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sábado, 23 de março de 2019

Calouste Gulbenkian e o pôr-do-sol de Lisboa


(André Carrilho)

Calouste Gulbenkian nasceu há precisamente 150 anos (23 de março de 1869)

Oportunidade para recordar um texto escrito pelo jornalista António Melo, no PÚBLICO de 7 de Julho de 2001.


Calouste Gulbenkian e a nostalgia do Bósforo em Montes Claros

Calouste Gulbenkian, personagem de enigmas indecifráveis, tinha por hábito ver o pôr do sol do alto de Montes Claros, porque ele lhe recordava uma paisagem de infância – a do Bósforo, o estreito que separa o Próximo Oriente da Europa e que uma cidade, outrora denominada Constantinopla e hoje Istambul, aproxima.

Trazia cadeiras de transatlântico, que a sua secretária Madame Tess, se encarregava de mandar instalar no local que ela sabia que el privilegiava. Dali, na neblina dos dias húmidos ou com a nitidez nos entardeceres secos, vislumbrava a Sintra misteriosa, que ele afeiçoava, particularmente a zona de Peninha, com o seu monte da Lua. Depois deambulava para nascente e aí, sim, enchia de saudade o olhar mergulhando-o no Mar da Palha. Naquele estreitar e alongar de margens e águas, no reflexo das cores e na suspensão dos olores saídos da terra, ele reflectia no Bósforo da infância, nas memórias da velhice e na perpetuidade do ser *.

Esta era uma revisitação que por vezes realizava com Michael Gulbenkian, seu sobrinho-neto, que com o pai, vindos de Argel, se reunira com o multimilionário do petróleo, que os percalços da II Guerra Mundial trouxeram para Portugal, de onde não mais saiu. O jovem Michael encantava-se com estes passeios a Montes Claros, onde respirar esta ambiência de fim de dia era a promessa que renasceria na manhã seguinte do outro lado do mundo – a oriente.

Mesmo depois do desaparecimento do filantropo que deu o nome à grande Fundação, Michael regressava aquele lugar mágico, com o pai, Robert Gulbenkian, sobrinho de Calouste, que ficara tocado por aquela filosofia que ligava panteísmo com o culto sibarita do corpo e a harmonia dos elementos que nele circulam.

Hoje a paisagem alterou-se. Pouco ou nada tem a ver com a descrição que Calouste Gulbenkian tinha do Bósforo e que aqui reencontrara. Choca com a urbanização devastadora que se estende até Sintra, casario desalinhado atravessado por cabos eléctricos de alta tensão e antenas radiotelegráficas. Porém, quem tiver a memória do tempo e o gosto da leitura percebe ainda hoje a analogia espiritual que Calouste Gulbenkian estabeleceu entre os dois extremos europeus. A verdade é que também naquele Bósforo já não existe a antiga poesia do pôr do sol.

* «O Bósforo não necessita de descrição: há os que já o viram, outros irão vê-lo um dia e aqueles que não tiveram essa felicidade constroem uma maravilhosa imagem, depois das entusiastas relações dos viajantes que se calhar os elogiaram em excesso» – Calouste Gulbenkian


(André Carrilho)

1 comentário:

A. Melo disse...

Indeed, um homems singular. Aconselho a leitura da biografia de Francisco Correia Guedes, Calouste Gulbenkian, uma Reconstituição, ed Gradiva, que só se encontra nos alfarrabistas
António Melo