Mudança estrutural que a República trouxe ao Tempo português – Greenwich como meridiano de referência e os fusos horários. Segundo extracto do livro O Relógio da República (Âncora, 2010), a propósito do actual debate sobre GMT e UTC. Ver peças anteriores aqui e aqui.
Como referido anteriormente, foram emitidas em 1891 pelo Governo português instruções regulamentares relativas às horas e duração de serviço nas estações dependentes da Direcção-Geral dos Correios, Telégrafos e Faróis. Elas estabeleciam que “[…] a hora em todas as estações, será a média oficial contada pelo meridiano do Real Observatório Astronómico de Lisboa; nas principais cidades do reino e em quaisquer pontos do país, quando a conveniência do serviço público aconselhar, serão estabelecidos postos cronométricos destinados a fazer conhecer a hora média oficial”.
Assim, a hora oficial era transmitida diariamente do Observatório à estação central dos telégrafos de Lisboa e desta sucessivamente a todas as estações telegráficas do continente e ilhas adjacentes.
Era a primeira vez que Portugal tinha uma única hora oficial. E isso só se tornara possível devido à invenção do telégrafo.
Como explica David S. Landes em Revolution in Time, de 1983, a invenção do telégrafo, “primeiramente aplicada em 1837 na London and North Western Railway, tornou possível transmitir quase instantaneamente as horas e os minutos exactos a partir de um escritório central para qualquer ponto da linha. O efeito disso foi a criação de um tempo padrão para todos os que eram servidos por uma determinada rede de caminhos-de-ferro”.
O passo seguinte foi a unificação de todas as redes e linhas. E, a 22 de Setembro de 1847, a British Railway Clearing House recomendou que cada companhia adoptasse o tempo médio de Greenwich em todas as suas estações, “tão rápido quanto os serviços de Correios o permitam”. E, antes do fim do ano, estavam reunidas as condições técnicas para que os caminhos-de-ferro britânicos tivessem as suas actividades totalmente interligadas, operando sob um único tempo padrão.
O exemplo inglês foi seguido por vários países na Europa mas, à semelhança de Portugal, usando cada um o seu meridiano nacional de referência. Colocava-se um problema acrescido a países com longitudes amplas, como a Rússia ou os Estados Unidos, onde a hora determinada por um único meridiano não chegava. Em 1883, os norte-americanos foram os primeiros a aplicar o sistema de fusos horários ao seu território.
O corolário lógico era o de adoptar o sistema não apenas a um país mas a todo um continente, a todo o mundo. Como vimos, na Conferência de Washington, de 1884, convocada para o efeito de determinar Greenwich como meridiano de referência internacional, Portugal, apesar de convidado, não compareceu. E continuou a usar o sistema de tempo coordenado em vigor desde 1891. Para um país periférico, isso não trazia grandes inconvenientes. Até que a Espanha aderiu, em 1901, a Greenwich… e aí começaram a surgir problemas directos, relacionados com a coordenação de horários de comboios peninsulares, por exemplo.
No final de 1901, a Revista Encyclopedica constatava: “A nossa hora oficial é a do meridiano de Lisboa (Observatório). Quando lá é meio-dia, os relógios devem marcar meio-dia em todo o país. Este uso, de uma nação adoptar a hora da sua capital, que outrora era seguido em toda a parte, está hoje abandonado. Na Europa, cremos que só Portugal, a França e a Rússia é que contam o tempo pelo relógio das suas capitais, sem se importarem com o uso dos outros estados. A própria Espanha já hoje não acerta os seus relógios pela hora de Madrid. Há meses que aderiu à convenção horária internacional, recebida há anos friamente, mas que tende agora a universalizar-se”.
Como explicava então a Revista Encyclopedica, a Europa estava dividida em três zonas horárias: ocidental, central e oriental, cada uma de 15 graus de longitude, ou, em tempo, de uma hora de extensão; a primeira, que se tomava como zona unidade, estava dividida em duas partes iguais pelo meridiano do Observatório de Greenwich – localidade nos arredores de Londres. Convencionou-se que em cada zona se adoptasse uma hora uniforme – a hora do meridiano que a dividia ao meio. “Na prática, modifica-se muitas vezes, embora ligeiramente essa fórmula: em regra cada país usa a hora da zona em que está situada a maior parte da sua área”.
“Salta aos olhos a utilidade de semelhante de semelhante convenção para as relações internacionais”, defendia-se. “Quando se atravessa a fronteira de um país de uma zona horária diferente, para acertar o relógio basta adiantá-lo ou atrasá-lo uma hora, conforme se caminha para oriente ou para ocidente. Resulta uma grande simplificação nos horários das linhas internacionais de telegrafia e telefonia, dos caminhos-de-ferro e da marinha. As vantagens são comparáveis às que provêem da uniformização do calendário, dos sistemas de unidades de medidas, etc.”
Naquela altura, as nações da chamada zona ocidental da Europa eram a Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. A zona central abrangia a Itália, Suíça Alemanha, Áustria-Hungria, Sérvia, Dinamarca, Suécia e Noruega. A zona oriental compreendia a Rússia, Bulgária, Grécia e a parte europeia da Turquia. Assim, em sendo uma hora nos países da Europa ocidental, eram duas horas nos da zona central e três nos da oriental.
“O nosso país não aderiu a esta convenção. Não é decerto por imitação do chauvinismo francês, nem do conservadorismo russo. Será antes para ter a glória de possuir uma hora... nacional”, dizia em tom jocoso a Revista Encyclopedica.
E, para quem entrava ou saía do país, para quem fazia ligações telefónicas ou telegráficas de e para Portugal, a confusão era enorme: quem seguia para Espanha tinha que adiantar o relógio 38 minutos e 3,5 segundos. Quem seguia de Espanha para França teria que avançar o relógio 9 minutos e 11 segundos. Na passagem da França para a Suíça, que adoptara a hora universal, o avanço era de 50 minutos e 49 segundos. A Rússia conservava a hora de São Petersburgo, que adiantava 2 horas, 4 minutos e 13 segundos em relação à de Greenwich.
No número seguinte, no correio dos leitores, a reacção negativa não se fez esperar. Assinado “J.C.”, a carta dizia ser impossível a divisão mundial em zonas horárias, “visto os países não estarem separados por linhas de longitude e poder por isso um país (como acontece) pertencer a duas zonas horárias”. A discussão pública foi-se arrastando, sem decisões.
Com o regicídio, em 1908, sobe ao trono, por morte de D. Carlos, o filho, D. Manuel II. A rede de caminhos-de-ferro tinha-se desenvolvido muito nos últimos 20 anos, as ligações internacionais por essa via e através dos novos meios de telecomunicações iam pressionando cada vez mais para que se fizesse a mudança horária.
Foi preciso cair a Monarquia, mudar o regime, para que o país adoptasse a Hora decretada pelo meridiano zero, o de Greenwich. Por Decreto, com força de lei, de 26 de Maio de 1911, assinado por Teófilo Braga, António José de Almeida, Bernardino Machado, José Relvas e Brito Camacho, entre outros, decidia-se que a partir de 1 de Janeiro de 1912, a chamada Hora Legal, em todo o território português, fica subordinada a esse meridiano, segundo o princípio adoptado na Convenção de Washington em 1884. A decisão tinha sido baseada no parecer unânime de uma comissão nomeada em Maio de 1911, e de que fizeram parte o almirante José Nunes da Mata; o tenente-coronel João Maria de Almeida Lima, Director do Observatório Meteorológico de Lisboa; o capitão de engenharia Frederico Oom, astrónomo do Observatório Astronómico da Tapada da Ajuda; o capitão de engenharia Pedro José da Cunha, lente de Astronomia da Escola Politécnica; e o engenheiro civil e de minas Luís da Costa Amorim.
O preâmbulo do Decreto afirmava:
“Considerando que já todos os países cultos, com raras excepções, terem adoptado para base da contagem do tempo o meridiano de Greenwich, segundo o princípio aceito na Convenção de Washington em 1884;
Considerando que a adopção do mesmo princípio no território português oferece incontestáveis e numerosas vantagens, tanto no movimento internacional dos comboios, como nos serviços telegráficos, nas relações marítimas e no convívio científico do país com o estrangeiro;
Considerando que o persistirmos no obsoleto sistema vigente representaria da nossa parte um verdadeiro atraso perante os progressos da civilização e até uma incúria, dada a nossa situação geográfica e os deveres que ela nos impõe, tanto no continente europeu como nas ilhas adjacentes e colónias;
Considerando que tal adopção, tendo indubitáveis e largas vantagens, não oferece nenhum inconveniente prático e não importa a mínima despesa […]”
Determinava-se depois que os relógios nacionais fossem adiantados de 36 minutos e 44,68 segundos a partir das 00h00 de dia 1 de Janeiro de 1912.
“São regulados pela hora legal todos os serviços públicos e particulares da República, devendo todas as repartições, edifícios e estações conservar os seus relógios, tanto internos como externos, sempre certos por essa hora e conceder todas as facilidades ao seu alcance para a tornar exactamente conhecida do público em geral, cumprindo às repartições telegráficas dar a este serviço toda a preferência”.
Além disso, permitiu-se e tornou-se válido para todos os efeitos legais ou jurídicos, que se designassem pelos números 13 a 23 as horas compreendidas entre o meio-dia e a meia-noite, suprimindo-se assim, as designações “Tarde” e “Manhã” ou outras equivalentes, e que a meia-noite se designasse por zero. Pelo mesmo diploma, desapareceu a diferença existente de cinco minutos entre os relógios internos e externos das estações ferroviárias.
Fosse qual fosse a hora que vigorava, desde 1903 que, por lei, era o Real Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda) quem tinha por missão o serviço de transmissão telegráfica da hora oficial às estações semafóricas, que constituía na “transmissão diária dos sinais da pêndula média para o Arsenal da Marinha e Escola Politécnica, a fim de promover a queda do balão à uma hora precisa do tempo médio oficial”.
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