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sábado, 5 de novembro de 2011

Portugal, o Meridiano de Greenwich e o GMT (ou TMG) - III


Terceiro e último extracto de O Relógio da República (Âncora, 2010), a propósito do debate actual sobre os conceitos GMT e UTC. Pode ler os posts anteriores aqui e aqui.

Em 1912, José Nunes da Mata edita A nova hora e os fusos horários. Pode-se dizer que este homem foi o “pai” da Hora moderna portuguesa. Nascido em 1849, na Sertã, faleceu em 1945. Entrou para a marinha em 1878, onde acabou no posto de Almirante. Fez o curso de construção naval, concebeu e construiu barcos á vela. Republicano desde os bancos da escola, colaborou com a imprensa anti-monárquica e tomou parte activa no cortejo organizado por ocasião do centenário de Camões, em 1880. Amigo íntimo de Manuel de Arriaga e de Manuel de Azevedo Gomes, fundou com eles, desde aspirante de marinha, um triunvirato republicano dentro da corporação da Armada, participando activamente na vida dos centros republicanos. Foi desde 1881 professor da Escola Naval.

Agora director da Escola Naval e membro do senado, o “pai” da nova hora portuguesa achou-se na obrigação de dar “uma rápida explicação conducente a facilitar a execução do decreto de 26 de Maio de 1911”.

É ele mesmo quem relata: “Em princípio do mês de Fevereiro de 1911, fomos chamados ao Estoril pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, o sr. Bernardino Machado [...]. Aproveitámos então a ocasião para lhe dizer que era de toda a urgência que a República adoptasse a hora internacional, visto já ter sido adoptada por quase todas as nações civilizadas do velho e do novo mundo, e pedimos-lhe para nos dizer por qual dos ministérios conviria melhor que o assunto fosse tratado, se pelo Fomento, se pelo dos Estrangeiros... [...].
Decorridos uns quinze dias [...] entregámos um borrão de um projecto de lei relativo à adopção da nova hora [...] ao ministro da Justiça, sr. Afonso Costa [...]. Em meados de Abril, encontrámo-nos no largo do Município com o Presidente do Governo Provisório, sr. Teófilo Braga, que nos perguntou a razão porque ainda não estava adoptada a nova hora, pois lhe constava que estávamos encarregado de fazer progredir a útil reforma”.

Quanto à nova contagem seguida das horas, desaparecendo os conceitos mais vagos de “manhã” e “tarde”, José Nunes da Mata afirmava: “Ninguém tenha dúvidas a este respeito: a contagem das horas será em toda a parte, dentro de algumas dezenas de anos, das 0 às 24”. E acrescentava: “Para Portugal deve ser motivo de orgulho o ter adoptado a contagem seguida das horas, sem estar humildemente à espera do exemplo da França e da Inglaterra. Até que uma vez houve uma reforma em que não ficámos na retaguarda das nações civilizadas, e antes quase na vanguarda!”

Para um Portugal ainda muito rural e pouco cosmopolita, onde os relógios batiam religiosamente 13, 14, 15, 16… badaladas quando marcavam as horas depois do meio-dia, a revolução era de monta. Mas José Nunes da Mata insistia: “Pelo que diz respeito ao facto de os relógios baterem as horas apenas até 12, não nos parece que apresente o menor inconveniente, e pode isto servir até de auxílio aos que encontram dificuldade em estabelecer a correspondência entre as horas actuais da tarde e noite e as antigas.”

A Comissão que o Governo nomeara para estudar a alteração do regime horário, alvitrara: “A modificação mais simples, económica e útil dos mostradores dos relógios consiste em pintar por dentro da actual numeração romana que vai até 12, uma outra numeração árabe ou usual que fosse até 23, sendo preferível pintar um 0 no lugar do 24. As horas inferiores a 12 são horas da manhã; as horas superiores a 12 indicam horas da tarde; 12 indica o meio-dia e 0 ou 24 indicam a meia-noite”.

O Diário de Notícias de 31 de Dezembro de 1911, dedicando um extenso artigo à nova Hora Legal, que iria entrar em vigor no dia seguinte, escrevia pedagogicamente: “Não deve inquietar ninguém uma tal mudança realizada por conveniência geral; de resto, é uma questão de hábito, que é, segundo se diz proverbialmente, uma segunda natureza. Para os devidos efeitos, a lei manda adiantar os relógios de 36 minutos, 44 segundos. A única desvantagem, afinal, é parecermos mais velhos alguns instantes mais”.

“Estava-se no princípio do novo regime e muitas pessoas, em oposição política, obstinaram-se em não cumprir o decreto, e ainda hoje se encontra um ou outro relógio nessas condições”, afirmava Mário Costa em 1956, na já citada obra Duas curiosidades lisboetas.

Por todo o país houve algum alvoroço provocado pela adopção do novo sistema de contagem das horas. Um desses episódios passou-se em Guimarães, tendo por protagonista o relojoeiro local e como centro das atenções o relógio da torre da Oliveira. Houve um dia em que o relógio deu mais de 800 horas seguidas… O coronel António de Quadros Flores, em Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1912, recorda esse episódio, que aqui transcrevemos na íntegra, por ser paradigmático em relação ao que se passou noutras localidades:

O memorialista fala do que “[…] sucedeu ao relógio da Oliveira há coisa de uns quarenta e tal anos na gerência da primeira vereação republicana, a do sr. Teixeira de Abreu, se não estou enganado.

“Por altura de 1911 houve uma convenção internacional para a adopção da hora mundial, de modo que toda a contagem do tempo se referisse ao mesmo meridiano e as horas mencionadas desde Zero a 24, isto para uso oficial.

“Portugal aderiu a essa convenção, meteu-se no “fuso” de 15 graus que lhe competia em relação ao de Greenwich, que era o Zero de origem da contagem, adiantou os relógios uns 30 minutos sobre a hora solar, e decretou o novo horário.

“Foi uma confusão dos diabos e durante um certo período ninguém se entendia com a “hora nova”; as 14 horas eram as 4; às 7 da tarde, chamavam 17, dando em resultado algumas perdas de comboios ou chegarem à estação do C. F. com duas horas de avanço, só por não reflectirem em que tinham de acrescentar ou diminuir 12 horas às da tarde, e isto para o caminho-de-ferro, que então era o único meio de transporte acelerado e com horário já organizado pela nova designação.

“Os relojoeiros apressaram-se a actualizar os mostradores dos relógios inscrevendo numa circunferência interior à das horas habituais as de 13 a 24, com números a vermelho; até aparecerem com os 24 seguidos, o que demandava novo maquinismo.

“Ainda há-de haver quem possua desses relógios que dispensavam aborrecidos cálculos de – 21 menos 12 dá 9 da noite, ou 14 menos 12 dá 2 da tarde – enfim, uma barafunda que, nestes tempos cronometrados, sujeitos a horários cumpridos quase rigorosamente, dariam origem a tantas trapalhadas, que seria necessário um período de preparação, que agora se adopta para as inovações, e que naquele tempo, ou não se pôs em prática, ou o foi por espaço reduzido.

“A verdade é que no trato comum e familiar continua a dizer-se – 4 da tarde e 9 da noite – e só oficialmente é que mencionam as “horas novas”, que toda a gente interpreta correctamente, depois de quarenta e tantos anos de exercício.

“Ora a Câmara de Guimarães desejando ser útil aos seus concidadãos neste arreliento problema resolveu pôr o relógio da Oliveira, que era então o oficial, a dar as horas pela nova contagem e chamou um relojoeiro para modificar os maquinismos de modo a dar até 24 horas.

“Foi um sucesso, principalmente na noite da inauguração e nas que se seguiram durante um certo período, em que havia quem esperasse pelas horas adiantadas da noite para contar 22, 23 e 24 badaladas.

“Mas chegou-se à conclusão de que era muito mais maçador, no meio da noite, estar a contar além das 12 badaladas para se saber que hora era das que habitualmente se designavam.

“A intenção era boa, mas a verdade é que a contagem anterior era mais simples, principalmente depois do pôr-do-sol.

“Além de que o maquinismo de vez em quando se desarranjava e para isso havia o “Doutrinas”, relojoeiro, com oficina no Largo da Oliveira, que acudia prontamente para o pôr no seu lugar.

“E sucedeu certa noite de verão que as molas do relógio não o travaram na altura precisa e o sino do relógio desatou a badalar, talvez pelas 22, a badalar além da marca, tanto que chamou a atenção da gente das redondezas que acudiu ao Largo da Oliveira, e o nosso grupo, cujo Quartel-general era na loja do Barbosa, da rua da Rainha, também compareceu para presenciar o espectáculo.

“A garotada das cercanias, do Campo da Feira, da Feira do Pão, de Santa Luzia, correu alvoroçada a juntar-se ao alarido da contagem em coro das horas que iam caindo da torre, já no número das centenas – quatrocentas... quinhentas... – tudo acompanhado de berros pelo relojoeiro – ò Doutrinas, ò Doutrinas!

“O desgraçado do Doutrinas, que tinha a chave do relógio, tinha ido por azar dar um passeio, talvez para a Fonte Santa, e só chegou esbaforido quando a contagem, entre gritaria e gargalhadas, ia talvez nas oitocentas e tal badaladas, e foi recebido com uma verdadeira ovação, e correu à torre para pôr fim àquele gasto de tempo.

“Assim, o Doutrinas nos fez passar, aos daquele tempo, essas 800 horas, que são 33 dias e tal, no espaço de uma, tempo que vivemos sem canseiras nem transtornos e na melhor disposição.

“Mas esse acontecimento não ficou por aí e a Academia resolveu solenizá-lo.

“Convidou então um grupo de “sábios russos” que viessem estudar o fenómeno, e foi esperá-lo à estação do C. F. com uma deputação de estudantes e a restante Academia, que lhes fizeram uma calorosa recepção, e num brilhante cortejo a pé, que os automóveis ainda eram raros, atravessou a cidade a caminho do Largo da Oliveira.

“Ali montou um óculo de marinha, num tripé, dirigido para o relógio e, depois de várias observações, o Director da Missão, o “sábio dr. Doutrinoff”, que era o Aprígio Neves de Castro, proferiu um discurso tendo como tema o resultado dos “estudos” efectuados, elogiando o seu “colega” de Guimarães – o Doutrinas – pela perfeição dos maquinismos […].”

No dossier sobre Fusos Horários existente no Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, já aqui utilizado, (1) há uma série de documentação relacionada com a medida adoptada pelo Governo português, a informação que prestou sobre isso à comunidade internacional e o interesse de alguns países sobre o que mudou em Portugal.

Uma carta de Nunes da Mata, de 29 de Abril de 1911, informa sobre a recém-criada comissão para a Hora Legal; a 22 de Maio, a embaixada portuguesa em França envia o Jornal Oficial, de 10 de Março desse ano, onde se determina que a Hora Legal francesa também é alterada (à meia-noite desse dia, o relógio do Observatório de Paris, e com ele todos os relógios das repartições públicas que davam a Hora oficial, foram atrasados 9 minutos e 24 segundos); a 14 de Agosto, a New York Public Library agradece o envio de um exemplar de “A nova hora e os fusos horários”, o panfleto explicativo da autoria de Nunes da Mata; a 2 de Junho, a legação portuguesa em Londres confirma ter sido informada da mudança da hora decretada em Lisboa e envia recortes de imprensa sobre o assunto; a 6 de Junho, idêntica situação com a legação junto do Império Austro-Hungaro; a 7 de Junho, o representante de Portugal em Roma informa que deu conta ao Governo italiano da alteração ao regime da Hora Legal que se processará em Portugal a partir de 1 de Janeiro de 1912; a 23 de Junho, o representante português em Washington diz que se informou junto do Departamento de Estado e que a reunião de Washington de 1884, tendo debatido “a adopção de princípios gerais para a fixação da hora legal nos diferentes países”, isso “não resultou propriamente numa convenção” e que a Conferência “separou-se depois de emitir um simples parecer”. Informa ainda que o Departamento de Estado “teve a grande amabilidade” de ceder “um dos raros exemplares que ainda restam da publicação que contém os protocolos da Conferência”. Finalmente, informa Lisboa que já deu conta ao Secretário de Estado norte-americano das alterações ao regime da hora legal em Portugal.

A 26 de Março de 1913, ainda o representante diplomático alemão em Lisboa pergunta sobre a experiência do cômputo das horas de 0 a 24 e qual o acolhimento feito pelo público a esta inovação; a 3 de Maio de 1913, a resposta do Ministério do Interior é “Posto não seja obrigatória a contagem das horas de 1 a 24 esta inovação tem sido bem acolhida e vai entrando no uso geral da população”; e, a 23 de Dezembro de 1913, o representante da Legação dos Estados Unidos em Lisboa pergunta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros se houve quaisquer mudanças no tempo legal usado em Portugal e, se sim, qual, denotando-se assim alguma falta de coordenação na informação fornecida ao exterior.

Quanto ao acervo respeitante à Hora Legal existente no arquivo do Noviciado da Cotovia / Colégio dos Nobres / Escola Politécnica / Faculdade de Ciências (2), também já aqui utilizado, de notar a seguinte documentação:

A 19 de Dezembro de 1911, A Universidade de Lisboa informa ter recebido da Direcção Geral da Instrução Secundária, Superior e Especial uma circular, informando da mudança do regime da Hora Legal e determinando: “Ao bater das 12 horas da noite de 31 de Dezembro corrente, os relógios dessa Universidade devem ser adiantados 36 minutos 44 segundos e 68 terços, isto é, aproximadamente, 37 minutos. Mas como este avanço é apenas convencional, devem, correspondentemente, os horários ser atrasados 40 minutos.”

A 8 de Julho de 1912, Pedro José da Cunha, director do Observatório Astronómico da Faculdade de Ciências, e que tinha também feito parte da comissão nomeada para estudar a nova Hora, informa o Director desse estabelecimento ter respondido “negativamente à consulta relativa à próxima conferência de Paris, em que se vai tratar da transmissão da hora pela telegrafia sem fios, porque, efectivamente, os fundos disponíveis do Observatório não permitem mandar nenhum dos seus membros àquela conferência sem ónus para o Estado”. Depois, considera “uma vergonha para o nosso país o não se fazer representar naquela conferência internacional”, sugerindo que “no Observatório da Tapada encontraria o Governo quem, melhor do que ninguém, - tanto pelo que respeita à índole do serviço do Observatório, como pelo que se refere à autoridade e competência, - poderia desempenhar-se da missão de que se trata com honra e proveito para o nosso país”.

A 29 de Abril de 1913, tendo-lhe sido pedido parecer sobre o estatuto da Comission Internationale de l’Heure, elaborado em Paris em Outubro de 1912, o Observatório Astronómico da Faculdade de Ciências faz notar que as colónias podem aderir como Estados separados, e defende que Portugal deve aderir, bem como as províncias de Angola e Moçambique, como associados, especialmente no último caso, por nele haver um observatório astronómico moderno.

Embora tenha adoptado o regime de fusos horários e Greenwich como meridiano de referência para a sua Hora Legal, Portugal só em 1920 determina o emprego desse sistema no mar, nas Marinhas de Guerra e Mercante.

(2) AHMCUL, caixas 1910 a 1940

1 comentário:

João de Castro Nunes disse...

Como na vida ordinária
a hora solar é que conta,
"monta tanto, tanto monta"
qualquer política horária!

JCN