UM MILHÃO DE ANOS, UMA MIGALHA NO TEMPO DA TERRA
No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos
nos mostradores dos nossos
relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e
milénios, usando, para tal,
pergaminhos e outros documentos com significado cronológico.
Na Pré-história faz-se outro
tanto com base em objectos vários e fala-se de milhares e,
em muitos casos, de milhões de
anos.
A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado
geológico e ainda mais se recuarmos
aos começos do Sistema Solar e do Universo, onde os milhares
de milhões de anos marcam as
etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa
“eternidade”. Mil milhões de
anos a mais ou a menos nos primórdios da matéria de que
somos feitos representam o mesmo
grau de imprecisão do milhão de anos a mais ou a menos no
tempo dos dinossáurios, do mais
ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia
- menos dia, mais minuto -
menos minuto, no tempo que estamos a viver. No decurso da
nossa existência revemos, sem
dificuldade, o nosso tempo, o dos avós e até o da História,
mas é com esforço que abarcamos
ou evocamos a vastidão do tempo geológico, que só encontra
paralelo na imensidão das
distâncias astronómicas.
Como na História, também a Geologia necessita de documentos
e esses temo-los nas rochas,
quer sejam os fósseis, quer alguns dos seus minerais
contendo isótopos radioactivos. Entre as
variáveis susceptíveis de serem correlacionadas com o tempo,
apenas duas – a evolução
biológica e a desintegração radioactiva natural – têm lugar
de forma irreversível, uma vez que,
qualquer destes dois processos se desenvolve apenas num
sentido. Porque de uma história se
trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares, sendo aí
encarado sob duas perspectivas
distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.
Na perspectiva de tempo relativo procura-se saber se um dado
evento ocorreu antes, depois
ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior,
posterior ou contemporâneo. De há
muito que as relações geométricas, observáveis no terreno,
entre os diversos corpos rochosos
aflorantes, têm sido utilizadas no estabelecimento da
ordenação cronológica dos
acontecimentos geológicos de que são testemunhos. Uma tal
ordenação é particularmente
evidente nas rochas estratificadas, nas quais os estratos ou
camadas se sucedem numa
imediata sugestão de sequência no tempo. Tal ordenação é a
mesma patenteada numa pilha
de papéis na secretária de um burocrata. A relação entre o
empilhamento dos estratos
rochosos e o curso do tempo chamou a atenção do dinamarquês
Nicolau Steno, no século XVII,
constituindo uma das primeiras ideias fundamentais da
geologia, conhecida por Princípio da
Sobreposição, segundo o qual, numa sequência estratificada
não deformada, qualquer camada
é mais moderna do que as que lhe ficam por baixo e mais
antiga do que as que se lhe
sobrepõem. Evidente à luz dos conhecimentos actuais, este
princípio representa um avanço
notável para a época em que foi enunciado. Nele se
relacionam, pela primeira vez, as rochas
estratificadas com o processo de deposição progressiva dos
sedimentos que as integram, a que
corresponde uma ideia de sucessão no tempo.
Como marcos cronológicos, também os fósseis, escalonados na
cadeia evolutiva da
biodiversidade, nos permitem uma abordagem do tempo
relativo. No que se refere à evolução
biológica, desde há muito que se constatou, através dos
fósseis, que as espécies animais e
vegetais do passado foram surgindo ao longo da história da
Terra, se mantiveram durante
períodos mais ou menos longos, acabando, quase sempre, por
se extinguir, não voltando a
aparecer.
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro a reconhecer os
fósseis como testemunhos de
outras vidas em épocas passadas. Até então e mesmo depois
dele, os fósseis eram vistos como
caprichos da natureza. Só no século XVIII se estabeleceu
definitivamente a sua interpretação
como restos de seres vivos do passado.
Os fósseis representam, assim, elos de uma cadeia de
complexidade crescente. Neste
entendimento, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos,
sabemos, por exemplo, que as
camadas de rochas sedimentares com fósseis de trilobites são
mais antigas (Paleozóico) do
que as que conservam ossadas de dinossáurios (Mesozóico) e
que estas, por sua vez, são
anteriores às que serviram de jazida aos mamutes ou aos
australopitecos (Cenozóico), nossos
avós. Este raciocínio, aqui exemplificado para grandes
intervalos de tempo, ao nível das eras
geológicas, faz-se correntemente para intervalos mais
curtos, como são os representados
pelos sistemas (períodos), séries (épocas), andares
(idades), subandares e outros ainda mais
reduzidos. O mesmo tipo de conhecimentos habilita-nos a
considerar geologicamente
contemporâneas todas as rochas que, em quaisquer lugares,
contenham os mesmos fósseis.
Aplicável a muitíssimas espécies fósseis conhecidas, estes
raciocínios têm vindo, a partir do
século XIX, a permitir escalonar no tempo o conjunto das
sequências de rochas sedimentares,
onde se encontra o essencial do registo fóssil de toda a
biodiversidade que nos antecedeu. E
também em rochas metamórficas, num grau de intensidade
relativamente baixo
(anquimetamorfismo), como é o das séries paleozóicas de
Norte a Sul de Portugal.
Na outra perspectiva, a do tempo absoluto, passível de
quantificação, o tempo tem o sentido
de duração e, assim, refere o intervalo que medeia dois
acontecimentos ou o que decorreu
entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade.
Uma das vias mais frutuosas na
medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da
radioactividade por Henri
Becquerel, em 1896, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a
constituição e funcionamento
do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie
e muitos outros físicos. Tais
avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram
sabiamente aproveitados por
vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês
Arthur Holmes, que “só não foi prémio
Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas
contempladas no respectivo
regulamento”.
Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o
mundo, as determinações de idade
isotópica (baseada no comportamento natural de alguns
isótopos radioactivos) de alguns
minerais permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia
absoluta, as grandes etapas da
história da Terra a da Vida, muitas delas, de há muito
definidas em termos de idade relativa.
Sabemos hoje que o planeta Terra se formou há
aproximadamente 4540 Ma, que os
dinossáurios não avianos (as aves, hoje aceites como
descendentes de um certo grupo de
dinossáurios, são, assim, dinossáurios avianos) fizeram a
sua aparição há cerca de 235 Ma e
que desapareceram, de vez, há 65 Ma. Sabemos que o granito
das Beiras tem à volta de 300 e
que o de Sintra, apenas 85 Ma. E a lista de rochas e de
acontecimentos de que conhecemos a
idade absoluta é imensa e não pára de crescer.
O trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao
longo dos séculos XIX e XX,
permitiu, como se disse, um aceitável escalonamento no
tempo, baseado nos fósseis, e o
estabelecimento de eras, períodos, épocas e outras divisões
temporais mais finas.
Posteriormente, mercê dos avanços no conhecimento geológico
e dos progressos da física dos
isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma
escala cronostratigráfica na qual,
com pormenor sempre melhorado, as divisões temporais,
baseadas nos fósseis, estão
agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias,
cotados por valores numéricos
referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o
milhão de anos, nada menos do
que dez mil séculos, uma enormidade no horizonte temporal
das nossas vidas, mas uma
migalha no tempo da Terra.
Notas:
A maioria das pessoas nunca mentalizou a ideia de milhão,
mas pode fazê-lo nos dois
exemplos abaixo.
(1) Um caminho que nos conduz à referida ideia, é a de
darmos uma badalada por segundo no
sino de uma qualquer igreja. Então, para completarmos 1 000
000 de badaladas, teríamos de
estar permanentemente activos, durante 11 dias, 13 horas, 46
minutos e 40 segundos, sem
comer, nem dormir, nem descansar.
(2) Para, numa balança de precisão, equilibrarmos um grama
de peso, temos de lá colocar 62
grãos de arroz. Uma regra de três simples diz-nos
imediatamente que cem grãos pesam 1,61 g,
que mil grãos pesam à volta de 1,6 kg e que um milhão deles
perfaz cerca de 16 kg. Dito de
outra maneira, precisaríamos de 16 sacos como os que se
vendem no mercado, para guardar 1
000 000 de grãos desse arroz e ainda ficam de fora 100 g
deste cereal.
António Galopim de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário