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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Memória - Um boticário atrevido, bússolas, ampulhetas e clepsidras


Um boticário atrevido, bússolas, ampulhetas e clepsidras

Fernando Correia de Oliveira*

Para quem queira fazer uma história da relojoaria portuguesa, há uma obra castelhana, ignorada até hoje pelos poucos especialistas que sobre o tema se têm debruçado, mas que é essencial para a compreensão do período que imediatamente antecede ou vai de 1580 a 1640, altura em que apenas uma Coroa mandou em Lisboa e Madrid.

Dissertação sobre a história da náutica e das ciências matemáticas que contribuíram para o seu progresso entre os espanhóis é uma obra póstuma, da autoria de Martín Fernàndez de Navarrete, aparecida em 1846, e de que não conhecemos tradução portuguesa.

Navegador e escritor, natural de Logroño, Navarrete (1765-1844) foi oficial da Marinha de guerra espanhola, combateu contra os britânicos em Gibraltar e contra os franceses, nomeadamente no cerco de Toulon. Embora homem de acção, sempre se interessou pelos temas históricos — a sua obra mais notável é a Colecção das viagens e descobrimentos que fizeram por mar os espanhóis desde o final do século XV. Durante muitos anos foi director da Academia Espanhola de História.

Na supracitada Dissertação, Navarrete toma uma posição muito equilibrada, citando cientistas portugueses em profusão, não escondendo a sua nacionalidade, não lhes poupando elogios, nem deixando de dizer que os seus trabalhos contribuíram decisivamente para o avanço da ciência em Espanha. Caso raro, entre a historiografia do país vizinho.

Era uma época de grande rivalidade entre as duas coroas ibéricas, que lutavam no mar pela supremacia à escala mundial. Que contratavam no resto do mundo civilizado os técnicos e cientistas pagos a peso de ouro para irem viver para Lisboa ou Madrid. Que aliciavam ininterruptamente os navegadores ou cartógrafos do Estado vizinho para deixarem o seu país e passarem a servir o rival.

Citando o papel primordial de Abraão Zacuto, o judeu natural de Salamanca que fugiu em 1492 para Portugal, devido à perseguição dos Reis Católicos, Navarrete menciona os navegadores portugueses Francisco Faleiro ou Fernão de Magalhães, que o imperador Carlos V fez cavaleiros da Ordem de Santiago, pelos serviços prestados a Espanha.

Fala da importância crucial de Pedro Nunes e das suas obras para o avanço do conhecimento náutico espanhol, salienta o também português Diogo ou Jacob de Sá, que seria o primeiro a refutar as teorias de Nunes, a partir de Paris. Refere Alonso de Santa Cruz, um sevilhano com grandes ligações a Portugal, cosmógrafo de Carlos V e que, após a morte deste, serviu Filipe II. A sua mais célebre obra é Das longitudes.

Para quem se aventurava no mar alto, a questão da determinação da latitude há muito que estava resolvida. Mas o problema da longitude teimava em não ser resolvido e todos os cérebros científicos de quinhentos, seiscentos e setecentos tentaram a sua sorte para o resolver.

Alonso de Santa Cruz refere na sua obra que um dos métodos de determinar a longitude se baseava na variação da agulha da bússola. Diz que o primeiro que procurou desenvolvê-lo foi um tal Felipe Guillén, boticário de Sevilha, “muito entendido e engenhoso, grande jogador de xadrez [...], informado pelos pilotos das diferenças que se notavam na agulha navegando desde Sevilha até Nova Espanha”. Decidiu este personagem passar-se para Portugal em 1525, crendo aqui ser melhor remunerado pela sua invenção. Apresentando-se ao rei D. João II, este recebeu-o com grandes recompensas.

“Guillén fez um certo instrumento que era um círculo graduado, com uma agulha pequena e três fios, e observando o sol em alturas iguais antes e depois do meio-dia, e achando a linha meridiana, dava a conhecer a variação da agulha, e supondo-a regular, deduzia por ela a longitude”, escreve Navarrete. “Este instrumento tornou-se muito comum e foi muito aplaudido a princípio em Portugal entre os homens doutos, para que os pilotos o levassem nas naus”. Mas, com a aplicação prática da invenção, a pouco e pouco, se demonstrou que ela não era de grande valia.

Desejando adquirir informações suplementares sobre a Carreira da Índia, Santa Cruz partiu para Lisboa em 1545. Aqui, contactou os pilotos portugueses, comprou-lhes clandestinamente os livros de bordo e roteiros. Falou mesmo com D. João de Castro, a suma autoridade mundial na altura quanto à navegação de e para a Índia, do Mar Vermelho, do Suez. Garante Navarrete que o português deu ao espião espanhol “mapas e livros, com a promessa de que ele não os mostrasse a ninguém em Portugal”. E D. João de Castro confirmou-lhe que o instrumento inventado por Guillén “só se podia usar para observar a variação de longitude em terra, porque no mar não era de qualquer proveito, dados os balanços das naus”.

O especialista português Estácio dos Reis contesta esta interpretação, frisando-nos que, “o que está em jogo é a correspondência declinação/longitude, que não existe nem no mar, nem em terra”. E acrescenta-nos: “O pioneirismo, mesmo na asneira, deve ser claro: ele pertence a João de Lisboa, que o expõe pela primeira vez no Tratado da Agulha de Marear, de 1514”. Foi de facto D. João de Castro que desacreditou o método, no seu Roteiro de Lisboa a Goa, de 1538.

Santa Cruz passa depois a um outro método de saber a longitude, através dos relógios. Já se tinha experimentado fazê-lo das mais diversas maneiras — regulando-os às 24 horas precisas. E fala de vários tipos de relógios — uns com rodas de aço, cordas e pesos, outros com cordas de viola e aço, outros de areia como as ampulhetas, outros com água em lugar de areia.

A ampulheta ou relógio de areia é um instrumento de medição do tempo de invenção relativamente recente. A primeira ilustração conhecida é um fresco italiano datado de 1337 ou 1339, que se encontra no Palazzo Pubblico em Siena. Mostra-nos uma forma de vidro, com dois balões em cima um do outro, unidos pelos gargalos. Um diafragma com um pequeno furo, no meio, limitava o fluxo dos grãos de areia que iam passando de um para o outro dos balões.

Uma ampulheta é muito mais exacta que uma clepsidra, embora pareçam basear-se nos mesmos princípios. Se a forma cónica dos balões for a mesma que o ângulo de repouso de um monte de areia, o ritmo a que a areia se escoa não depende da sua altura. Além disso, as ampulhetas de boa qualidade, mesmo as feitas há séculos, não eram cheias de areia mas de fino pó de casca de ovo, que corre com mais precisão.

As ampulhetas foram os primeiros relógios de uma era industrial em nascimento, das primeiras fábricas. Uma ilustração no Das Feuerwerkpuch, um tratado alemão sobre a manufactura de fogo-de-artifício, publicado em 1450, mostra uma fase de produção numa fábrica de foguetes a ser cronometrada por uma ampulheta. Os relógios de areia eram também muito comuns no mar, porque, se suspensos, continuavam a trabalhar razoavelmente bem num barco, mesmo em águas agitadas. Aos moços de bordo, na Era das Descobertas, competia a importantíssima missão de virar a ampulheta de bordo de meia em meia hora, logo que o último grão de areia tivesse caído, anunciando ao mesmo tempo, em voz alta, o número de vezes que o instrumento tinha sido virado. Esta era a única maneira de determinar as mudanças de quarto ou de achar, de forma muito errática, a longitude a que se encontrava o navio. De facto, as ampulhetas, sucessivamente viradas, iam acumulando erros grosseiros, não evitando desastres em vidas e bens, pois capitães que julgavam estar a muitas milhas de um determinado ponto da costa, embatiam inesperadamente em baixios ou rochas de longitude muito diferente.

Voltando a Navarrete, citando Das longitudes, ele fala de relógios cujos mecanismos dependiam do vento, que fazia mover pesos e, com eles, as cordas. Ou de relógios à base de mechas empapadas em azeite e que, acesas, a sua duração fosse sempre de 24 horas.

“Conhecida pois exactamente no porto de saída a hora por meio de uma observação astronómica, e regulando por ela um relógio, era claro que averiguando por outra observação semelhante a hora no ponto de chegada, e comparando-a com a do relógio, a diferença daria a da longitude entre ambos os pontos”, explica Navarrete. “Mas isso supunha uma igualdade e constância no movimento dos relógios, que não poderia esperar-se da sua mesquinha construção, nem do tipo dos seus materiais, expostos sempre ao fluxo e alteração do mar e da atmosfera”.

Santa Cruz, citado por Navarrete, concluía dizendo que “por via dos relógios será difícil coisa saber a longitude, com a precisão que se requer”.

A questão de “congelar” no mar, num navio em andamento, o tempo medido em terra, no ponto de partida, apenas viria a ser revolvida em 1761 pelo inglês John Harrison. O chamado cronómetro de marinha permitiria desde então medir com exactidão a longitude no mar.

Uma coisa que Alonso de Santa Cruz não refere na sua Das Longitudes e que Navarrete também não adianta na sua Dissertação é a sorte que coube ao tal boticário sevilhano Felipe Guillén, que prometera a D. João II a resolução do problema da longitude.

As fontes portuguesas garantem que este farmacêutico “grande lógico e muito eloquente de muito boa prática, que entre muitos sabedores o folgavam de ouvir, tinha alguma coisa de matemático”. Depois de dizer ao rei português que “lhe queria dar a arte de leste a oeste que tinha achada”, Guillén “fez muitos instrumentos, entre eles um astrolábio de tomar o sol a toda a hora”. Depois, “praticou a arte perante Francisco de Melo, que então era o melhor matemático que havia no reino, e outros muitos que para isso se ajuntaram por mandado de sua alteza”. Parece que, à primeira, “todos aprovaram a arte por boa”, pelo que D. João II lhe fez mercê de cem mil réis de tença.

Mas o rei, apesar de tudo algo desconfiado, mandou Simão Fernandes, astrónomo e matemático da corte, falar com o espanhol. “Tudo o que o castelhano falou com ele que viu que o entendia e que fazia de tudo falso, quis fugir para Castela, descobriu-se a um João Rodrigues, português, que o mandou dizer a el rei que o mandou prender em Aldeia Galega, estando em um cavalo de posta, sendo preso”.

O escândalo foi tal, na época, que até Gil Vicente dedicou umas trovas ao atrevido, “Com sobra de pensamientos”, onde o pai do teatro português goza com a figura de quem prometia “tomar o sol pelo rabo em qualquer hora do dia” mas que não fora mais do que boticário “hasta ver esta ciudad” (Lisboa).

*Jornalista e investigador na área do Tempo, da Relojoaria e da evolução das Mentalidades a eles ligada (artigo publicado na revista Espiral)

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