Quando a vó morreu, sendo eu a neta mais velha, herdei dela o relógio cuco. Contava a minha
avó que o vô ganhara de seus pais, que por sua vez ganharam
de presente de casamento,
ainda quando viviam na Alemanha, nem se sabe há quanto
tempo!
O cuco já não abre mais a janelinha nem canta mais. Eu não quero ouvir cuco nenhum
cantando nem quero levá-lo para consertar. O que me importa
é que ainda marca as horas
com seu tic tac barulhento, com o qual já me acostumei.
Assim que acordo e abro os olhos
vejo o relógio na parede.
Tic tac tic tac…e lá vou eu correndo, sempre atrasada, sempre com um compromisso urgente,
sempre com algo importante por fazer, pessoas por encontrar,
reuniões, visitas, uma agitação
constante. Telefone que toca, celular que me chama, zap zap
aos montões e lá vou eu para
mais um dia de luta – quanta luta, meu deus!
No entanto, hoje é domingo. Chove muito e o dia cinzento e frio não me deixa sair da cama.
Nenhum compromisso, nenhuma visita, nada. Olho o relógio.
Nove horas e cinco minutos.
Espreguiço-me gostosamente, vou ao banheiro, tomo água, abro a cortina. Poucos carros,
pouca gente, pouco barulho, nenhuma pressa, fecho a cortina
e volto para cama. O cuco
alemão está lá tic tac tic tac.
Não quero ler. Não quero ver filmes na TV. Não quero abrir o computador. Não ando curiosa
para saber quem curtiu o que publiquei. Não me interessa
quem já postou mensagens, fotos,
vídeos, aquela mesma chatice sem fim. Quero um chá. Sim. Uma
caneca bem grande. Com
açúcar mascavo. Chai indiano, com leite. Yes!
Com o chá saindo fumacinha volto para cama. O relógio marca nove horas e quarenta. No
criado-mudo procuro um CD. Uma música bem calma. Relaxante.
Vivaldi. Sim, pode ser. Tenho
inúmeros. Gosto imensamente de violino. Adoro Vivaldi. Nada
de Quatro Estações. Existem
peças maravilhosas. Músicas lindas além da
primavera-verão-outono-inverno! Volto para a
cama quentinha, debaixo do edredom. Ligo o celular…
Que preguiça: dezenas de vídeos, os mais chatos e desimportantes do mundo. Acho que estão
todos no whatsapp. Mensagens, fotos e mais fotos de bom dia,
bom domingo, agradeça a
deus, não peça nada…e eu não peço!
Deixo o celular sobre a mesinha de cabeceira e já são quase dez horas, faltam cinco minutos.
No silêncio do apartamento, tic tac tic tac.
O quentinho da cama, o calorzinho das cobertas, o barulhinho da chuva, Vivaldi bem baixinho.
Ah, que sono me deu! Me enrosco novamente em minha manta
florida e tiro um bom cochilo.
Acordo meia hora depois, com mais preguiça ainda. Até o
Thomas veio se deitar entre as
minhas pernas.
Ele também deve estar desanimado, não posso abrir a janela e ele não pode sair andando por
aí. É um gato muito independente e raramente fica calmo
assim. Pego o Thomas no colo.
Pertinho de mim. Converso com ele. Faço carinho e ele
ronrona feliz.
Levanto e o relógio na parede marca quase meio dia. Tic tac tic tac .Vou novamente ao
banheiro e com o Thomas nos braços vamos, os dois, até a
área de serviço: troco sua areia,
coloco mais ração e encho o seu coxinho com água limpa. Duas
bolinhas de borracha. Fios de
lã. Uma lixa colada no azulejo. Tudo por ele e para ele. É
um sortudo este lorde inglês.
O tic tac se faz ouvir enquanto estou na cozinha. Tenho fome, mas não muita. Também não
tenho muitas opções. Bananas, torradas, mussarela e ovos.
Pronto. Ligo a TV. Eca. Vou
zapeando para cima e para baixo e nada me apetece. Volto
para cama e abro o computador.
Os jornais do dia. Filmes. Facebook.
Pego o livro que estou quase terminando de ler e vou para o sofá da sala. Tic tac tic tac. Uma
hora. Nem abro o livro e começo a admirar o velho relógio.
Olho para ele como se nunca antes
o houvera visto. Há mais de cinco anos ele se encontra no
mesmo lugar, sem que saia o cuco
que anuncia as horas, sem o piado típico do passarinho
cantante mas é um objeto lindo.
Fico pensando no artesão que, em uma única peça de madeira, realizou esta obra utilizando,
quem sabe, as ferramentas mais elementares para formar os
desenhos, desenhar os cachos de
uva, trabalhar a casinha do cuco!
Quantas horas se passaram até que chegasse até a minha vó e depois dela, até a mim! Horas
de aflição, horas de espera, horas felizes; horas muito
lentas e outras que passaram rápido
demais. Quanto tempo, quantas horas; quanta vida, quantas
gerações; em tantas paredes, em
tantas casas, tanta história. Meus antepassados.
Meus antecedentes que sofreram com as penúrias da chegada em um país selvagem onde
tudo estava ainda por fazer. Fui viajando naquela caixinha
de madeira ainda capaz de
hipnotizar-me com seu tic tac melancólico.
Me levantei do sofá. Peguei um paninho e, com carinho extremo, limpei cada cantinho do
relógio. Passei lustra móveis. Coloquei óleo em suas
engrenagens cansadas. Limpei o
passarinho também, só faltei lhe dar alpiste! Voltei o
relógio para o seu lugar de sempre na
parede da sala e suspirando fundo decidi, no dia seguinte,
levá-lo ao relojoeiro no centro da
cidade.
Queria de volta o cuco saindo e cantando a cada hora marcada. Queria de novo o relógio da
vovó, inteiro, na parede da minha sala. E quando meus filhos
voltassem do final de semana eu
teria uma admirável história para contar …
Rosângela Maluf. Lido aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário