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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Portugal, o Meridiano de Greenwich e o GMT (ou TMG) - I


Agora que o Tempo Universal Coordenado (UTC) ameaça "enterrar" por completo o velhinho GMT (Greenwich Mean Time), num debate que pode ser visto aqui, Estação Cronográfica reproduz nos próximos dias alguns extractos do livro O Relógio da República (Âncora, 2010), que versa a relação de Portugal com o GMT ou, como por cá se diz, TMG...

A Conferência Internacional de Washington de 1884, que aprovou o sistema de Fusos Horários e o meridiano de Greenwich como Meridiano Zero ou de referência. A inexplicada ausência portuguesa.

Em carta de 31 de Agosto de 1882, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1), dirigida ao Ministério português dos Negócios Estrangeiros, através do seu Presidente, José Vicente Barbosa du Bocage, e do seu Secretário-Geral, Luciano Cordeiro, afirma-se, quanto à questão de determinação de um Meridiano Zero universal: “Por todos os títulos, Portugal nem pode ser indiferente à questão nem deixar que ela se resolva, como tende evidentemente a resolver-se, sem que ele se possa ouvir e valer por honra das suas tradições, da sua ciência e da sua posição de potência marítima e colonial, que encheu com o seu nome e com os seus serviços as primeiras páginas da geografia moderna”.

Os dois signatários da missiva tinham sido os delegados portugueses ao Terceiro Congresso Internacional de Ciências Geográficas, ocorrido em Veneza, no Outono do ano anterior. Nesse congresso, tanto Barbosa du Bocage como Luciano Cordeiro votaram a favor da resolução final – a necessidade da convocação de uma nova conferência internacional “destinada a resolver a questão da adopção de um meridiano universal”.
“Em princípio, ninguém contesta quanto seria racional e útil a adopção de um meridiano inicial”, sublinham. A questão também já tinha sido tratada no Congresso de Geografia Comercial, de Paris, de 1875, e onde Portugal igualmente se tinha feito representar (por José Júlio Bettencourt Rodrigues).

A necessidade de se convencionar um meridiano de referência universal era cada vez mais premente, dado o desenvolvimento de novas formas de comunicação, por um lado – telégrafo; de transporte, por outro – caminhos-de-ferro. Ambas as novas realidades exigiam tempo convencionado e coordenado, não apenas a nível nacional, mas continental e planetário.

O congresso de Veneza decidiu convocar para daí a um ano outra conferência internacional, “para resolver a questão do meridiano inicial, tendo em conta não somente a questão da longitude, mas particularmente a das horas e datas”.

Se a latitude de um lugar, medida a partir da linha do Equador, não ofereceu nunca polémica, já a longitude pode ser tomada a partir de qualquer linha imaginária traçada de pólo a pólo – partindo-se dela para leste ou oeste. Do ponto de vista cartográfico, as várias potências marítimas foram usando meridianos de referência vários – Mercator, por exemplo, usou o da ilha do Corvo para desenhar os seus mapas. Do ponto de vista de tempo, e a partir da segunda metade do século XIX, as nações começaram a usar como meridiano zero o que passava pelos respectivos observatórios astronómicos nacionais. Em Portugal, esse meridiano começou por ser o que passava pelo Observatório Astronómico que foi construído no início do século XIX no Castelo de São Jorge, em Lisboa (destruído em 1938, aquando obras de restauro no monumento); mas, ao mesmo tempo, e para a zona centro e norte do país, vigorava como meridiano zero (para efeitos horários), o Observatório da Universidade de Coimbra. Só a partir de 1878 o meridiano zero passou a ser único para todo o país – o do Observatório Astronómico de Lisboa.

É precisamente de 1878 a proposta de Sir Sandford Fleming, um engenheiro dos caminhos-de-ferro canadianos, de divisão do globo terrestre em 24 fusos horários, de 15 graus cada um, vigorando dentro de cada um uma mesma hora.

Por essa altura começava a impor-se como meridiano de referência na navegação marítima o de Greenwich, ao norte de Londres, onde estava o Observatório Astronómico britânico. A grande resistência ao uso desse meridiano de referência à escala global vinha da França, que não só insistia em usar o do Observatório de Paris como queria impô-lo em qualquer convenção internacional que viesse a haver sobre o assunto.

José Vicente Barbosa du Bocage e Luciano Cordeiro reconheciam isso na carta citada: “são as pretensões e as susceptibilidades do sentimento, do interesse e da política de cada um [dos Estados] que podem embaraçar e dificultar um acordo e obstar a adopção geral de um meridiano único”.

O Governo português ratificou a votação dos seus representantes na conferência de Veneza e comprometeu-se a “nomear oportunamente os seus representantes” à reunião internacional seguinte.

Quanto à Sociedade de Geografia de Lisboa (fundada em Novembro de 1875), para a preparação da posição portuguesa face ao assunto, e dado que ele “importa directamente aos interesses do comércio, da navegação, do ensino”, iria auscultar os vários ministérios e associações de classe envolvidos.

Em carta de 23 de Outubro de 1882 o Departamento de Estado norte-americano, em nome do Presidente dos Estados Unidos, e através do Ministério português dos Negócios Estrangeiros, sonda Portugal sobre o seu interesse em fazer-se representar numa futura reunião, em Washington, em data a marcar.

Na carta explica-se o contexto: “It may be well to state in the absence of a common and accepted standard for the computation of time for other than astronomical purposes, embarrassments are experienced in the ordinary affairs of modern commerce, - that this embarrassment is especially felt since the extension of telegraphic and railway communications has joined states and continents possessing independent and widely separated meridional standards of time, - that the subject of a common meridian has been for several years past discussed in this country and in Europe by commercial and scientific bodies, and the need of a general agreement upon a single standard recognized – and that, in recent European conferences especially, favor was shown to the suggestion that, as the United States possesses the greatest longitudinal extension of any country traversed by railway and telegraph lines, the initiatory measures for holding an international convention to consider so important a subject should be taken by this government”. (Poderá bem dizer-se que, na falta de um padrão comum e aceite para o computo do tempo para lá do propósito astronómico, se têm sentido embaraços nos assuntos comuns do comércio moderno, - esse embaraço é especialmente sentido desde que as comunicações telegráficas e ferroviárias têm ligado países e continentes que possuem tempos convencionados por meridianos independentes e largamente separados, - e que o assunto de um meridiano comum tem sido discutido desde há vários anos neste país e na Europa por organismos comerciais e científicos, e da necessidade de um acordo geral sobre um padrão único reconhecido – e que, especialmente em conferências recentes na Europa, foi mostrada abertura à sugestão de que, possuindo os Estados Unidos a maior extensão longitudinal do que qualquer outro país atravessado por linhas de caminhos-de-ferro e de telégrafo, este governo deveria tomar as medidas iniciais para a realização de uma convenção internacional que trate deste importante problema).

A reunião de Washington teria um único ponto na ordem dos trabalhos: “fixing upon a meridian proper to be employed as a common zero of longitude and standard of time reckoning throughout the globe” (fixação de um meridiano apropriado a ser usado como zero comum de longitude e tempo padrão, reconhecido em todo o globo).

O mundo tinha agora amplas redes transnacionais de caminhos-de-ferro e redes transatlânticas de telégrafo mas não dispunha ainda de um sistema global de coordenadas geográficas ou temporais. Era urgente chegar-se a um acordo.

Em carta de 22 de Dezembro de 1882, Frederico Augusto Oom (1830-1890), primeiro Director do Observatório Astronómico de Lisboa, respondia à solicitação de parecer feita pela Secretaria de Estados dos Negócios Estrangeiros. Divide a questão nos aspectos geográfico e temporal. Quanto ao primeiro, diz que o assunto está praticamente assente, já que o meridiano de Greenwich foi adoptado “de facto” como primeiro meridiano “pelos navegantes da maior parte das nações da Europa e pelos Estados Unidos da América”. Quanto à unificação do tempo médio, a posição de Frederico Augusto Oom é contrária, pois “não é difícil imaginar os embaraços e dificuldades de diversa ordem que resultariam para todas as classes da sociedade, em todos os actos da vida” se ela se concretizasse. Recomenda, assim que não se vá à Conferência de Washington nem se adopte a unificação do tempo médio, se ela aí ver a ser decidida.

Em carta de 6 de Janeiro de 1883, dirigida à Secretaria de Estados dos Negócios Estrangeiros, o Director do Observatório Astronómico de Coimbra, Rodrigo Ribeiro de Sousa Pinto não define claramente a sua posição, apesar de defender a adopção de um meridiano zero universal para fins geográficos e temporais. Mas não diz qual. De qualquer modo, declina a nomeação feita pelo Governo português para ser um dos delegados à Conferência de Washington, devido à idade e ao estado da sua saúde. Tinha na altura 75 anos, mas só viria a falecer dez anos mais tarde.

A 8 de Setembro de 1883 chega à Secretaria de Estado a posição da Sociedade de Geografia de Lisboa. Assinada pelo seu Vice-Presidente, António do Nascimento Pereira de Sampaio, e pelo seu Secretário-Geral, Luciano Cordeiro, informa que, após votação, se apoia a designação do meridiano de Greenwich como de referência, mas apenas para fins geográficos. E que se rejeita “a ideia da unificação da hora media universal”.

A 25 de Outubro desse ano chega à Secretaria de Estado uma nota da embaixada de Portugal em Itália, dando-se conta da Sétima Conferência Geodésica Internacional, ocorrida em Roma. “Para meridiano único foi escolhido o de Greenwich, devendo as longitudes serem contadas na direcção de O-E; foi igualmente aprovado que se adoptasse uma hora universal, sendo conveniente contá-la do meio-dia médio de Greenwich e de 0h a 24h”. Presume-se que não terão estado representantes portugueses presentes na conferência.

A 1 de Dezembro, o representante dos Estados Unidos em Lisboa recebe do Departamento de Estado uma carta com o convite formal para Portugal participar numa conferência, em Washington, sobre as questões de sempre – meridiano zero geográfico e de tempo. Encaminha-a de imediato para o ministro português dos Negócios Estrangeiros. Por coincidência, este era na altura José Vicente Barbosa du Bocage, um dos delegados à conferência de Veneza ocorrida dois anos antes, Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, sendo assim alguém que sabia bem da importância do que se estava a tratar.

A 4 de Janeiro de 1884, chega ao ministério português dos Negócios Estrangeiros um parecer do Ministério das Obras Públicas (com alçada sobre os Serviços Geodésicos), onde se apoia a declaração de Greenwich como meridiano zero para fins cartográficos, mas se rejeita a unificação da hora, “por causa das perturbações que iria causar nos usos e costumes dos povos”. Faz uma ressalva: “Mas desde que se empregue a hora única nos serviços que a exijam ou em que seja mais apropriada, e se conserve a hora local ou nacional para os usos vulgares […], parece não haver nisso inconveniente algum, mas antes grande utilidade”. E remete uma decisão final para quem estaria mais habilitado para o fazer, nomeadamente os Directores dos Observatórios Astronómicos de Lisboa e Coimbra.

A 9 de Janeiro de 1884, o representante dos Estados Unidos em Lisboa volta à carga, recordando ao ministro português dos Negócios Estrangeiros a primeira nota sobre o assunto, de 10 de Novembro de 1882. E Informa ainda que a conferência de Washington já tem data marcada – 1 de Outubro desse ano, devendo cada país nomear os seus representantes, no número máximo de três.

A 27 de Março de 1884, a Academia das Ciências de Lisboa envia para a Secretaria de Estado o parecer da sua secção de Ciências Matemáticas. Diz-se que a questão foi analisada do ponto de vista social e científico. “Considerando o problema pelo lado restrito da ciência pura, a sua importância é medíocre, ou antes, nula. Conhecidas, como de facto são, as posições geográficas das principais estações do globo e contando-se em cada uma delas a sua hora média local, todas se acham ligadas cientificamente por fáceis e determinadas relações, sem que haja a menor necessidade de se ir conceder a este ou àquele meridiano, passando por este ou por aquele observatório, uma preferência necessariamente litigiosa, quando dessa preferência não pode resultar qualquer progresso para a ciência física da Terra”.

Mas, no caso de vir a ser adoptado internacionalmente o meridiano zero, a Academia das Ciências acha não ser difícil Portugal reivindicar para si o privilégio da sua fixação – ou um que passa pelo meio do arquipélago dos Açores, nomeadamente pelo Pico (“que funciona como um grande farol estacionado sobre o Oceano”; ou o que passa por Sagres (evocando-se o Infante D. Henrique, a escola de astronomia que aí teria funcionado, o local onde começou “a época actual”).

Depois de reconhecer que o meridiano de Greenwich é já usado “pela maior parte dos povos navegadores”, a Academia diz: “É muito de crer, Senhores, que a França e a Inglaterra hajam de pleitear competências no seio do Congresso [de Washington] com respeito à fixação do meridiano destinado a servir de primário”. Mas recomenda-se que Lisboa vote a favor da parte inglesa, pelo menos na questão geográfica. Já quanto à questão da Hora Universal, a Academia tem uma posição semelhante à do Ministério das Obras Públicas – que convivam as duas horas – a do tempo médio de Greenwich para uso científico; a do tempo médio ditado pelo meridiano zero nacional, para uso geral das populações.

O parecer termina com a recomendação de que os que delegados portugueses à reunião de Washington sejam instruídos no sentido das conclusões a que as várias instituições nacionais foram chegando – sim a Greenwich para fins geográficos; não ou parcialmente não para fins de tempo e data.

A 26 de Maio, a Secretaria de Estado pede ao Ministério do Reino que se decida se participa ou não e “habilite esta Secretaria de Estado a dar ao representante dos EUA a resposta que lhe solicitava sobre a resolução de Portugal de se fazer ou não representar”. E, em caso afirmativo, “quais são os seus representantes, tendo consideração que não podem exceder os três”. Portugal, afinal, ainda não tinha decidido formalmente nada.

Com a data da reunião de Washington a aproximar-se, a 5 de Julho o representante dos EUA em Lisboa “volta a chamar a atenção para o assunto”, iniciado formalmente ano e meio antes. Que o Rei de Portugal decida se aceita ou declina o convite. E “begs for na answer” (suplica por uma resposta).

Finalmente, a 15 de Agosto de 1884, o representante da Legação dos Estados Unidos volta a insistir, recordando que falou com o anterior e o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo aludido ao tema em vários encontros pessoais. “It still remains without a solution at the hands of His Magesty’s Government” (continua sem solução, nas mãos do Governo de Sua Majestade). Esta é a última nota que consta no dossier sobre o assunto no Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros que temos estado a seguir.
A 29 de Dezembro desse ano, o representante diplomático português em Washington, Visconde das Nogueiras, envia um exemplar dos Protocolos da Conferência, aprovados em Outubro.

Nessa Conferência, a posição francesa ficou isolada (apoiada praticamente apenas pelo Brasil). Segundo relatório apresentado na altura por Sir Sandford Fleming, um total de 37.663 navios, com o equivalente a 14,6 milhões de toneladas (65 por cento do total de navios e 72 por cento da tonelagem), usavam já na altura o meridiano de Greenwich nas suas cartas de navegação. Seguia-se o de Paris, com 5.914 navios e 1,7 milhões de toneladas (10 por cento dos navios, 8 por cento da tonelagem). Por essa altura, havia ainda quem usasse o meridiano de Lisboa (491 navios, 164 mil toneladas).

“O Meridiano de Greenwich é usado por 72 por cento do comércio marítimo mundial, com os restantes 28 por cento a serem divididos entre outros dez diferentes meridianos nacionais”, fazia notar o “pai” do sistema de Fusos Horários.

A Conferência de Washington, embora não tivesse poderes para decidir, tinha aprovado claramente o uso de Greenwich. E não apenas para fins geográficos. Rapidamente as nações representadas começaram a mudar o seu sistema nacional de Hora, passando a usar como referência Greenwich como meridiano zero, substituindo-o assim ao seu meridiano zero nacional. A França viria a fazê-lo apenas a 11 de Março de 1911 (nesse sábado, os relógios franceses atrasaram 9 minutos e 21 segundos, a diferença horária correspondente em graus entre os meridianos de Paris e de Greenwich). E Portugal, só viria a fazê-lo em 1 de Janeiro de 1912, como veremos.

Continua sem ficar claro porque é que Portugal não se fez representar na Conferência de Washington, uma ausência incompreensível à luz da História do país, das suas tradições marítimas, de um território espalhado por longitudes extremas.

De qualquer modo, a Monarquia perdia aqui uma oportunidade de acertar o passo com o Tempo Moderno.

(1) Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Correspondência da Legação em Washington, anos 1883, 1884 e 1885; e 3º Piso, Armário 15, Maço 53-A

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