E o caloiro de Direito ficou a conhecer aquele que já era então uma lenda. Eu até julgava, na altura, que tinha acabado de conhecer o líder do MRPP, só depois de 25 de Abril de 1974 ouvi falar de Arnaldo Matos.
O tempo passou, ambos saímos do MRPP, mas a amizade manteve-se: José Luís Saldanha Sanches foi das pessoas que conheci com maior coragem física - e muitas histórias se podiam contar sobre isso; e das pessoas que maior coragem moral teve ao longo do seu percurso político, académico, cívico. Sempre que nos cruzávamos, o seu humor 200 por cento céptico provocava em mim o despertar para realidades inesperadas.
Estação Cronográfica é um blog sobre Tempo, mas não renega o seu próprio tempo - passado, presente e futuro. E, por isso, honra hoje a memória de um Cidadão de corpo inteiro.
A notícia da Lusa:
A notícia da Lusa:
Lisboa, 14 mai (Lusa) - Fiscalista, professor universitário, comentador político e jurisconsulto são apenas algumas das várias actividades desempenhadas por José Luís Saldanha Sanches, que morreu hoje, aos 66 anos, em Lisboa, vítima de cancro.
Nascido a 11 de março de 1944, o percurso de Saldanha Sanches foi marcado pela irreverência, que sempre o acompanhou na juventude, em especial na década de 1970, quando se tornou militante do PCTP/MRPP.
Juntamente com destacadas figuras da política portuguesa, como a atual procuradora geral adjunta Maria José Morgado, com quem casou, e José Manuel Durão Barroso, ex-primeiro ministro e presidente da Comissão Europeia, Saldanha Sanches enfrentou o regime da altura, tendo sido mantido preso durante vários anos.
Em 1980, Saldanha Sanches licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com a classificação de 16 valores. Seis anos mais tarde, obteve o grau de Mestre em Ciências Jurídico-Económicas e, em 1996, o Doutoramento, na mesma área e na mesma instituição académica, com a classificação de Bom com Distinção.
A partir de então, o fiscalista passou a lecionar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, primeiro como assistente, depois como professor auxiliar e, por fim, como docente associado e regente em cursos de mestrado.
Ao longo da sua vida profissional, Saldanha Sanches redigiu inúmeros artigos e livros, sobretudo sobre questões relacionadas com a tributação do lucro de empresas.
No currículo do fiscalista destacam-se ainda cargos no Centro de Estudos Fiscais, entre 1984 e 1996, no Conselho Nacional da Fiscalidade, entre 1996 e 2000, além de ter sido ainda membro fundador da "European Association of Tax Law Professors".
Na sua biografia conta-se ainda a participação, entre fevereiro e setembro de 1997, na Comissão Monti para a Reforma dos Impostos sobre o Rendimento e Representação de Portugal, por nomeação do ex-ministro da Finanças António Sousa Franco.
Nos últimos anos, Saldanha Sanches foi comentador político e económico na SIC Notícias, além de ter sido mandatário do socialista António Costa, nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa.
Saldanha Sanches estava internado há três semanas no Hospital de Santa Maria, onde morreu cerca das 02:00, segundo fonte daquela unidade hospitalar.
No funeral, a despedida de Maria José Morgado:
Despedida eterna
Despedida eterna
Zé Luis: começámos esta tua última viagem (tu gostavas de viagens) na cama 56 dos serviços de cirurgia 1 do Hospital de Santa Maria. Lia-te poesia e um dia parámos neste poema da Sophia de Mello Breyner:
”Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A Força dos teus sonhos é tão forte,
Que tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”.
Assim foi.
No teu visionário e intenso mundo, a voracidade de um cancro traiçoeiro não te consumiu a alegria, a coragem, a liberdade.
Entraste pela morte dentro de olhos abertos. O mundo que habitavas era rico de ideias, de sonhos, de projectos, de honradez e carinho.
Percebemos o que ia acontecer quando no fundo do teu olhar sorridente brilhava uma estrela de tristeza. Quando te deixava ao fim do dia na cama 56 e te trazia no coração enquanto descia a Alameda da Cidade Universitária a respirar o teu ar da Universidade, das aulas e dos alunos que adoravas, do futuro em que acreditavas sempre.
Foste intolerável com a corrupção, com os cobardes e oportunistas. Não suportavas facilidades. Resististe à sordidez, à subserviência, à canalhice disfarçada de respeitabilidade e morreste como sempre viveste - livre.
Uma palavra para aqueles que te acompanharam nesta última viagem: para os melhores médicos do mundo, para as melhores equipas de enfermagem e de apoio, num exemplo de inexcedível dedicação ao serviço médico público. Vivi com emoção diária o carinho com que te cuidaram.
Uma palavra de gratidão sentida para o Professor Luis Costa e para o Paulo Costa. E para um velho amigo de sempre o Miguel.
Também para Laura e para o Jorge e para a minha mãe e toda a família que nunca te deixou.
Por fim uma palavra para aqueles amigos que inventaram uma barricada contra a morte no serviço de cirurgia 1, cama 56, e te ajudaram a escrever, a pensar, a continuar a trabalhar: o João Gama, o João Pereira e senhor Albuquerque, cada um à sua maneira.
Suspiraste nos meus braços pela última vez cerca da 1,15 da madrugada do dia 14 de Maio.
Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos.
Provavelmente uma saudade ridícula, perante a força do exemplo e da obra que nos deixaste e me foi trazido por todos aqueles que te homenagearam – a quem deixo a tua eterna gratidão.
Tenham a coragem de continuar.
[16.05.2010 - Maria José Morgado]
4 comentários:
Lembro-me dele em comicios, em RGAs, em Manifs, e lembro-me das histórias que dele foram construindo a lenda. E lembro-me da vergonha que foi a forma como a faculdade que também foi a minha, o tratou, seguindo aliás uma sua velha tradição.
Morreu um homem bom, e eles cada vez fazem mais falta.
Lembro-me de Saldanha Sanches no meu tempo de faculdade com um homem que lutou contra um regime e, depois da revolução de Abril, contra as injustiças. Fica dele a memória de um homem bom, intelectual de grande valor e um lutador por causas justas.Nunca privei com ele; mas penso que foi um homem justo e que deixou uma marca importante na sociedade civil. É destes personagens que a sociedade necessita para que se torne mais justa e mais fraterna.
Fernando,
O nome do teu controleiro da escreve-se com um t apenas.
Um grande abraço e até logo
Manuel Pita
Um cidadão com uma estatura impoluta, de passado e presente completado. A sua voz foi sempre arauto para referênciar as injustiças. A sua última crónica é ainda um canto forte à libertação dos necessitados e esquecidos de há 36 anos.
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