No exame do segundo grau fiquei distinto; o Abílio ficou suficiente. Uma tristeza! Compareceu de calça comprida, colete branco, a "châtelaine" de D. Claudina fazendo de corrente de relógio. Como roía nas unhas, o relógio era um descanso para encher o minuto de ignorância, atrapalhado com aquilo de "Qual foi o rei que mandou plantar o pinhal de Leiria?".
O Sr. Fontes, o professor das Cinco, que era membro do júri, bem cochichava de lá: "D.Dinis... D.Dinis!..." O Abílio, porém, doido por toiros, saíra-se com "D. Afonso Quarto, o Bravo" - e teve a raposa por um triz.
Cá fora, esperavam-nos meu pai e o dele ao lado do Sr. Professor. O mestre não me disse palavra; mas a ele não o largou:
- Este cabeça de boga que me vai estragar os resultados!
O pai do Abílio estava com vergonha do filho, com raiva ao filho, com raiva ao Sr. Professor, com pena de si, do Sr. Professor e do filho:
- Pedaço de mariola! (Olha como tens esse colarinho!) E fazer-me gastar um dinheirão para ver isto!
- Este cabeça de boga, pôr-me uma nódoa na pauta! - teimava o Sr. Professor.
- Pedaço de mariola! (Olha como tens esse colarinho!) E fazer-me gastar um dinheirão para ver isto!
- Este cabeça de boga, pôr-me uma nódoa na pauta! - teimava o Sr. Professor.
O pai do Abílio agachara-se um pouco para lhe limpar as lágrimas, mas carregava no lenço e obrigava-o a assoar-se sem precisão nenhuma:
- Força!... O toleirão, que era o primeiro em decimais! (Ó pequeno, não chores, que o Sr. Professor manda na Escola, e em ti quem manda sou eu!)
Mas o Abílio chorava mordido e com os olhos raiados de sangue. Quando proclamaram os resultados, O Sr. Professor abrandou.
- "Abílio Cardoso de Aguiar, suficiente. Mateus Queimado Gomes de Meneses, óptimo".
Meu Pai deu um beijo no Abílio antes de me beijar a mim. O pai do Abílio apertou solenemente a mão de meu Pai:
- Ah!, Senhor Meneses! Que consolação, um filho assim!
Estávamos todos mais ou menos vexados; só o Abílio deixou de chorar. Não se sabia bem se por escapar à raposa, se por qualquer outra coisa. Num ímpeto de todo o seu ser atirou-me os braços e disse-me:
- Ó Mateus, ainda bem!
E foi nos olhos dele que eu me senti distinto.
Vitorino Nemésio (1901 - 1978), poeta e escritor português, in O Mistério do Paço do Milhafre (contos)
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