Anastácio Gonçalves
António Anastácio Gonçalves nasceu em 1888 em Alcanena, no seio de uma família burguesa abastada. Aluno sempre brilhante, fez os seus estudos em Santarém, Coimbra e Lisboa, onde se licenciou em medicina em 1913. Fez a especialização em oftalmologia, orientado por Gama Pinto.
O país entrava em 1917 na I Guerra Mundial e o jovem médico marchou para a Flandres com o Corpo Expedicionário Português, tendo participado na batalha de La Lys. O seu comportamento corajoso nesse grande desastre militar nacional (avançou, debaixo de fogo, para as linhas da frente lusas, para ajudar de imediato a socorrer aos feridos) valeu-lhe mesmo uma condecoração.
Desempenhou vários cargos nos serviços de saúde pública de Lisboa, antes de, na década de 30, iniciar uma carreira académica em várias faculdades da capital.
Desempenhou vários cargos nos serviços de saúde pública de Lisboa, antes de, na década de 30, iniciar uma carreira académica em várias faculdades da capital.
Com a sua fama de médico oftalmologista consolidada em todo o país, contava entre os seus pacientes com nomes como Ferreira de Castro ou Aquilino Ribeiro.
A pedido de Fernando da Fonseca, outro médico famoso da primeira metade do século XX português, Anastácio Gonçalves atendeu no seu consultório a Calouste Gulbenkian, ficando depois grande amigo do arménio coleccionador de arte e multimilionário.
A viver desde 1932 no centro de Lisboa, numa vivenda que comprou em hasta pública e que tinha sido encomendada em 1904 pelo pintor Malhoa ao arquitecto Norte Júnior (prémio Valmor do ano seguinte), Anastácio Gonçalves recebia em sua casa gente do mundo académico, intelectual e artístico nacional, a quem gostava de guiar numa visita pela sua colecção, iniciada pelos anos 20.
Apesar de ter viajado muito por todo o mundo, o médico adquiriu toda a sua colecção em Portugal. Diariamente, antiquários iam a sua casa propor peças. Por vezes, Anastácio Gonçalves pagava em espécie, procurando apurar o espólio que ia reunindo.
Em 1965, o perene amor pelas obras de arte leva-o a pedir autorização à Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE, futura DGS, polícia política do regime anterior ao 25 de Abril de 1974) para visitar pela segunda vez a União Soviética. Isto porque, na primeira viagem, a paragem em Leninegrado ter calhado num feriado, impedindo-o de entrar no Ermitage. O oftalmologista morre pouco depois.
Por testamento, Anastácio Gonçalves deixa a sua residência e a colecção ao Estado português. A sua Casa-Museu abriria ao público apenas em 1980.
Para José Luís Porfírio, o recheio daquela que foi a habitação de Anastácio Gonçalves é composto de colecções “paradigma de um certo bom gosto burguês” do século XX nacional, que investiu no mobiliário de estilo, na porcelana chinesa (um dos melhores núcleos nacionais de peças “azul e branco”) e especialmente na pintura coeva da chamada escola naturalista nacional (Tomás da Anunciação, Silva Porto, Malhoa, João Vaz, António Ramalho, Columbano, Carlos Reis...).
Para além disso, a Casa-Museu tem marfins, vidros, têxteis, moedas, medalhas, bronzes e... relógios. Há um núcleo interessante de 16 relógios de bolso, na maioria de fabrico francês ou suíço, exemplares dos finais do século XVIII e do século XIX. Todos com caixas decoradas, com esmaltes ou cloisonées, algumas em ouro, representam cenas românticas, bucólicas. Destaque para uma peça de um relojoeiro famoso francês, Ferdinand Berthoud (1727-1807). Trata-se de um exemplar em bronze, esmalte e vidro.
Como já aqui referimos, enquanto a escola francesa de relojoaria está intimamente ligada às artes e ofícios, à decoração, com os joalheiros a imporem as suas obras, colocando-lhes máquinas relojoeiras de importância relativamente menor, já a escola inglesa sempre se assumiu com mais protagonismo mecânico – o mestre relojoeiro está interessado em vender mecanismos de eleição, por vezes com funções complicadas, não dando grande importância à caixa onde ele venha a ser montado. E o cliente de um relógio “à francesa” sabe o que procura – decoração acima de tudo, enquanto o que compra “à inglesa” já lhe interessa mais a precisão, o toque, o calendário perpétuo, não se importando com a relativa sobriedade do invólucro.
Pois, do ponto de vista relojoeiro, a Casa-Museu Anastácio Gonçalves tem três exemplares da escola inglesa, do século XVIII, que são muito mais interessantes que a colecção de relógios de bolso. Desde logo, um exemplar de caixa alta, da autoria de Robert Higgs, relojoeiro londrino que fabricava igualmente exemplares de mesa e de bolso e que entre 1755 e 1825 esteve bastante activo na exportação para o mercado espanhol. Numa belíssima caixa em carvalho e decoração orientalista em laca, este exemplar bate horas e meias horas, indicando ainda analogicamente os dias do mês.
As peças decoradas com laca “integravam o grupo mais numeroso de mobiliário exportado pela Inglaterra, com destino a Portugal”, faz notar José António Proença, especialista em mobiliário e que foi director da Casa-Museu. Nesse grupo contavam-se, certamente, inúmeros relógios, quer de mesa, quer de caixa alta, a avaliar pelas 54.180 libras referentes a “caixas de relógios” expedidas no porto de Londres, com destino a Portugal, no ano de 1700, como refere R. W. Symonds, um especialista que nos anos 40 do século passado investigou a exportação de mobiliário inglês do setecentos para os mercados ibéricos.
“Este comércio adquiriu grande importância, tendo o Marquês de Pombal encomendado, mais tarde, cerca de duzentos relógios para as repartições do Estado”, refere José António Proença.
Alguns exemplares de caixa alta desse tempo continuam em Portugal, mas alguns já apenas com mecanismo inglês e caixa de fabrico nacional.
Depois, dois exemplares de mesa, igualmente de artífices londrinos. Um, da autoria de um John Taylor (início do século XVIII), tem caixa em carvalho, decorada com pintura acharoada a vermelho e ouro, novamente imitando o orientalismo tão ao gosto da época. Toca minuete todos os quartos de hora e tem a particularidade de vir munido de uma caixa, igualmente em madeira, para viagem. Finalmente, um WM Smith, com caixa de carvalho folheada a raiz de nogueira, bate as horas e tem calendário analógico mensal. A platina, placa onde assentam as partes móveis do mecanismo, é decorada, pelo que as costas deste relógio estão abertas.
A Casa-Museu Anastácio Gonçalves fica em Lisboa, no eixo central da cidade, entre as Picoas e o Saldanha e o seu riquíssimo acervo tem passado despercebido ao olhar pouco atento e ao passo estugado dos milhares de alfacinhas que por ela se cruzam diariamente.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)
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