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A daily stopover, where Time is written. A blog of Todo o Tempo do Mundo © / All a World on Time © universe. Apeadeiro onde o Tempo se escreve, diariamente. Um blog do universo Todo o Tempo do Mundo © All a World on Time ©)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

José Luís Saldanha Sanches (1944 - 2010)

Era um fim de tarde chuvoso e a noite tinha aparecido pouco depois das 5. O Inverno era, como tudo em redor, cinzento. Estava-se em Dezembro de 1973. A meu lado, de pasta, caminhava o Manuel Pita, o meu controleiro. Íamos com passo apressado, quase a correr. Saídos da Cantina Velha, descíamos a Avenida, desde a Cidade Universitária até Entre Campos, estávamos quase a chegar à Cantina Nova. Falávamos da actividade associativa em Direito e das tarefas que me cabiam. De repente, pelo meu lado direito, aparece um vulto, que se me cola - pronto! estávamos tramados, era a PIDE... O Pita apenas disse, dirigindo-se ao estranho que acabara de se nos juntar - Camarada, este é o... e disse o meu pseudónimo. A mim, referiu: Camarada, este é o camarada José Luís Saldanha Sanches. Um aperto de mão, mais uns passos em comum, uma despedida habitual - Força, camarada! E a inesperada companhia desaparecia tão rapidamente como chegara. Pudera! Soube depois que estava em situação de clandestinidade.

E o caloiro de Direito ficou a conhecer aquele que já era então uma lenda. Eu até julgava, na altura, que tinha acabado de conhecer o líder do MRPP, só depois de 25 de Abril de 1974 ouvi falar de Arnaldo Matos.

O tempo passou, ambos saímos do MRPP, mas a amizade manteve-se: José Luís Saldanha Sanches foi das pessoas que conheci com maior coragem física - e muitas histórias se podiam contar sobre isso; e das pessoas que maior coragem moral teve ao longo do seu percurso político, académico, cívico. Sempre que nos cruzávamos, o seu humor 200 por cento céptico provocava em mim o despertar para realidades inesperadas.

Estação Cronográfica é um blog sobre Tempo, mas não renega o seu próprio tempo - passado, presente e futuro. E, por isso, honra hoje a memória de um Cidadão de corpo inteiro.
A notícia da Lusa:

Lisboa, 14 mai (Lusa) - Fiscalista, professor universitário, comentador político e jurisconsulto são apenas algumas das várias actividades desempenhadas por José Luís Saldanha Sanches, que morreu hoje, aos 66 anos, em Lisboa, vítima de cancro.

Nascido a 11 de março de 1944, o percurso de Saldanha Sanches foi marcado pela irreverência, que sempre o acompanhou na juventude, em especial na década de 1970, quando se tornou militante do PCTP/MRPP.

Juntamente com destacadas figuras da política portuguesa, como a atual procuradora geral adjunta Maria José Morgado, com quem casou, e José Manuel Durão Barroso, ex-primeiro ministro e presidente da Comissão Europeia, Saldanha Sanches enfrentou o regime da altura, tendo sido mantido preso durante vários anos.

Em 1980, Saldanha Sanches licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com a classificação de 16 valores. Seis anos mais tarde, obteve o grau de Mestre em Ciências Jurídico-Económicas e, em 1996, o Doutoramento, na mesma área e na mesma instituição académica, com a classificação de Bom com Distinção.

A partir de então, o fiscalista passou a lecionar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, primeiro como assistente, depois como professor auxiliar e, por fim, como docente associado e regente em cursos de mestrado.

Ao longo da sua vida profissional, Saldanha Sanches redigiu inúmeros artigos e livros, sobretudo sobre questões relacionadas com a tributação do lucro de empresas.

No currículo do fiscalista destacam-se ainda cargos no Centro de Estudos Fiscais, entre 1984 e 1996, no Conselho Nacional da Fiscalidade, entre 1996 e 2000, além de ter sido ainda membro fundador da "European Association of Tax Law Professors".

Na sua biografia conta-se ainda a participação, entre fevereiro e setembro de 1997, na Comissão Monti para a Reforma dos Impostos sobre o Rendimento e Representação de Portugal, por nomeação do ex-ministro da Finanças António Sousa Franco.

Nos últimos anos, Saldanha Sanches foi comentador político e económico na SIC Notícias, além de ter sido mandatário do socialista António Costa, nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa.

Saldanha Sanches estava internado há três semanas no Hospital de Santa Maria, onde morreu cerca das 02:00, segundo fonte daquela unidade hospitalar.


No funeral, a despedida de Maria José Morgado:

Despedida eterna

Zé Luis: começámos esta tua última viagem (tu gostavas de viagens) na cama 56 dos serviços de cirurgia 1 do Hospital de Santa Maria. Lia-te poesia e um dia parámos neste poema da Sophia de Mello Breyner:

”Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A Força dos teus sonhos é tão forte,
Que tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”.

Assim foi.

No teu visionário e intenso mundo, a voracidade de um cancro traiçoeiro não te consumiu a alegria, a coragem, a liberdade.

Entraste pela morte dentro de olhos abertos. O mundo que habitavas era rico de ideias, de sonhos, de projectos, de honradez e carinho.

Percebemos o que ia acontecer quando no fundo do teu olhar sorridente brilhava uma estrela de tristeza. Quando te deixava ao fim do dia na cama 56 e te trazia no coração enquanto descia a Alameda da Cidade Universitária a respirar o teu ar da Universidade, das aulas e dos alunos que adoravas, do futuro em que acreditavas sempre.

Foste intolerável com a corrupção, com os cobardes e oportunistas. Não suportavas facilidades. Resististe à sordidez, à subserviência, à canalhice disfarçada de respeitabilidade e morreste como sempre viveste - livre.

Uma palavra para aqueles que te acompanharam nesta última viagem: para os melhores médicos do mundo, para as melhores equipas de enfermagem e de apoio, num exemplo de inexcedível dedicação ao serviço médico público. Vivi com emoção diária o carinho com que te cuidaram.

Uma palavra de gratidão sentida para o Professor Luis Costa e para o Paulo Costa. E para um velho amigo de sempre o Miguel.

Também para Laura e para o Jorge e para a minha mãe e toda a família que nunca te deixou.

Por fim uma palavra para aqueles amigos que inventaram uma barricada contra a morte no serviço de cirurgia 1, cama 56, e te ajudaram a escrever, a pensar, a continuar a trabalhar: o João Gama, o João Pereira e senhor Albuquerque, cada um à sua maneira.

Suspiraste nos meus braços pela última vez cerca da 1,15 da madrugada do dia 14 de Maio.

Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos.

Provavelmente uma saudade ridícula, perante a força do exemplo e da obra que nos deixaste e me foi trazido por todos aqueles que te homenagearam – a quem deixo a tua eterna gratidão.

Tenham a coragem de continuar.

[16.05.2010 - Maria José Morgado]

4 comentários:

Anónimo disse...

Lembro-me dele em comicios, em RGAs, em Manifs, e lembro-me das histórias que dele foram construindo a lenda. E lembro-me da vergonha que foi a forma como a faculdade que também foi a minha, o tratou, seguindo aliás uma sua velha tradição.
Morreu um homem bom, e eles cada vez fazem mais falta.

Unknown disse...

Lembro-me de Saldanha Sanches no meu tempo de faculdade com um homem que lutou contra um regime e, depois da revolução de Abril, contra as injustiças. Fica dele a memória de um homem bom, intelectual de grande valor e um lutador por causas justas.Nunca privei com ele; mas penso que foi um homem justo e que deixou uma marca importante na sociedade civil. É destes personagens que a sociedade necessita para que se torne mais justa e mais fraterna.

Unknown disse...

Fernando,
O nome do teu controleiro da escreve-se com um t apenas.
Um grande abraço e até logo
Manuel Pita

josé movilha disse...

Um cidadão com uma estatura impoluta, de passado e presente completado. A sua voz foi sempre arauto para referênciar as injustiças. A sua última crónica é ainda um canto forte à libertação dos necessitados e esquecidos de há 36 anos.