A 26 de Novembro de 2003, uma quarta-feira, lançávamos, com Prefácio de Jorge Sampaio, Presidente da República, a obra História do Tempo em Portugal. Na Fundação Medeiros e Almeida estiveram presentes, entre outros, a Provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, o Comandante de Marinha Estácio dos Reis (que apresentou a obra) e representantes da Casa Civil da Presidência e do Gabinete do Primeiro Ministro. Além de Goreti Santos, representante dos relógios Girard-Perregaux em Portugal, de elementos da manufactura vindos da Suíça, que apoiou a obra; e da Directora da Casa Museu, Teresa Vilaça.
Na altura, entre outras coisas, dissemos:
Porquê o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades?
Não sei muito bem como responder. Nascido e criado numa zona histórica de
Lisboa, o Chiado, habituei-me desde miúdo a ouvir os sinos das igrejas das
redondezas, que são muitas. Desde logo, a dos Mártires, uma das primeiras, se
não a primeira, a ser construída depois da conquista da cidade aos Mouros por
D. Afonso Henriques. Eram marcações de tempo canónicas, feitas por sacristãos,
que se faziam ouvir ainda claramente no início da segunda metade do século XX,
porque a Lisboa dos engarrafamentos de trânsito ainda não tinha chegado e o
Chiado, embora já despovoado de habitantes, continuava a ser o sítio de compras
mais exclusivo, fervilhando de vida durante o dia. Mas a infância também foi
povoada por relógios mecânicos públicos, como o do Teatro de São Carlos ou o da
Mundial Confiança.
Mais tarde, o café de bairro foi A Brasileira, onde de novo
um relógio, de parede, marcou o início de muitas noitadas…
Como quase todos os outros da minha geração, o primeiro
relógio que tive, na década de 60, foi-me dado pelos pais, quando fiz a 4ª
classe: um Cauny Prima 17 Rubis, de contrabando.
Com o equivalente aos meus três primeiros ordenados adquiri
depois, já na década de 70, numa ourivesaria do Rossio, um cronógrafo
automático. Ainda tenho estas duas peças, a funcionarem explendidamente. A
Paixão relojoeira tinha-se enraizado.
O mercado português estava nessa altura praticamente fechado
à Alta Relojoaria, dadas as barreiras alfandegárias e ao fraco poder de compra.
Viajando de carro pela Europa, fazendo férias de Inverno, no regresso parava
todos os anos dois ou três dias em Andorra. E aí tomava contacto, maravilhado,
com peças que não havia em Portugal.
A viver em Beijing durante alguns anos, no final da década
de 80, tive oportunidade de reforçar a minha pequena colecção de relógios
mecânicos, com o que foi aparecendo vindo do mercado interno ou proveniente de
uma União Soviética em desagregação.
De regresso a Portugal, procurei arranjo para algumas dessas
peças. Disseram-me os relojoeiros consultados que várias não tinham concerto.
Mesmo assim, contactei a única escola de Relojoaria do país, na Casa Pia de
Lisboa. [Alguns dos relógios foram lá concertados, como exercício pedagógico].
Um pouco por desporto, comecei a escrever esporadicamente no
PÚBLICO, onde fui Editor, artigos sobre relojoaria. Passei a ir às ferias de Basileia e Genebra,
os grandes encontros anuais do sector a nível mundial. Criei um suplemento
anual – Cronos – Pilares do Tempo [...].
E, as coisas aconteceram assim, naturalmente, dediquei os
últimos dois anos [2001 e 2002] quase exclusivamente a fazer o levantamento, ainda que
limitado, sobre o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades a eles
ligada em Portugal. Algum desse material foi saindo em A Máquina do Tempo,
crónica semanal que tenho mantido na revista de domingo do jornal, a Pública.
Percorrido o país, contactadas dezenas de instituições e
particulares, recebidas sugestões de muita gente, resta agradecer a todos,
dizendo que as eventuais virtudes deste trabalho lhes são devidas, e que os
erros e omissões, decerto bastantes, me cabem a mim.
Duas décadas volvidas, as ivestigações sobre o Tempo e a sua multidisciplinaridade prosseguem, como se pode ver aqui.
Ainda, da intervenção que fizemos há 20 anos:
O que é o tempo?
Há o tempo ditado pela natureza e o tempo ditado pelo poder religioso ou político (os ciclos naturais de dia e noite, estações do ano, fases de lua, etc., padronizados pelos poderes religiosos pré-históricos através de locais e classes especiais apropriadoras do tempo – sacerdotes, astrólogos, círculos-calendários de pedra, zigurates, obeliscos, etc.)
Na Europa, há o tempo
ditado em todo o período medieval, emanado da autoridade espiritual suprema – o
papa. A sociedade sem Estados, pulverizada em pequenos territórios senhoriais,
em redor do castelo e do mosteiro, vivia quase sem trocas comerciais com outras
comunidades, as actividades agrícolas de subsistência giravam em volta do tempo
canónico, a que o castelo obedecia.
Com o advento do novo
surto de trocas comerciais entre regiões, com a ascensão das classes dos
comerciantes e dos mesteirais, com o reforço dos poderes políticos dos Estados
em relação à Igreja, o tempo do mosteiro “transfere-se” para a torre do castelo
e, mais tarde, para a torre do burgo. Os relógios são comprados, primeiro a
meias entre bispo, homens-bons e rei ou senhor local, cada vez mais por
encomenda dos homens-bons ou burgueses.
Lentamente, o tempo
canónico vai dando lugar ao tempo laico. Primeiras tentativas de padronização
do tempo surgem nesta altura. Aparece o ponteiro dos minutos, traduzindo a
mentalidade cada vez mais predominante de encarar o tempo como mercadorias –
logo, bem precioso, escasso.
Com a Revolução
Industrial, lentamente, do tempo canónico passa-se completamente ao tempo
laico. Estes dois, públicos, vão dando lugar ao tempo privado. Primeiro, um
tempo que se transporta apenas pelos senhores e pelos burgueses ricos, aqueles
que viajam. Depois, um tempo que se vai proletariado, nas fábricas, primeiro,
com os tempos de produção (Ford foi relojoeiro…), o acordo sobre horários de
trabalho e seus limites, etc. Há um tempo tipicamente burguês, privado – é de
estatuto ter um bom relógio de sala, que ainda se acerta com as horas dadas
pelo relógio do burgo, que por sua vez ainda é acertado pelo relógio de sol…
A partir da I Guerra
Mundial, e vindo dos Estados Unidos, com os soldados, surge o tempo privado e
proletário puro – cada homem tem o seu relógio, de pulso, porque a produção em
série embarateceu um objecto que até aí tinha sido clarista, mágico, de estatuto.
O tempo público, esse, estandardiza-se de vez, mercê das necessidades surgidas
com os transportes públicos – nomeadamente o comboio. É a época das grandes
conferências internacionais sobre a hora, dos fusos horários, das convenções
ainda hoje aceites. Surge a necessidade de “mudança da hora”, no Verão e no
Inverno, para aproveitar melhor a luz solar, adaptando-a aos ciclos de
produção.
O tempo, agora laico,
individual, e ao mesmo tempo universal, globaliza-se ainda mais com o
aparecimento de redes de comunicações físicas, primeiro, virtuais, depois
(World Wide Web), que ligam em tempo real sistemas informáticos de todo o
mundo. Os mercados financeiros já não fecham, funcionam 24 sobre 24 horas,
aceitam-se ordens de compra e venda de títulos a partir de todo o lado, a
qualquer momento. Os fluxos financeiros passar a ser virtuais, o tempo tem que
ser marcado (e homologado por uma identidade idónea) ao segundo. Os bancos
centrais e outros operadores económicos e financeiros globais passam a dispor
de autoridade sobre o tempo (carimbam a hora exacta a que se deu uma
transacção). Cada vez o homem tem mais tempo ao seu dispor, cada vez tem menos
tempo.
Do bastão do pastor, que
media a sobra no chão, para o ceptro do sacerdote, que lê o calendário nas
estrelas. Da liturgia emanada do papa, para os sinos dos mosteiros. Dos Livros
de Horas, para as torres sineiras do burgo. Das torres para as carruagens, primeiro,
para os bolsos, depois. Dos bolsos para os pulsos. Do tempo local ao tempo do
Estado. Do tempo do Estado para o tempo Continental. Deste para o tempo
Universal. Da ordem financeira dada por pombo correio, para o carregar do botão
do computador – o tempo “on line”. Sempre. Em todo o lado (no pulso, no
telemóvel, no écran do computador, na rádio, na televisão, no carro…)
História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal aborda vários aspectos relacionados com o Tempo cronológico, desde os relógios biológicos que cada um de nós tem, obedecendo a ritmos circadianos ou circanuais, até aos primeiros relógios construídos no território a que hoje chamamos Portugal, os alinhamentos megalíticos de há cinco mil anos.
Os relógios de sol, que
vieram com a ocupação romana, e a relojoaria grossa, férrea ou de torre, que
veio com os relojoeiros religiosos e laicos franceses e que se estabilizou com
a aliança matrimonial da dinastia de Aviz com a Casa inglesa de Lencastre, são
igualmente temas abordados.
A introdução dos relógios
portáteis, de sol e mecânicos, por parte da família Behaim, que comerciava em
Lisboa mas era originária da Floresta Negra, é um dos factos novos contidos no
livro.
A introdução dos relógios
mecânicos nas cortes chinesa e japonesa, por intermédio do Padroado Português
do Oriente, nos séculos XVI e XVII, e a sua importância para a fixação dos
ocidentais nessas paragens são aspectos realçados.
Aborda-se o mundo dos
almanaques e dos calendários, durante os últimos cinco séculos em Portugal, bem
como o tempo popular português, com as suas expressões dedicadas ao tema.
O tempo glorioso de D.
João V, em que a corte portuguesa comprava os melhores relógios do mundo,
seguido do desastre do terramoto de 1755, que destruiu grande parte do
património relojoeiro monumental, são referidos. O período do Marquês de
Pombal, em que se assistiu à laicização do tempo nacional, por um lado, e à
fundação da primeira fábrica de relógios portuguesa, por outro, é realçado.
Uma outra novidade do
livro: fixa-se por volta de 1755 a altura em que a noção de segundo aparece
pela primeira vez em Portugal: quando jesuítas fabricam relógios de precisão,
para observarem um eclipse da Lua.
Um “estrangeirado”, João
Jacinto de Magalhães, é uma das figuras mais importantes da comunidade
científica europeia do século XVIII. Fabrica relógios e outros instrumentos
científicos.
Veríssimo Alves Pereira e
Augusto Justiniano de Araújo, amigos, dominam o século XIX português em termos
de relojoaria. O primeiro, inventor e promotor de relógios mecânicos de hora
universal e de relógios de sol que assinalavam sonoramente o meio-dia (meridianos),
regulou o tempo público do Porto e de Lisboa, a partir da Torre dos Clérigos,
do Castelo de São Jorge, ou da Escola Politécnica. O segundo, que também
inventou relógios de hora universal, foi o fundador da Escola de Relojoaria da
Casa Pia.
Algumas colecções
privadas (Carvalho Monteiro, Medeiros e Almeida), ou públicas (família real, no
Palácio da Ajuda) são referidas.
Os casos de A Boa
Reguladora e de A Boa Construtora, exemplos de relojoaria de fabrico nacional,
bem como os de Dimas de Melo Pimenta (introdutor da relojoaria moderna no
Brasil) ou de Germano Silva (construtor de relógios monumentais nos Estados
Unidos) são igualmente tratados.
O estado de abandono
generalizado a que estão votados os relógios de torre em Portugal é realçado ao
longo da obra, defendendo-se um levantamento urgente dos exemplares e a sua
recuperação.
Um último pormenor, sobre
a capa do livro: na foto, o relógio do Arco da Rua Augusta. Apesar de parado,
como a maioria dos relógios públicos deste país, está certo pelo menos duas
vezes por dia….
Desde que a obra póstuma
de Sousa Viterbo sobre o tema da Relojoaria foi publicada, há cerca de um
século, quase mais nada se escreveu sobre uma questão cada vez mais
multidisciplinar, que tem merecido a atenção crescente em todos os países do
Ocidente.
Praticamente um século
depois, eis aqui apenas um ponto de partida para quem se queira interessar
sobre ela. Que não demore mais um século a escrever-se sobre o Tempo, a
Relojoaria e as Mentalidades em Portugal.
Fernando Correia de Oliveira
Lisboa, 26 de Novembro de 2003
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