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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Portugal na Grande Guerra de 1914-1918 - I


A 1 de Agosto de 1914 a Alemanha declara guerra à Rússia. Tinha início a I Guerra Mundial, ou Grande Guerra. Durante o Verão de 1994 o jornal Público comprou os direitos de uma série do Le Monde, sobre os então 80 anos do conflito. Em complemento a este seriado, produzimos então um outro, respeitante a Portugal e ao seu protagonismo no conflito. Esse apêndice seria ainda em 1994 publicado também nos Cadernos Público na Escola. Este número esgotaria pouco depois. Iniciamos aqui, no centenário da Grande Guerra, a reprodução desses textos que então escrevemos.

Em Março de 1916, apesar das tentativas da Inglaterra para que Portugal não se envolvesse no conflito, o antigo aliado decidiu pedir ao estado português o apresamento de todos os navios germânicos na costa lusitana. Esta atitude justificou a declaração oficial de guerra a Portugal pela Alemanha, a 9 de março de 1916 (apesar dos combates em África desde 1914).

PORTUGAL NA GRANDE GUERRA DE 1914-1918

Fernando Correia de Oliveira

1 — Em nome do regime e das colónias

E Portugal? Entrou na guerra contra a vontade da aliada Inglaterra, a pensar no império de África e num lugar de honra ao lado dos vencedores na futura conferência de paz. Logo em 1914, o país ficou dividido. E o principal teatro de batalha não foi o das trincheiras da Flandres, mas o de uma permanente crise política em Lisboa. O PÚBLICO completa a narrativa da Grande Guerra com uma reportagem dos acontecimentos em Portugal.

“Logo após a proclamação da República, todas as nações se apressaram a declarar-nos a sua amizade, e uma delas, a Inglaterra, a sua aliança. Por nossa parte temos feito, incessantemente, tudo para corresponder à sua amizade que deveras prezamos, sem nenhum esquecimento, porém, dos deveres da aliança que livremente contraímos e a que em circunstância alguma faltaríamos.” Declaração do Governo português, no Parlamento, a 7 de Agosto de 1914

De 1914 a 1918, foram cinco anos de brasa, e tiveram de tudo: cinco presidentes da República, dez primeiros-ministros, outros tantos ministros dos Estrangeiros, um governo de unidade nacional, duas ditaduras militares, conspirações monárquicas, greves e atentados, epidemias e milagres, e ainda o nascimento de um protofascismo de trazer por casa, o Integralismo Lusitano. A 1ª República durou de 5 de Outubro de 1910 a 28 de Maio de 1926, foram quase 16 anos. A Primeira Guerra Mundial começou quando o novo regime ainda não estava consolidado, faltavam dois meses para comemorar quatro anos de vida e se debatia continuamente com levantamentos militares monárquicos, para além de não conseguir obter uma maioria estável parlamentar para governar. A guerra acabou em 1918, exactamente a meio do consulado republicano. A outra metade, até 1926, não passou do agudizar das contradições e misérias de um regime que nunca conseguiu realizar as grandes expectativas que criara na sua fundação.

Quando, a 1 de Agosto de 1914, tem início o conflito mundial, era Presidente da República Manuel de Arriaga e chefe do Governo Bernardino Machado. Freire de Andrade chefiava a diplomacia. Pode dizer-se que a classe política portuguesa, se não foi apanhada de surpresa, estava muito mal preparada para fazer frente ao desafio imenso que os anos seguintes iriam constituir para Portugal e para o seu império africano.

“Era confusa a situação e Portugal, no início da guerra, continuava a viver sobre o fio da navalha: se por um lado havia incoerência, ambiguidade e dependência, do outro havia perigo de morte; e, de tudo, o Governo da República simplesmente suspeitava”, diz o historiador Luís Manuel Alves de Fraga (1). Incoerência, ambiguidade e dependência com que o regime novo e sem estabilidade se debatia, perigo de morte para as colónias, que desde a Conferência de Berlim estava na agenda das grandes potências. “Assim, o jogo político nacional tinha, necessariamente, de passar por envolver, cada vez mais, a Grã-Bretanha nos laços da aliança. A forma de conseguir tal desiderato [...] é que constituiu o pomo da discórdia interna”.

Segundo A. H. de Oliveira Marques, tornou-se claro à maioria dos responsáveis pela política portuguesa que o interesse nacional estava em fazer causa comum com os Aliados, contra a Alemanha. Sabia-se vagamente das conversações havidas em 1913 entre a Inglaterra e a Alemanha para uma partilha das colónias portuguesas, à maneira de 1898.

A 30 de Agosto de 1898, um melhoramento temporário das relações anglo-germânicas foi conseguido através de um acordo secreto sobre Angola, assinado em Londres entre Balfour e o conde Hatzfeld e em que as duas potências definiram as suas esferas e zonas de influência e as áreas que iriam ocupar no caso de Portugal — não possuindo os recursos materiais necessários para o desenvolvimento das suas colónias — ser, mais dia menos dia, forçado a aliená-las, para poder fazer face a décadas de contas públicas desastrosas e à imagem de insolvência que os últimos anos de monarquia davam. A República, a esse respeito, também pouco adiantou.

Mas o bom efeito que este acordo dúbio teve sobre a Alemanha foi anulado pela garantia colonial reafirmada pela Inglaterra a Portugal, no ano seguinte, quando ficou claro que Portugal as queria conservar. Era o novo tratado de Windsor, negociado pelo embaixador português em Londres, marquês de Soveral.

Os alemães pensaram que tinham sido enganados e a memória desta “perfídia” inglesa seria sem dúvida um obstáculo de monta nos futuros arranjos anglo-germânicos. “Com esta gente”, desabafaria então o responsável pela diplomacia alemã, barão Von Holstein, “é impossível fazer qualquer acordo”.

Como presidente da Liga Patriótica do Norte, constituída logo após o ultimato inglês de Janeiro de 1890, Antero de Quental antecipava-se oito anos à ira do barão e proclamava: “O protesto contra o insulto e a vilania da Inglaterra, e o propósito de nos libertarmos da sua aviltante dependência, implica um esforço viril e persistente para sermos de facto independentes, o que hoje não somos nem política nem economicamente”.

O que a monarquia não conseguira (o ultimato serviria, aliás, para dar um dos golpes finais no regime) iria tentar a república. E, aparentemente, o conflito mundial que agora ocorria parecia ser o momento ideal para isso. Até porque todos estavam convencidos, em Portugal e em toda a Europa, de que a guerra iria ser questão de meses.

Para desespero dos monárquicos e do rei exilado em Londres, desde o 5 de Outubro de 1910, que a comunidade internacional aceitava o Portugal republicano porque a Grã-Bretanha o havia reconhecido.

Se o inimigo é a Alemanha... a “velha aliada” não é de fiar

Apesar disso, e do facto de existir uma centenária aliança entre Portugal e a Grã-Bretanha, os dois argumentos não constituíam garantia segura contra a possibilidade de espoliação do património colonial português, “principalmente porque a dependência nacional era quase completa em relação ao Governo de Londres”, afirma Alves de Fraga. “Sem exagero, Portugal encontrava-se sujeito à boa vontade da Inglaterra, tanto mais quanto, havia poucos anos, o regime republicano representava uma inovação na Europa monárquica”.

Mas, “enquanto o Governo britânico agia não por mera intuição, mas porque já então tinha funcionários especializados no estudo das alterações de cenários políticos, em Portugal tudo se calculava e decidia empiricamente”, lamenta o mesmo historiador. “O governo Bernardino Machado não esboçou o seu posicionamento e, consequentemente, o de Portugal face ao conflito militar, quando a guerra era já inevitável na Europa. Esta ausência de antecipação terá resultado, por um lado, da falta de uma prévia e ponderada análise dos acontecimentos mundiais e, por outro, de uma excessiva confiança na aliança luso-britânica. Daí resultou que, admitindo como mais conveniente uma vaga situação neutral, tivesse que aceitar a sugestão britânica de manter Portugal como não beligerante e não neutral”.

Se a Alemanha era claramente o inimigo, a “velha aliada” Inglaterra não era de fiar. Os republicanos de 1914 não o sabiam nessa altura, mas o deflagrar da guerra salvou, mais uma vez sem qualquer acção de Lisboa, o abandonado império colonial, que fazia perigosamente fronteira com territórios das potências que se digladiavam na Europa.

Desde 1912, e até ao início de 1914, que a Inglaterra e a Alemanha tinham voltado à mesa secreta das negociações, e o prato era, de novo, as apetecíveis colónias portuguesas. E Londres e Berlim já tinham tudo programado: Angola, até ao meridiano 20, com as ilhas de São Tomé e Príncipe e o norte de Moçambique, até ao Licungo, passariam para a esfera de influência alemã; o resto das colónias portuguesas passaria para a esfera de influência britânica.

Com esta concessão, que coisa alguma custava à Inglaterra, supunha Londres criar um derivativo às ambições de expansão alemãs esboçadas no Mar do Norte e na Europa Ocidental. Pretendia ainda a Alemanha fazer incluir no tratado secreto e em seu benefício o “Estado livre do Congo”, mas a Inglaterra opôs-se, para não ferir susceptibilidades belgas. “Com as susceptibilidades portuguesas é que pessoa alguma se importou, devido à proverbial indiferença do nosso povo por estas coisas e à tradicional cobardia e ignorância dos nossos governantes”, acusaria anos mais tarde o general Gomes da Costa, um dos comandos da Flandres e do 28 de Maio.

A convenção sobre as conversações Londres-Berlim nunca chegou a ser ratificada. O conflito mundial veio baralhar e dar de novo.

A Alemanha nunca reconhecera as fronteiras no Sul de Angola. Uma missão “científica” luso-alemã chegou em Abril de 1914 a Angola. Os alemães são todos oficiais do exército do Reich. E os seus objectivos são de pura espionagem e preparação militar. Sabe-se que Berlim quer comprar o caminho de ferro de Benguela e colonizar o planalto, ou que entre o planalto do Huambo e a Dámara estão a ser armazenados víveres pelos alemães. Acredita-se que o Reich iniciará o ataque pelo Sul e que este está iminente.

Todos estes precedentes criam nas colónias como na Metrópole um estado de espírito que não anima qualquer tipo de solidariedade com os alemães quando estes iniciam o conflito mundial.

“Se o país entrasse na guerra ao lado dos futuros vencedores — e o grosso da opinião pública não duvidava, pelo menos até 1916, de que tal vitória iria pertencer aos Aliados —, o perigo da perda das colónias seria eliminado”, afirma A. H. de Oliveira Marques.

Para Norton de Matos, o militar que viria a chefiar, como ministro da Guerra, a intervenção portuguesa no conflito, “se Portugal se conservasse neutral e não entrasse na guerra, o risco de perder as colónias adquiria a probabilidade máxima, fosse qual fosse a nação vitoriosa. Perdê-las-ia imediatamente, no caso da vitória alemã; meses ou anos depois, se os ingleses vencessem”.

Fantasmas ibéricos

Também no contexto ibérico “a situação não é famosa”, escreve António Telo: “Desde 1912, com a crise de Marrocos e a guerra dos Balcãs, o Partido Democrático e muitos dirigentes republicanos sentem que se caminha para uma guerra europeia [...] As relações com a Inglaterra são frias e distantes, o que faz com que o país não seja sequer ouvido quando da crise de Marrocos. Desde essa altura, desenha-se uma aproximação entre a Espanha, por um lado, e a França e a Inglaterra, por outro. Há um importante sector da administração inglesa — onde se inclui o Almirantado — que acha que a Inglaterra deve rever a política tradicional para a Península e valorizar o entendimento com a Espanha”.

“O pesadelo histórico de Portugal foi o perigo sempre presente de poder ser absorvido politicamente pela Espanha”, faz notar, numa outra linha de interpretação, Alves de Fraga. “O receio da perda da independência nacional aumentou na nação lusa aquando da alteração do regime político, porque havia sérias desconfianças sobre um possível pacto dinástico entre as Casas reinantes nos dois Estados ibéricos. O receio de Lisboa ganhou consistência quando o governo madrileno apoiou, indisfarçadamente, o movimento armado monárquico português que se acoitou no seu território da Galiza. Esse apoio não era dissociável das conhecidas pretensões de certos círculos espanhóis sobre a zona ocidental da península e colhia justificação em Madrid no receio que ali havia de Portugal se tornar a testa de ponte do movimento republicano espanhol”.

Na frente interna, tudo parecia estar maioritariamente claro: interesse nacional, interesse colonial e interesse republicano apontavam para a intervenção ao lado dos Aliados. “Nisso concordavam Democráticos e Evolucionistas”, recorda A. H. de Oliveira Marques. “Já os Unionistas, e com eles muitos monárquicos e clericais, pensavam o contrário ou, pelo menos, queriam esperar por uma melhor compreensão do desenlace do conflito. Muitos simpatizavam com a causa alemã e com a forma germânica de governo e de cultura. Alinhar com os Aliados era, afinal, alinhar com a França ateia e maçónica, com a protestante Inglaterra, que tanto ofendera Portugal e com a cismática e autocrática Rússia”.

Ideia diferente tem Vasco Pulido Valente. O chefe dos evolucionistas, António José de Almeida, tinha como fórmula “ir até onde for preciso, sendo preciso”, e o dos unionistas, Brito Camacho, dizia “não, excepto se a Inglaterra sim”. Assim, Pulido Valente vê nos dois “republicanos moderados” a clara vontade de não fazer o país entrar em guerra, contra a vontade dos ingleses, o que seria “puro suicídio”.

Neutralidade clandestina

O governo Bernardino Machado, apanhado de surpresa pelo deflagrar da guerra, faz o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Freire de Andrade, telegrafar no próprio dia 1 de Agosto de 1914 para o embaixador português em Londres, Teixeira Gomes. Quer que ele se informe no Foreign Office acerca da atitude que Portugal deve tomar. Maior deferência, e dependência, não poderia evidenciar-se.

Em Paris, o embaixador João Chagas, um francófilo acérrimo, quer a entrada de soldados portugueses na guerra, quanto mais cedo melhor. E as notas que vai enviando para Lisboa procuram pressionar o Governo para a beligerância declarada. Em Berlim, o embaixador Sidónio Pais queixa-se da falta de informação, mas transmite a ideia que corre nos meios políticos do Reich: a entrar na guerra, Portugal irá fazê-lo ao lado dos Aliados. Em Londres, Teixeira Gomes ataca os “guerristas”, argumentando: “A beligerância de Portugal só embaraçava a nossa aliada que, de resto, nos não defenderia em caso de aperto se a tivéssemos declarado sem seu consentimento [...] Que ideia fará essa gente do que seja entrar em guerra, sem dinheiro, sem recursos de armamento, sem preparação de espécie alguma e sem acordo com a Inglaterra, o que implicaria talvez a rescisão da aliança”.

A célebre resposta britânica, dada pelo subsecretário de Estado Eyre Crowe no dia seguinte, é a de que Portugal deve “conservar a sua neutralidade, colaborante, sem a declarar”. O termo “neutralidade beligerante” usado por Crowe é ambíguo e mesmo inexistente entre os conceitos de direito internacional. Teixeira Gomes responde a 3 a Crowe “julgando interpretar os sentimentos do Governo e do povo português dizendo que, em qualquer caso, a Inglaterra nos terá a seu lado”.

A 5, Londres reafirma a directiva para que Portugal não declare a sua neutralidade e, respondendo a um pedido de Lisboa para que o Governo britânico estudasse com urgência a defesa das colónias portuguesas contra qualquer ataque alemão, diz, através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Eduard Grey, que a aliança anglo-lusa continuaria em vigor em caso de ataque de terceiros às colónias.

Por outras palavras, Londres não queria a ajuda portuguesa no teatro de guerra europeu (o Exército português, como os ingleses sabiam muito bem, era uma ficção) e prometia ajuda em África, para onde ia aconselhando que os esforços militares lusos se encaminhassem.

Durante três anos, numa política de ambiguidade, avanços e recuos, e alguma humilhação, Portugal foi-se dividindo entre os prós e os contras do envio de tropas para o conflito no centro da Europa. A Alemanha declara guerra a Portugal a 9 de Março de 1916, mas os soldados do Corpo Expedicionário Português (CEP) só chegam a França no início de 1917. Para protagonizar um dos grandes desastres militares da História portuguesa.

(1) A bibliografia utilizada será publicada com o último episódio desta série

Amanhã: O “falcão” Chagas e a “pomba” Aquilino

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