Camilo Castelo Branco é, para muitos, o “mais português” dos escritores do novecentos, retratando como ninguém os quadros de um pequeno Portugal, rural ou saloiamente urbano, mas “querido”, contrastando com o “realismo” mais cosmopolita e mais “bota-abaixo” de um Eça de Queiroz.
Eusébio Macário é o primeiro dos “romances realistas” de Camilo. Para os especialistas, esta obra menor do ponto de vista literário, marcando o início do declínio do romancista é, no entanto, importante na bibliografia camiliana, porque constitui uma ruptura com o tradicionalismo do autor.
Nestes “romances realistas” não há uma obsessão pela redenção do pecado. Pelo contrário, as personagens corrompem moralmente os costumes, sem remorsos.
Parece que a ideia de mudar de estilo terá surgido a Camilo depois de perceber que vinha aí uma nova corrente literária. Terá tentado imitar ou combater?
No prefácio à segunda edição de Eusébio Macário, é ele próprio quem diz: “não intentei ridicularizar a escola realista. Quando apareceram O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e os romances de Teixeira de Queiroz [Eça], admirei-os, e escrevi ingenuamente o testemunho da minha admiração. Creio que, hoje em dia, novela escrita doutro feitio, não vinga. Eu não conhecia Zola e ainda agora apenas e escassamente o conheço de o ouvir apreciar a uma pessoa da minha família que me fez compreender a escola com duas palavras: ‘É a tua velha escola com uma adjectivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência compreendida na ‘Introdução aos três reinos’. Além disso, tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a sentimentalidade; derivar a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsabilidade’. Compreendi, e achei que eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava, quando Balzac tinha em mim o mais inábil e ordinário dos seus discípulos”.
Assim escrevia Camilo, a partir de São Miguel de Seide, em Setembro de 1870, explicando o seu Eusébio Macário, uma obra dedicada à “amante querida”, Ana Plácido. Na primeira edição, Camilo dirigira-se a ela: “Minha querida amiga. Perguntaste-me se um velho escritor de antigas novelas poderia escrever, segundo os processos novos, um romance com todos os ‘tiques’ do estilo realista. Respondi temerariamente que sim e tu apostaste que não. Venho depositar no teu regaço o romance, e na tua mão o beijo da aposta que perdi”.
As Edições Caixotim, do Porto, estão a editar uma colecção de “Obras de Camilo Castelo Branco”, sob a direcção de Aníbal Pinto de Castro. Num dos volumes, com prefácio e fixação do texto por J. Cândido Martins (a partir da última edição feita em vida pelo autor), reúne-se precisamente Eusébio Macário - História Natural e Social de uma Família no Tempo dos Cabrais e a sua “continuação”, A Corja. Para Cândido Martins, estas duas obras são “um magistral exercício de paródia dos códigos literários e ideológicos que nortearam o Realismo”.
Voltando a Camilo e ao prefácio da segunda edição: “e tão vaidoso fiquei do Eusébio Macário que o reputo o mais banal, mais oco e mais insignificante romance que ainda alinhavei para as fancarias da literatura de pacotilha. Se eu o não escrevesse dum jacto, e sem intermissões de reflexão, carpir-me-ia do tempo malbaratado”.
Para uma História do Tempo em Portugal, as peripécias com o farmacêutico Eusébio Macário e respectiva família tem um interesse documental interessante. Desde logo, porque será a única obra de ficção portuguesa que começa por descrever, de forma tão completa, um relógio:
“Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado de 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda com quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da tripla cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira, crassa e grossa de vaca barrosã, penteado à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a encastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, dum vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hecate de Shakespeare”.
Ora, esse relógio existe. Está numa das salas da residência de Camilo Castelo Branco, agora transformada em museu.
A pista da semana é pois a Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão, que tem vários outros relógios do quotidiano do escritor.
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