alta Relojoaria suíça, que nos últimos anos tem procurado novos materiais, aperfeiçoamento do isocronismo dos mecanismos…
Nicolas Hayek – Não, não! A Suíça, quando vende relógios topo de gama, vende o sonho, a arte, a beleza. Como se estivesse a vender Alta-costura. Se “apenas” vendesse relógios, já teria desaparecido, porque os japoneses, os chineses ou os russos fabricam milhões e milhões de peças de quartzo que medem o tempo de forma quase perfeita.
PÚBLICA – Estamos então perante a procura de estatuto quando compramos um relógio mecânico suíço?
Nicolas Hayek – Não falaria de estatuto, embora haja alguns relógios que o dêem a quem os possui. Trata-se antes da cultura europeia – a Arte, combinada com a Tecnologia, e isso é aspiracional, é admirado fora da Europa.
PÚBLICA – Então, a globalização não é uma ameaça para a indústria relojoeira suíça?
Nicolas Hayek – Depende de quem dirigir o sector. Se forem imbecis, do tipo directores de agências de publicidade, com as suas estratégias imediatas, ela morrerá. Olhe para trás de mim – isto é a Suíça, inimitável [a baía de Lugano, com um lago de águas pristinas, rodeado de montanhas verde-escuro], com a sua qualidade de vida. A China terá os seus argumentos, mas não pode copiar o que temos aqui.
PÚBLICA – Está, então, optimista.
Nicolas Haiek – Estou a investir biliões! Estamos a construir novas fábricas. Vamos inaugurar um edifício de dezassete andares no bairro de Ginza, em Tóquio, com boutiques das marcas do Grupo Swatch divididas por andares. Estamos a comprar edifícios nos centros históricos em França, na Suíça, na Rússia. Se me encontrar uma boa localização em Lisboa, diga-me!
*Entrevista que Estação Cronográfica fez a a Nicolas Hayek, em Lugano, em 2006, publicada na revista PÚBLICA
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