Jovem estudante, aperfeiçoou o francês no sul de França, diplomou-se em engenharia no King’s College, de Londres. Aos 22 anos inicia a sua carreira no mundo do petróleo, visitando os poços de Baku. Prevendo a importância que aquela matéria-prima iria ter nas décadas seguintes, incentiva o Governo otomano e grandes investidores internacionais a organizarem racionalmente a exploração petrolífera. É um dos fundadores da Shell. Simultaneamente cidadão do Império Otomano e do Império Britânico, defende o interesse do Oriente em Paris e Londres, os interesses das potências ocidentais na Ásia Menor e na região do Golfo Pérsico. Fica conhecido como “o senhor cinco por cento” por receber essa percentagem nos lucros da indústria petrolífera que ajudou a modernizar naquela região do globo.
Desde cedo coleccionador de arte, viajante pelos sítios mais remotos e exóticos, mas também frequentador dos cenários mais cosmopolitas, Gulbenkian conseguiu uma colecção muito ecléctica, única no mundo – cerca de seis mil peças, desde a Antiguidade até ao princípio do século XX. As suas colecções de pintura (Rubens, Van Dyck, Rembrandt, Renoir, Manet, Degas, Monet, entre muitos outros) ou de artefactos da Ásia Menor são ímpares.
Em Abril de 1942, em plena II Guerra Mundial, Calouste Gulbenkian visita pela primeira vez Portugal. A partir de então, volta regularmente, em busca de uma paz que não existe no resto da Europa. O Hotel Aviz, em Lisboa (onde hoje se encontra o Sheraton), foi a sua casa durante treze anos. Por testamento, escolhe a cidade de Lisboa para sede da Fundação que entretanto criou e que é hoje uma das maiores do mundo, com trabalho nos campos caritativo, artístico, educativo e científico.
No Museu Calouste Gulbenkian há cerca de duas dezenas de relógios. Desde logo, três relógios pessoais do milionário filantropo – todos com caixa em ouro, um deles é da autoria do relojoeiro inglês Sir John Bennett, fornecedor do Royal Observatory. É uma peça do final do século XIX, marca horas, minutos e segundos, dispondo ainda de um cronógrafo com ponteiro ao centro, marcando até 30 segundos, com escala até aos centésimos. Gravado com o monograma “CG”, ostenta ainda as divisas “Honi Soit Qui Mal y Pense” e “Dieu et Mon Droit”. Isabel Pereira Coutinho, que durante quatro décadas foi a conservadora de Mobiliário e Relojoaria do Museu, informa-nos ainda que, nas Reservas, há mais dois relógios de bolso usados por Gulbenkian, ambos da manufactura suíça Patek Philippe.
Depois, há exemplares de caixa alta e de mesa. Segundo Isabel Pereira Coutinho, o coleccionador arménio terá privilegiado mais o relógio como objecto de arte do que como instrumento puro de medição do tempo. Por outras palavras, e como temos vindo a referir, há muitas vezes mais gosto pelo invólucro estético do que pelo miolo mecânico. Daí, a predominância de exemplares da escola francesa, em detrimento dos da escola inglesa no caso da colecção Gulbenkian.
Isabel Pereira Coutinho salienta seis peças, representativas de uma certa evolução estilística e inseridas nas artes decorativas francesas do século XVIII, todas de relojoeiros parisienses.
Apesar de ser um objecto decorativo, desde logo uma peça de mesa, de Jacques Thuret (1669-1738), com caixa de autoria do ebanista André-Charles Boulle (1642-17332), dado que o seu mecanismo dispõe de várias complicações relojoeiras: indicações de dia, mês, fazes de lua, hora do nascer e pôr do sol.
Depois, um relógio de pé alto, regulador (assim chamado devido ao grau de precisão do seu mecanismo, que servia para regular outros relógios), com pêndulo compensado, de Jean-André Le Paute (1720-1789). Com uma exuberante caixa em carvalho marchetado a pau rosa e pau violeta, da autoria de um dos mais conhecidos ebanistas do século XVIII, Bernard (II) van Risen Bourg, indica horas, minutos e segundos.
Isabel Pereira Coutinho aponta depois para quatro peças em bronze, de grande valor decorativo e relativo valor relojoeiro: um exemplar de parede, com mecanismo de Jacques Lemazurier (mestre em 1724) e trabalho de caixa do bronzista Jacques Caffieri, “escultor, fundidor e cinzelador do Rei”; um de mesa, com mecanismo de Nicolas-Charles Dutertre, ou Du Tertre (c. 1715-1793) e bronzista desconhecido, um curioso trabalho de síntese do estilo “rocaille”, com uma figura de um chinês a abraçar o relógio, montado num javali, que por sua vez se encontra numa base rochosa; um exemplar de chaminé, com máquina de Antide Janvier (1751-1835) e caixa em bronze de Pierre-Antoine Fullet (? – 1783), ostentando uma figura de Urânia; finalmente, mais um relógio de mesa, ainda de Jean-Louis Prieur (act. 1765-1783) e bronzista desconhecido, numa caixa em forma de urna, tendo a particularidade de indicar as horas e os minutos através de duas placas, que giram independentes e se podem ler mediante pontos fixos, no caso, o dedo de uma musa, para as horas, e a seta de um cupido, para os minutos.
“Um relógio não é só um mecanismo”, faz notas Isabel Pereira Coutinho. “Este faz um todo com a caixa que o contém, a moldura que o envolve, o objecto que o integra. Pode dizer-se que um relógio se encontra, nesta fase, o Século das Luzes, na confluência de várias artes. Se ao relojoeiro compete o fabrico da máquina, ao bronzista, ao ebanista, ao escultor, ao ourives, ao dourador, compete conceber e executar, no todo ou em parte, o seu invólucro”.
Por razões puramente relojoeiras, ou por motivos estéticos, impõe-se pois aos apreciadores um olhar pela colecção de relógios do Museu Calouste Gulbenkian. Além das outras variadas e valiosas colecções, claro.
Para informações sobre o Museu e como o visitar, vá aqui.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e da Evolução das Mentalidades (Diamantouro, 2003)
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