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sábado, 12 de julho de 2014

Nocturlábios ou o “relógio para de noite” de D. Duarte

O “relógio para de noite” de D. Duarte*

Por Fernando Correia de Oliveira

Foi uma figura invulgarmente culta para o seu tempo, apesar de autodidacta. Filho de Filipa de Lencastre e de João I, constituiu com os irmãos a Ínclita Geração. Pouco antes de morrer, publicava um conjunto de escritos, o Leal Conselheiro. No final, D. Duarte deixava também um desenho “da roda para saberem as horas quantas são da manhã, noite ou depois” e “para saber quantas horas são antes ou depois da meia-noite e quanto ante manhã”.


D. Duarte (1391-1438), rei a partir de 1433, reunia pouco antes de morrer, e a pedido da mulher, uma série de textos por ele escritos, uma miscelânea de ensaios redigidos em diferentes momentos da sua vida. Dá-lhes o título genérico de Leal Conselheiro. Nas palavras do cronista Rui de Pina, Duarte foi “homem sisudo e de claro entendimento, amador da ciência de que teve grande conhecimento, e não pelo discurso de escolas, mas somente pelo continuar do estudar [e do] ler por bons livros; porque somente foi gramático e algum tanto lógico”. Detentor de uma cultura invulgar para a época, Duarte já tinha escrito o mais antigo tratado de equitação europeu, o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela.

Nos capítulos 101 e 102 do Leal Conselheiro, intitulados “Da roda para saberem as horas quantas são da manhã, noite ou depois” e “Para saber quantas horas são antes ou depois da meia-noite, e quanto ante manhã”, o rei trata em texto de como um homem culto do seu tempo, com instrumentos rudimentares, podia, de forma privada, medir o tempo.


Uma outra versão da sua obra, o Livro dos Conselhos de El Rei Dom Duarte, ou Livro da Cartuxa, porque doado à Cartuxa de Évora pelo seu fundador, D. Teotónio, traz no final (e coincidindo com os capítulos 101-102 do Leal Conselheiro, onde faltam os diagramas que no outro manuscrito acompanham o texto, tendo ficado por preencher o espaço a eles destinado), uma ilustração formada por duas rodas de calcular as horas. Pela primeira “se podem saber as horas da noite” e pela segunda “a quantas horas é da manhã”.

Por indicação do próprio rei, trata-se de fornecer um complemento ao texto aparecido no Leal Conselheiro. Seguindo as instruções de Duarte, dever-se-ia “imaginar no céu uma cruz com estas quatro linhas segundo aqui é divisado e o meio seja no norte e resguardarem bem isto que nas pontas da cruz e das linhas escrevi, e quando a primeira e mais chegada guarda chegar a cada um destes lugares ali é a meia-noite, segundo os tempos em ela divisados [...]”.


Segundo João Dionísio e Maria José Fidalgo de Oliveira, que analisaram o Livro da Cartuxa, a utilização da tabela pode ser feita da seguinte maneira: o observador, estando, por exemplo, em finais de Outubro, verifica que a estrela Kochab, uma das guardas da Estrela Polar, está no pé, sendo portanto 23h00; se consultar a tabela saberá que o Sol nasce nessa altura do ano por volta das 7h00 e que portanto faltarão oito horas até o dia nascer. Esta tabela, relativamente grosseira, dá informações que serão transmitidas depois pelo segundo diagrama, no qual, por se contarem quartos de hora e todas as semanas do ano, se previa uma maior precisão de leitura.

Mas o capitão-de-mar-e-guerra Alberto Pereira de Miranda, em comunicação apresentada em 1990 à Academia de Marinha, sobre A determinação das horas nocturnas na Península a partir do século XIII, é menos optimista: “As descrições apresentadas nos citados capítulos são confusas, repetitivas e em certos casos insuficientes, uma vez que se referem a duas gravuras que o rei concebera, mas que o copista não chegou a executar [Pereira de Miranda consultou a versão da Universidade de Coimbra, de 1942, que não inclui os esquemas]. Para mais, D. Duarte morreu de peste antes de rever o seu livro, o que pode justificar a pouca clareza da sua redacção”.


Pereira de Miranda faz depois uma tentativa, pormenorizada, de aplicação do dispositivo. “Desconhece-se o grau de divulgação que este invento teve no seu tempo”, acrescenta o especialista. “Muito provavelmente foi pequeno, dado que o Leal Conselheiro, além de dedicar 99 dos seus 102 capítulos a questões sociais, morais e religiosas, foi escrito para ser dedicado à rainha, como que um testamento espiritual e, naturalmente, guardado como bem de família, de difícil consulta”.

Mas Pereira de Miranda faz notar que “tal não significa que os técnicos henriquinos dele não soubessem a existência e até o seu conteúdo”, embora isso lhes fosse de pouco uso, “pois a medição das horas nocturnas já era sabida de há longa data e o que D. Duarte acrescentou referia-se à duração da noite e dos crepúsculos, que, dependentes da latitude do local de observação, careciam de significado para os navegantes que avançavam cada vez mais para o sul”.


O primeiro registo ibérico que se conhece sobre horas nocturnas é uma invenção de Raimundo Lúlio (Ramon Llull), a célebre figura maiorquina do século XIII, médico, poeta, cientista, teólogo e missionário, que no seu livro Medicina (1272) descreve um instrumento a que chama “Astrolabii Nocturni” ou, na ilustração que acompanha o texto, de “Sphaera Horarum Noctis”. Ele foi concebido “para se saberem as horas a que aos enfermos se devem administrar os remédios durante a noite”.


O segundo registo ibérico sobre horas nocturnas deve-se a outro maiorquino, o judeu Abraão Cresques, que na sua tão famosa como discutida Carta Catalã (1373) insere um regimento do conhecimento das horas da noite pela Ursa Maior.

De qualquer forma, mesmo confuso, o escrito de D. Duarte é o terceiro registo ibérico de que há conhecimento de um método de cálculo das horas nocturnas. Em Portugal, esse tipo de instrumento recebeu o nome de nocturlábio.

*Crónica escrita em Julho de 2010 para a revista Espiral do Tempo

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...










Eduardo


Destinado a ser Rei por sucessão,
coube a Duarte, logo que morreu
o seu egrégio Pai, tomar na mão
os destinos do Reino que era seu.


Contrariamente àquilo que se diz
sem fundamento algum, mas recorrente,
foi um preclaro Príncipe de Avis
pela esforçada acção da sua mente.


Julgando-se o espelho dos vassalos,
no fito de poder aconselhá-los,
lançou em livro a sua experiência.


Querendo o bem do Povo e da Nação,
nos vários campos da governação
agiu com lealdade e com prudência!


João de Castro Nunes



João de Castro Nunes disse...

Foi de todos os irmãos
o que mais alto chegou
pois lhe coube ter nas mãos
o país que ele ilustrou!

JCN