Faleceu hoje o Comandante Estácio dos Reis. Desapareceu uma das maiores autoridades nacionais em História da Marinharia e da Instrumentação Científica. "Descobridor" de cronómetros de marinha e de astrolábios portugueses, deve-se a ele a introdução no léxico nacional do anglicismo "serendipidade" (acaso feliz). Ainda há pouco tempo tínhamos referido aqui o seu nome, ao ser concretizado um dos seus sonhos - o ressuscitar do Balão do Arsenal ou Balão da Hora
Tivemos o primeiro contacto com Estácio dos Reis há 16 anos, quando pedimos para falar com ele, no âmbito das investigações que estávamos a fazer para a obra História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e da Evolução das Mentalidades (2003, saiba mais aqui). Recebeu-nos na Biblioteca de Marinha (onde foi tirada a foto acima). Desde então, beneficiámos da sua amizade e do seu Saber, sempre tão generosamente disponibilizado.
António Estácio dos Reis nasceu em Lisboa, em 1923, frequentou o Liceu Pedro Nunes e foi admitido na Marinha de Guerra em 1943. Na Reserva da Armada desde 1979 e reformado desde 1991, tem no seu currículo militar cargos como o Comando Naval de Moçambique, uma Missão Militar NATO em Bruxelas, uma passagem pelo Tribunal Militar da Marinha, como juiz, ou pela Embaixada de Portugal em Paris, como Adido Naval.
No campo da investigação, desde 1988 que trabalhava com a Biblioteca Central de Marinha, tendo colaborado com a Comissão Cultural da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura (1982-83), com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, com a Comissão de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, com a EXPO-98. Fez parte da equipa que levou a cabo a edição das Obras de Pedro Nunes, sob a égide da Academia das Ciências de Lisboa.
Membro da Scientific Instrument Society, de Londres, Estácio dos Reis foi um grande divulgador de Ciência. Realizou comunicações em dezenas de congressos científicos em Portugal e no estrangeiro. Centenas de artigos seus, de divulgação científica, estão publicados nas Revista da Armada, Baluarte, Atlantis, Oceanos, Mare Liberum, Gazeta de Matemática, entre outros títulos. Astrolábios Náuticos em Portugal e A Máquina a Vapor, onde trata da introdução deste elemento de modernidade no Portugal do século XIX, são algumas das suas obras.
Com mais de vinte condeocorações militares e civis, Grande Oficial da Ordem Militar de Avis desde 1980 e condecorado pelos Estados de França e do Brasil, foi feito Comendador da Ordem Militar de Santiago e Espada.
Aquando da apresentação do livro História do Tempo em Portugal, em 2003, na Casa-Museu Fundação Medeiros e Almeida, Estácio dos Reis esteve na mesa, juntamente com, entre outros Catalina Pestana, então Provedora da Casa Pia.
Em cima, Estácio dos Reis autografa um dos livros seus que nos foi oferecendo ao longo da última década e meis. estava-se em 2002. Em baixo, de novo na mesa da apresentação de mais um livro nosso. Manuscrito Anónimo de Relojoaria na Academia de Ciências de Liaboa foi o nome da comunicação que então fizemos naquela instituição e da monografia que então publicámos. Estácio dos Reis, mercê das suas investigações quanto a cronómetros de marinha, ajudou-nos nessa altura (2005).
Estácio dos Reis com um membro da Direcção da Academia de Ciências e com dois jornalistas, Roby Amorim e António Valdemar, na comunicação que fizemos à Academia de Ciências
O Professor Nuno Crato, Estácio dos Reis e nós, nos jardins do Instituto Português de Conservação e Restauro José de Figueiredo. Nessa altura, o Comandante estava empenhado no restauro de dois globos Coronelli, que ele tinha identificado. (Leia mais aqui).
Juntamente com os Professores Nuno Crato e Suzana Metello de Nápoles, publicámos Relógios de Sol, na colecção dos CTT. Em baixo, Estácio dos Reis, na apresentação da obra, na Casa-Museu Fundação Medeiros e Almeida.
Estácio dos Reis foi homenageado publicamente a 27 de Setembro de 2012, por um grupo de amigos, em cerimónia ocorrida no Museu de Marinha. Fizemos parte da Comissão de Honra dessa hiomenagem. (Leia mais aqui).
Reproduzimos aqui um artigo que escrevemos há uns anos, para a revista Homem Magazine, e onde conversámos com Estácio dos Reis.
Investigador da Ciência Náutica condecorado A sorte de se conhecer o “sr. Serendipidade”
Fernando Correia de Oliveira
Acaba de ser feito Comendador da Ordem Militar de Santiago e Espada, reconhecimento de décadas de investigação sobre a Ciência Náutica. O Comandante Estácio dos Reis, aos 81 anos, continua a “dar novos mundos ao mundo” com o seu trabalho de levantamento das glórias portuguesas, muitas delas esquecidas e desprezadas.
Para quem tem o privilégio de privar com ele, há dois conceitos que, há muitos anos fazem parte do seu mundo, e que não se cansa de referir e explicar – colecções imaginárias e serendipidade.
O primeiro, diz respeito a uma frustração pragmaticamente resolvida – Estácio dos Reis, não tendo dinheiro para adquirir os belos instrumentos científicos que estuda, classifica, procura proteger, contenta-se com o facto de as ir arrumando por fichas, no seu mais ou menos organizado arquivo. E, quando publica um trabalho, vai buscar a essa sua vasta colecção imaginária um sextante, um nónio, um cronómetro de marinha… com o mesmo carinho como se as peças fossem suas e estivessem realmente expostas numa qualquer vitrina de sua casa.
Quanto à serendipidade, é talvez o conceito que tem servido mais de bordão a este investigador incansável. A palavra foi inventada em 1754 pelo intelectual inglês Horace Walpole. Há precisamente 250 anos, escrevia ele a um amigo, impressionado por ter encontrado, por mero acaso, um elemento heráldico que era crucial para uma investigação em curso. Não encontrando no léxico inglês conceito que exprimisse de forma precisa esse tipo de “feliz acaso”, inventou a palavra serendipity. E esclarecia que a tinha ido buscar a um conto persa, Os três Príncipes de Serendipe. Nesse conto, é referida a história dos filhos de Jafer, um rei-filósofo de Serendip ou Serembid, o antigo nome do Ceilão – a Trapobana que Camões refere – e que hoje é o Sri Lanka. Os três príncipes, acompanhando o pai em viagem, vão fazendo, por acidente, descobertas de coisas agradáveis que não procuravam.
Só em 1875 o novo vocábulo passa a ser usado numa revista literária e apenas em 1909 entra pela primeira vez num dicionário. Em português, serendipidade entra pela primeira vez num dicionário em 1982, fixada no Rio de Janeiro por António Houaiss. Estácio dos Reis sente-se bafejado pela serendipidade. Investigações que faz sobre um determinado objecto levam-no a descobrir elementos para futuras investigações ou permitem-lhe encerrar antigas. Conversas adjacentes com outros investigadores levam a soluções inesperadas.
“A serendipidade não é normalmente assinalada por aqueles que são bafejados por ela”, afirma, entre o divertido e o jocoso. “Quem frequenta as universidades ou os laboratórios, já deve ter ouvido, em conversa de corredores, frases do tipo – ‘ele não descobriu coisa nenhuma, teve foi muita sorte. É por isso que nunca são os próprios a falar de serendipidade, está em causa o seu próprio prestígio…”.
Estácio dos Reis, um cultor do vocábulo, é mesmo considerado, na Internet, como o “pai” do conceito no nosso país, coisa que ele se apresta a desmentir. “Em Portugal, é Amorim da Costa que, em 1986, utiliza pela primeira vez a palavra, na sua obra Introdução à História e Filosofia da Ciência”, precisa.
O Comandante especialista em acasos felizes faz questão de notar que “a serendipidade cria, ela própria, serendipidade”.
A decadência portuguesa
Foi notável a contribuição dos portugueses nas actividades ligadas ao mar, a partir do século XV. Inventando ou adaptando métodos de navegação simples e instrumentos de fácil manejo, “foi possível dar aos pilotos, especialmente aos menos letrados, a indispensável ferramenta de trabalho”, recorda Estácio dos Reis. “Apesar das limitações, como por exemplo a impossibilidade de determinar com rigor a longitude, os portugueses chegaram aos quatro cantos do mundo.
Mas a decadência chegou. “A estrela que iluminou os nossos nautas entrou em declínio nesse fatídico século XVIII”, acusa o especialista. “Os portugueses, que sempre fizeram os astrolábios náuticos, os quadrantes ou as ampulhetas, passaram a importá-los quando uma nova vaga de instrumentos entrou a bordo dos navios”, diz. Foi o cronómetro que permitiu calcular a longitude no mar com exactidão e essa descoberta tecnológica não partiu de Lisboa, mas de Londres. “Foi, também, essa nova famosa família de instrumentos, de que o sextante é o mais conhecido, que permitiu medir ângulos com uma precisão que os portugueses nunca sonharam”, recorda Estácio dos Reis. “Estou a mentir: houve um português que sonhou. Chamava-se Pedro Nunes e inventou o nónio. E foi essa genial ideia que veio a servir para que Pierre Vernier, dois séculos mais tarde, desse ao sextante o rigor de que os nautas passaram a usufruir na medição da altura dos astros”.
Talvez tenha sido esse o ponto crucial que marca a decadência portuguesa e a ascensão das novas potências marítimas – França, Holanda, Inglaterra – e o adivinhar da Revolução Industrial, que Portugal perdeu inexoravelmente.
“Também a cartografia, que os portugueses levaram aos mais alto nível, se extinguiu como que por encanto”, lamenta o especialista. “Nos anos oitocentos, não só não tivemos cartógrafos, como a cartografia que praticámos com tanto êxito se tornou obsoleta. Nasce uma nova cartografia, baseada no rigoroso cálculo da longitude e desenhada segundo o método das latitudes crescidas, que se deve a Gerard Mercator”.
E hoje, porque é que existe um desprezo relativo nos meios académicos portugueses pela História da Ciência e pela preservação dos instrumentos científicos existentes em Portugal? Para o Comandante Estácio dos Reis não se está perante um desprezo puro e simples, antes a situação actual resulta especialmente do facto de não ter havido nas Universidades, até há pouco tempo, cadeiras que versem esse tema. “Mas as coisas estão a melhorar”, diz. “Em 2000 tivemos em Évora e Aveiro o 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e em 2003 o 2º Congresso, no Rio de Janeiro, ambos com grande participação. Quanto à história da Náutica, já vamos em 12 reuniões, que têm a participação de espanhóis e brasileiros”. E o desprezo que se sente em relação à instrumentação, usada e depois quase sempre ignorada, colocada numa qualquer cave ou sótão ou, mais grave, deitada para o lixo? “Apesar deste interesse, isso não quer dizer que quem estuda a História da Ciência se possa interessar por instrumentos científicos”, reconhece o especialista. “De repente, só encontro alguns e poucos locais em que se cuidem destes instrumentos. O Museu de Ciência, de Lisboa, o Museu de Marinha, o Gabinete de Física da Universidade de Coimbra, um museu existente na Faculdade de Engenharia do Porto… e não me lembro de mais”. Estácio dos Reis, que fala sempre das suas “colecções imaginárias” – os instrumentos científicos que estuda, para os quais chama a atenção, ajuda a recuperar, mas que não tem dinheiro para, pessoalmente, adquirir – admite: “Os instrumentos científicos não atraem os portugueses. Não há coleccionadores, que são, efectivamente, quem faz os museus”. A única excepção de que Estácio dos Reis se recorda é do leilão realizado há uns anos, em que apareceram instrumentos científicos. “Foi o do meu saudoso amigo Francisco Hipólito Raposo”.
De uma generosidade rara em relação aos outros investigadores – está sempre pronto a partilhar fontes, a ceder documentos, a recomendar e abrir contactos em Portugal e no estrangeiro, Estácio dos Reis é, ele próprio, um caso sério de serendipidade para quem tenha a sorte de com ele se cruzar.
Em Novembro de 2013, Estácio dos Reis publicava as suas Memórias, a que deu o título "À Procura da Arca Perdida". Já fisicamente muito fragilizado, com grandes dificuldades de visão. Remeter-se-ia a partir de então para para a reclusão de casa. (leia mais aqui).
A última foto com Estácio dos Reis. Até sempre, Comandante!
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